2673 - nem com duas fêmeas e meia

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 4923                                      Data:  11 de  agosto de 2014

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NO CEARÁ, COM OS CAMELOS

-A solução para o transporte no nordeste brasileiro é o camelo. - trombetearam no Senado.

-Já ouvi mil sugestões de políticos para melhorar a vida no nordeste, mas essa me parece inusitada. Imagine se os árabes vêm com os camelos.

-Isso aconteceu com os gregos. Não existe “Camelo de Troia”. - tranquilizei o Elio.

Enquanto eu falava, ele pegou um jornal esquecido no Senado e o abriu dizendo que se tratava do “Aurora Fluminense”, do Evaristo da Veiga.

-Veja em que ano estamos. - pedi-lhe, pois a máquina do tempo nos larga na história sem que tenhamos informações prévias.

-1837. - respondeu-me.

-Dom Pedro II não assumiu ainda, está com 12 anos de idade. - observei.

-Ou estamos na Regência Una de Diogo Feijó, que foi de 1835 a 1837, ou na de Araújo Lima, de 1837 a 1840. - afirmou com o garbo de um aluno que acaba de ganhar um 10.

-É isso mesmo, Elio? Eu só sei que a maioridade de Dom Pedro de Alcântara foi declarada quando ele estava com 14 anos. Foi o Golpe da Maioridade.

-Carlos, minha mãe, professora de História do Pedro II, ensinou-me bem essa matéria para o concurso de admissão no Colégio Militar em 1961.

-E você deu cola para o Dieckmann?

Ignorou a minha indagação e seguiu lendo o jornal.

-Estamos no Rio de Janeiro em pleno Senado. - murmurei.

Elio largou o jornal e se voltou para mim.

-Carlos, foi o Senador Padre José Martiniano de Alencar que lançou a ideia de se trazer camelos para o nordeste. Como eles suportam a seca dos desertos, não terão dificuldade alguma de se adaptar ao nordeste brasileiro, pensou ele.

-Elio, ele é o pai do escritor José de Alencar, o autor brasileiro que mais li na minha adolescência, apesar de não entender o significado de algumas palavras rebuscadas dos seus romances.

-José de Alencar era filho de padre. - não demonstrou o Elio muito espanto ao se deparar com esse fato.

-Padre e senador. - enfatizei.

-Ele pretendeu importar os animais pela força da lei, mas revogaram a sua execução. - disse o Elio.

Será que não consideraram as suas ideias porque ele não obedeceu ao voto de castidade? - pensei sem me manifestar.

O certo é que transcorreram alguns anos, Pedro de Alcântara já era Dom Pedro II, quando a ideia do pai do José de Alencar renasceu das cinzas. Tudo começou, ou melhor, recomeçou, logo depois de o governo imperial nomear uma Comissão Científica de Exploração para realizar estudos no interior do Brasil. Um dos seus mais destacados integrantes, o Barão de Capanema, que era engenheiro, escolheu a província do Ceará para receber os primeiros camelos.

-O Roberto Campos dizia que o camelo é um cavalo projetado pelos economistas, mas nem por isso é um animal inútil.

-O Roberto Campos era muito espirituoso, Carlos, mas nesta época em que estamos, talvez, nem o avô dele tivesse nascido ainda.

Estávamos lá eu e Elio quando ficou decidido que a primeira leva de camelos importados seria de quatro machos e dez fêmeas.

-Não haverá problema de camelo alfa, de um que queira ficar com as dez fêmeas colocando para correr qualquer outro macho que se aproximar do seu harém?

Elio tinha certeza que não haveria problemas, que duas fêmeas e meia para cada camelo macho deixaria a cáfila em paz.

-Cáfila, Elio?...

-O coletivo de camelo. Esqueceu-se?

-Ah, sim! Aprendemos os coletivos na quarta série primária; recordo-me ainda de alcateia, coletivo de lobos e de mais alguns.

Tudo era motivo para festa em Fortaleza e a chegada dos animais, que só eram conhecidos no Brasil pelo nome e por fotografias excitavam ainda mais a curiosidade popular. No dia aprazado para o desembarque deles, vindos de Argel, parecia que toda a população da cidade se mudou para o porto de Fortaleza.

-Elio, que multidão para recepcionar os camelos! - exclamei quando avistamos o porto.

-É uma novidade e tanto para eles. - frisou o Elio.

No meio dos curiosos, sobressaía uma pessoa, não só devido ao seu traje de almofadinha no meio de tantos pobres, mas porque se portava como se fosse o próprio imperador.

-Quem é Elio?

-Certamente, o presidente da província do Ceará.

-Parece que os camelos são dele. - observei.

Ao surgir, no horizonte, a barca que os trazia, o alvoroço popular foi num crescendo espantoso até o desembarque. Foi um estupor. As reações, enquanto eles pisavam o chão, foram as mais variáveis.

-São gigantescos! 

-Não deixem as crianças chegar perto.

-Isso é coisa do demônio.

-São os anti-cristo.- bradou uma beata persignado-se.

Houve discursos. O presidente da província foi enfático na sua oratória:

-Esses animais ficam semanas sem beber água. Poderão transportar cargas de uma ponta a outra da província sem precisar de um gole d’ água para beber. O problema de transportes no Ceará está resolvido.

-É coisa do demônio mesmo. - convenceu-se a beata.

-Mais virão! O camelo é a solução para a seca nordestina. - bradou o político.

Agora, os quatorze camelos eram conduzidos ao Depósito Municipal, enquanto as pessoas, ainda agitadas pela novidade, adiavam a hora de retornarem aos seus afazeres.

-Depois de os camelos descansarem da viagem e do Barão de Capanema resolver algumas questões, eles irão daqui até Baturité.

-E qual a distância entre as cidades, Elio?

-100 quilômetros.

-Mas esses bichos foram feitos para percorrerem distâncias bem mais longas do que essa. -assinalei.

-É evidente.

-Sim, Elio, mas se eles forem beber toda a água que necessitam para percorrer mais de mil quilômetros deixarão o açude sem uma só gota para a população beber.

-Ainda não existe açude. O primeiro açude brasileiro, Açude de Cedro, em Quixadá, teve a sua construção determinada por Dom Pedro II, devido à terrível seca de 1877 a 1879, mas as obras só ficaram prontas na República. - ensinou-me Dona Sarita, a minha mãe.

Quando o Elio me informou, depois de ler o jornal de Evaristo da Veiga, que o grande poeta Gonçalves Dias, integrante da Comissão Científica, montaria um dos camelos, fiquei eufórico.

-Espero que ele aja com a presteza de um cornaca indiano na condução de um elefante.

E lá estava ele e o barão de Capanema, entre outros membros da Comissão, junto aos animais antes de montá-los.

-Elio, é muito melhor montar um cavalo, veja o tamanho das pernas dos camelos. Temo pelo poeta, tão baixinho.

E o que temia se concretizou: ao subir em um dos animais, Gonçalves Dias foi ao chão. A molecada fez uma algazarra dos diabos, riam e faziam chacota.

-Não respeitam um dos maiores poetas nascidos neste país. - revoltei-me.

-Vamos sair daqui, Carlos.

E saímos indignados.

A história com os camelos no nordeste brasileiro não teve final feliz. Falta de criadores especializados, a gestação das fêmeas de quase um ano, ultrapassando o prazo para criações maiores, concorreram para que a ideia não vingasse.

Muitos foram os culpados, menos os bravos camelos.