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quarta-feira, 2 de abril de 2014

2584 - areia do mar



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4384                        Data: 15  de março de 2014
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127ª VISITA À MINHA CASA

-Padre José de Anchieta, como o senhor se sente como o próximo santo brasileiro?
Tentei mostrar-me entusiasmado, embora estivesse perturbado com a sua inesperada visita.
-Eu não sou brasileiro, nasci nas Ilhas Canárias.
-Padre, na minha época de garoto de calças curtas, na escola primária, o seu nome era um dos mais citados pela minha professora nas aulas de Conhecimento Gerais. Ficou-me, então, na cabeça, que o senhor era brasileiro.
-Entendo a confusão, mas o Brasil foi o país que mais me marcou.
-Outra confusão minha era pensar que o nome do Arquipélago das Canárias fosse devido ao grande número dessas aves canoras, mas, na realidade, ele veio da quantidade de cães. Não atentei para o latim canis na etimologia da palavra “Canárias”.
Ele esboçou um sorriso generoso.
-O senhor foi mestre em latim, português e na língua tupi.
-Escrevi uma gramática da língua brasílica, como a chamávamos, “A Cartilha dos Nativos”.
-O senhor colocou em palavras e escreveu a primeira gramática da fala dos indígenas. -dei ao seu trabalho, com a sonoridade da minha voz, a importância que esse fato merecia.
-Embrenhei-me pelas matas, convivi com os nativos, e aprendi com eles a sua língua. Ensinei e aprendi.
-O seu a “Arte da Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil” foi impresso em Coimbra em 1595. Essa edição apresenta folha de rosto com o emblema da Companhia de Jesus; restaram, hoje, sete exemplares, um deles pertenceu a Dom Pedro II e está na Biblioteca Nacional do Brasil, há lá um outro exemplar que pertenceu a um colecionador, os outros cinco, não sei onde estão.
-Uma pena que a língua dos nativos, no Brasil, não seja falada, hoje, juntamente com o português.
-Há países, na América do Sul, em que é conhecida por alguns, além do castelhano, a fala dos indígenas. - disse-lhe.
-Eu tentei, com a minha gramática, colocar no papel a língua brasílica, até então oral.
-Sim, José de Anchieta, a língua brasílica, ramo do tupi-guarani, era o meio de comunicação entre todos aqui, no Brasil, os índios, naturalmente, os portugueses e os escravos que chegavam da África. O português só era usado nos relacionamentos com a Coroa Portuguesa.
-Mas se tornou uma língua extinta. - penalizou-se.
-O Marquês de Pombal expulsou os jesuítas do Brasil e tornou obrigatório o idioma português. Isso foi no século XVIII.
-Há muito que eu estava morto. - esboçou um sorriso triste.
-E como você chegou ao Brasil?
-O Padre Manuel de Nóbrega, que chefiou a primeira missão jesuítica à América, solicitou mais religiosos para a evangelização do Brasil. Entre os indicados pelo Providencial da Ordem dos Jesuítas, Simão Rodrigues, eu me encontrava.
-O senhor era muito jovem?
-Eu estava com 20 anos de idade; era Noviço. Embarquei na armada de Duarte Góis e cheguei ao Brasil em 13 de junho de 1553.
-O senhor era parente do fundador da Companhia de Jesus, Santo Inácio de Loyola, não era?
-Meu pai Juan Lopez de Anchieta tinha laços de sangue com Inácio de Loyola, eram primos.
-E a sua mãe?
-Ela era natural das Ilhas Canárias. Quanto ao meu pai, era basco, um revolucionário que combateu o imperador Carlos V.
-Sua mãe era judia?
-Ela, não, seu pai, sim, mas se converteu ao Reino de Castela. Meu avô era cristão-novo, portanto. 
O senhor teve doze irmãos?
-Sim, mas apenas dois, contando comigo, seguiram o sacerdócio.
-O senhor, com sua família, se mudou para Portugal. Com quatorze anos de idade, foi estudar Filosofia no Real Colégio das Artes e Humanidades junto à Universidade de Coimbra.
-A intolerância dos espanhóis com os judeus, mesmo convertidos ao catolicismo, foi determinante para a nossa mudança. Em Portugal, a Inquisição havia sido introduzida no reinado de João III, em 1536, mas não era tão assustadora quanto à espanhola.
Ao que leva a intolerância: um futuro santo, pela Igreja Católica, temendo ser torturado e morto como herege. - pensei, mas sem me manifestar.
Chegando ao Brasil, conheceu o Padre Manuel de Nóbrega?
-Tornamo-nos grandes amigos, porém, não o conheci logo que pisei estas terras.
-Conheceu-o depois de se embrenhar por “ínvios caminhos cobertos de espinhos”.  - como diria, séculos depois, nosso poeta Gonçalves Dias.
-Coube-me a ação missionária de enveredar pelo planalto de Piratininga e participar da fundação do Colégio São Paulo, acompanhado de outros jesuítas.
-Vocês faziam história, pois o Colégio de Piratininga foi o embrião do surgimento da Cidade de São Paulo.
-A minha imaginação, por mais delirante que fosse, não concebia que dali surgiria uma grande cidade, porque no primeiro ano daquela povoação, éramos apenas 130 almas, sendo que só 36 delas  haviam  sido batizadas.
-Soube-se que a data de fundação de São Paulo é o dia 25 de janeiro por causa de uma carta sua aos seus superiores da Companhia de Jesus. Deixe-me ver quais foram as sua palavras no computador.
-Não há necessidade, eu as tenho de cor.
E, sem perda de tempo, as reproduzir:
-”A 25 de janeiro do Ano do Senhor de 1551, celebramos, em paupérrima e estreitíssima casinha, a primeira missa, no dia da conversão do Apóstolo São Paulo, e, por isso, a ele dedicamos nossa casa.”
-Aprendemos esses fatos históricos já na escola primária. - entusiasmei-me, pois era uma maneira de eu voltar aos tempos de menino.
Como ele se mantivesse emudecido, lembrei-lhe que, como religioso, ele não se limitou a educar e a catequizar os gentios, mas também defendê-los da crueldade dos colonizadores.
-Muitos queriam escravizá-los e tomar-lhes as mulheres. Como seguidores do cristianismo, tínhamos de intervir.
-Houve um momento crítico das desavenças entre índios e colonizadores que redundaram na Confederação dos Tamoios. Como foi resolvido, padre?
-Fui com o Padre Manuel de Nóbrega à aldeia de Iperoig (Ubatuba) em busca de um armistício com os Tupinambás. Ofereci-me como refém, enquanto o Padre Manuel de Nóbrega rumou para São Vicente com o objetivo de ultimar as negociações de paz.
-Refém, os índios lhe ofereceram mulheres – dizem os historiadores – e, para não cair na tentação, o senhor escreveu nas areias da praia, um poema dedicado à Virgem Maria, que, mesmo as ondas do mar levando seus versos, eles não foram esquecidos.
-O mar, que apagou os versos da areia, não chegou à minha memória.
-Poucos anos depois da Confederação dos Tamoios, o senhor e o Padre Manuel da Nóbrega enfrentaram os huguenotes, que estabeleceram a França Antártica na Baía da Guanabara.
Fui companheiro de Estácio de Sá, que combateu os invasores, e o assisti nos seus estertores.
-As turbulências da história nunca o deixaram descansar.
-Veio um período mais calmo na minha vida. Dirigi por três anos o Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro, antes, fundei a povoação de Reritiba no Espírito Santo.
-E foi nomeado Provincial da Companhia de Jesus no Brasil.
-Com dez anos nessa função, pedi para ser substituído, porém, tive ainda de dirigir o Colégio dos Jesuítas, em Vitória, Espírito Santo. Retirei-me, finalmente, para Reritiba, onde faleci.
-Em 1617, os jesuítas brasileiros oficializaram na Companhia de Jesus, o pedido da sua canonização. Transcorridos séculos, e assumindo o papado um jesuíta, pela primeira vez, a sua canonização será sacramentada.
Não sei se ouviu essa notícia, pois partia para longe.




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