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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

2567 - Chalaça



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4367                                Data: 20 de fevereiro de 2014
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125ª VISITA À MINHA CASA

Logo que o vi materializando-se na minha frente, chamei-o de Chalaça, ele me pediu para que dissesse o seu verdadeiro nome, Francisco Gomes da Silva, depois, com uma risada, afirmou que o seu nome não era tão verdadeiro assim e aceitou o cognome Chalaça.
-Chalaça, para Carlota Joaquina, você era o bastardo insinuante e ela, para você, a espanhola maldita. Como chegaram a esse ponto?
-Primeiramente, penetrei no palácio misturado aos criados honorários do Paço. Logo depois, Dom João me nomeou Moço de Reposteiro. Eu estava com 20 anos de idade.
-Para tanto, você trazia uma razoável bagagem intelectual?
-Em Santarém, Portugal, onde fui preparado para ser padre, na minha adolescência, aprendi filosofia e latim, e falei com fluência vários idiomas: francês, espanhol, italiano, inglês... Mas não foi só por isso que impressionei o Príncipe Dom João.
-E, posteriormente, seu filho Dom Pedro. - acrescentei admirado com ele, que mais parecia um personagem de Ponson du Terrail.
-A corte era um ninho de cobras com grupelhos rivais. Dom João suspeitava das tramas peçonhentas da esposa e me incumbiu de espioná-la.  Saí-me tão bem, no papel, que, com 25 anos de idade, ou seja, em 1816, eu já era Juiz da Balança da Casa da Moeda.
-Você tinha uma inimiga perigosa.
-Sim e senti isso na própria pele. Sabendo que o meu ponto fraco não era só o calcanhar, mas todo o corpo, quando me via em frente às belas mulheres, não resisti à dama do Paço, Dona Eugênia de Castro e pus-me a fornicar numa sala do palácio: uma armadilha. Com a denúncia de Carlota Joaquina, o rei nos viu nus, expulsou-me e baixou uma ordem: eu deveria ficar a uma distância mínima de dez léguas da corte.
-E você, Chalaça?
-Fui para Itaguaí onde vivia um vigário que eu conhecia desde os tempos de Santarém.
-Diz a história que você voltou para a corte, Chalaça.
-Meu verdadeiro pai, Visconde de Vila Nova da Rainha conseguiu mitigar a ira do rei contra mim.
-Seu verdadeiro pai?!... Sua vida foi mesmo rocambolesca.
-A minha vida é romanesca desde que nasci. Sou filho do visconde, na época barão, com uma criada de quarto. Minha mãe, com 19 anos de idade, me registrou como filho de pai desconhecido. Meu pai não me assumiu como filho, mas me manteve como tal. Quando se casou com uma nobre, ele se viu forçado por ela a enviar a minha mãe para a África e a sumir comigo, que estava com oito anos de idade.
-Já um joguete das artimanhas cruéis da sociedade. - comentei.
-Como meu pai gostava de mim, encontrou uma hábil solução: pagou oito mil cruzados a Antonio Gomes, seu protegido e ainda o empregou como ourives da Casa Real, para registrar-me como filho legítimo.
-O que explica seu nome Francisco Gomes da Silva.
-E também explica a minha ida para um seminário de Santarém, onde estudei para ser padre e adquirir a bagagem cultural de que falávamos.
-Chalaça, você nasceu e morreu em Portugal, mas a maior parte da sua vida foi no Brasil. Como chegou aqui?
-Eu estava com dezesseis anos de idade quando soube que, em Lisboa, havia preparativos de fuga da corte real para o Brasil. Escapei do seminário e rumei para a capital. No caminho, os franceses me prenderam, mas consegui me evadir. Sempre fui mestre nisso.
-E como você conseguiu embarcar com a corte para o Brasil?
-Eu tinha pouco tempo, pois cheguei em cima da hora do embarque. Ladino, como sou, consegui achar meu pai adotivo que me colocou numa das embarcações que fugiam de Napoleão.
-E como foram seus primeiros anos aqui?
-Meu pai se estabeleceu como ourives e eu trabalhei com ele. Como as mulheres e as noitadas exerciam uma atração irresistível sobre mim, meu pai brigou comigo.  Saí de casa e abri uma tenda de barbeiro na Rua do Piolho.
-Hoje, chama-se Rua da Carioca.- disse-lhe.
-Lá, trabalhei tanto quanto o Fígaro do “Barbeiro de Sevilha”, de Rossini; fui cirurgião, dentista, apliquei sanguessugas e ventosas...
-Largo al factotum. - brinquei.
-Depois, dei um jeito de me insinuar no meio da corte.
-E a sua amizade com o futuro imperador Dom Pedro I?
-Depois de servir ao pai, servi ao filho, que amava as mulheres, ele era um femeeiro como eu.
-Mas você pretendeu retornar a Portugal com a corte de Dom João VI e isso fez Dom Pedro sentir-se traído.
-Ciúmes, ciúmes que passaram. Sendo seu secretário particular, Dom Pedro não tirava uma palha do lugar sem mim. Eu escrevia para ele discursos, textos impressos nos jornais, além de lhe servir de intérprete quando era obrigado a receber estrangeiros.
-Mesmo os seus detratores, Chalaça, reconheciam que você era articulado tanto falando quanto escrevendo.
-Pouco antes da independência do Brasil, Dom Pedro já havia reatado a velha amizade e, assim, tornou-me tenente em 1823, capitão em 1824 e coronel-comandante em 1827.
-Você, Chalaça, como alcoviteiro de Dom Pedro, apresentou-lhe as mais apetitosas donas, e uma delas foi Maria Domitila de Castro Canto e Melo, a futura Marquesa dos Santos.
-Ele a conheceu através de mim.
-Chalaça, há quem diga que você, pactuado com a futura Marquesa de Santos, extraíram o maior lucro possível de Dom Pedro I.
-A minha vida prescinde de imaginações férteis de tão atribulada que foi.
-Contudo, a sua influência sobe o imperador cresceu ainda mais, haja vista os títulos honoríficos e a dinheirama que obtiveram você e a Maria Domitila.
Francisco Gomes da Silva se limitou a ouvir-me.
-Você escandalizou a Europa, principalmente a França, quando pediu a mão da filha de Luís Felipe, o rei cidadão, para Dom Pedro I, quando já se sabia, na Europa, o quanto a falecida imperatriz Maria Leopoldina sofrera na mão dele.
-Foi um escândalo: um imperador fora dos eixos representado por um finório na corte francesa. - soltou uma gargalhada.
-Depois da rainha Carlota Joaquina, você arrumou outro inimigo ardiloso: o Marquês de Barbacena.
-Com o gabinete popular, eu influenciava na tomada de importantes decisões, com isso, cresceu o número de inimigos. O Marquês de Barbacena conseguiu afastar-me da corte, em 1830, convencendo Dom Pedro I a me nomear embaixador plenipotenciário do Império no Reino das Duas Sicílias. 
-Nunca mais voltou ao Brasil?
-Nunca; na Europa, escrevi três livros, dois deles arrasando a reputação do Marquês de Barbacena.
-Ficou um ódio encruado por ele.
-Mas eu não estava derrotado, meus inimigos nunca sentiram o gosto de me ver liquidado. Em 1833, quando Dom Pedro já estava em Portugal, para que a sua dinastia não perdesse o trono, convocou-me para ser secretário da casa de Bragança.
-Parece que a única mulher com que você não compartilhou com Dom Pedro foi a digníssima imperatriz Maria Leopoldina.
-Também disseram que eu tive um caso com Dona Amélia de Leuchtenberg, a segunda imperatriz do Brasil?...
-Você se tornou uma lenda, Chalaça, com isso, todas as elucubrações passaram a ser factíveis.
Como se preparava para partir, apressei a última pergunta.
-E a sua morte?
-Só me lembro de ter dito isso na extrema-unção: “Padre José, eu amei demais as mulheres e o dinheiro...”
E se foi.



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