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sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

2520 - acharam



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4320                  Data: 30 de novembro  de 2013
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FALTA ALGUÉM NO ALENTEJANO
2ª PARTE

Bem, Luca, os seus livros aqui estão. - disse o Elio, arrumando os dois volumes de volta na sacola de plástico.
“Oh, bendito o que semeia
Livros, livros à mão cheia
E manda o povo pensar.
O livro caindo n' alma
É germe que faz a palma,
É chuva que faz o mar.”
Mas não foram os versos de Castro Alves que eles trouxeram para a penumbra do Alentejano, e sim as letras do cancioneiro popular brasileiro.
-Elio, conhece “Molambo”?
-Como não, Luca; foi gravado pela Elizeth Cardoso.
À minha frente, ele recitou um trecho da composição de Meira e Mesquita:
“Eu sei que vocês vão dizer
que é tudo mentira,
que não pode ser,
porque depois de tudo que ela me fez,
eu jamais deveria aceitá-la outra vez....”
E o Elio completou:
“Ficou para impedir que a loucura
fizesse de mim um molambo qualquer.
Ficou desta vez para sempre,
se Deus quiser.”

Fez, em seguida, este comentário.
-Para mim, é a canção que melhor retrata a carência afetiva.
-Durante muito tempo, eu considerava também “Molambo”, até que surgiu “Atrás da Porta”, do Chico Buarque. - disse o Luca.
-E do Francis Hime também. - dei a César o que é de César.
Elio, por outro lado,  manteve a sua fidelidade ao “Molambo”. Bem, nada temos a objetar, mas quanto “Atrás da Porta”, sim.  Chico Buarque escreveu um verso nessa composição que, a nosso ver, destoa; julgamos até que, caso o Tom Jobim fosse o seu parceiro, em vez do Francis Hime, ele seria retirado da letra: “no tapete atrás da porta”. Quem teve cachorros transitando livremente pela casa, entende o que dissemos.
Elio voltou a recitar. Por que os dois apenas recitavam?... Talvez, poupassem a voz para alguma apresentação com plateia mais numerosa. Ele recitava, agora,  “Hoje quem paga sou”, de Herivelto Martins e David Nasser.
“... Mas se passa pela rua algum amigo
Em cuja porta a desgraça não bateu,
grito que entre neste bar, beba comigo.
Hoje quem paga sou eu.”
Levado pela surpresa incoercível, abordei o Elio.
-Eu ouvia esse tango brasileiro, mas só não saíram do registro da minha mente as palavras “Hoje, quem paga sou eu”, mas você se lembra de tudo.
-Meu pai era cantor de banheiro, eu ouvia e guardava tudo na memória. - explicou.
Enquanto ele se dedicava a esse desespero canoro do Nélson Gonçalves, impediu que o garçom interrompesse aquele momento de dor.
-Falta alguém aqui. - disse o Elio para nós dois.
-O Dieckmann. - não tive dificuldades alguma em adivinhar.
-O Dieckmann não sabe o que está perdendo. - frisou o Luca, sentindo o delicioso pungir de acerbo espinho, como o poeta luso Almeida Garret.
-O Dieckmann, no Rádio Memória, pediu para tocar “Casa no Campo”, numa gravação da Márcia e o Jonas Vieira entendeu Marisa Gata Mansa. Disse-me o Dieckmann que prefere a interpretação da Márcia, porque é luminosa. Ele não quer nada para baixo. - manifestei-me.
Agora, os dois recitavam “Nervos de Aço”. E eu aparteei para assinalar que, caso estivéssemos no “Brasserie Rorário”, seria obrigatória a lembrança da canção que é o ponto inalcançável da paixão contrariada: “Ne me quitte pas”.
-”Laissez-moi devenir
l' ombre de ton ombre
l' ombre de ta main
l' ombre de ton chien.”

Finalmente, o garçom atravessou o vale de lágrimas e trouxe a panelinha de camarão com arroz e brócolis para os dois, para mim, o meu cherne acompanhado de verduras e legumes mais cinco batatas taludas, que eram demais para o meu apetite, pois nem súdito do Rei Momo eu sou.
Após os primeiros movimentos masticatórios, o gói Luca voltou ao judaísmo com a entrevista do rabino norte-americano Henry Sobel no programa da TV Cultura, “Roda Viva”.
-Eu não vi. - disse o Elio.
-Ele já está aqui há mais de quarenta nos e ainda fala com sotaque carregado.
-Fala assim por charme, Luca.
Percebi na reação do Elio que nutria uma ponta de antipatia por ele.
-O rabino apontou o Fernando Henrique Cardoso como uma das pessoas que mais lutaram pelos direitos humanos.
A implicância do Elio pelo Henry Sobel passou para o Fernando Henrique Cardoso, que redigira o prefácio da sua autobiografia.
-O Fernando Henrique se autoexilou no Chile para se fazer de vítima.
-Elio, o Fernando Henrique foi aposentado, com 38 anos de idade, compulsoriamente pela ditadura militar. Lá, no Chile, deu aulas.
-O Chico Buarque se autoexilou na Itália porque já estivera lá, onde o pai trabalhou, com a família.
E prosseguiu o Luca com aquele que foi um dos principais colaboradores do livro “Brasil: Nunca Mais”.
-Houve aquele caso do furto das gravatas, mas ele estava sob efeito de medicamentos psiquiátricos que tomou por conta própria.
-Quando jovem, o rabino foi pego com as calças na mão. - esfriou o Elio o entusiasmo do Luca.
Elio seria um ótimo autor de biografias não autorizadas. - pensei sem me manifestar.
Depois de risos maliciosos sobre a situação em que uma pessoa se vê, quando pega com as calças na mão, Luca trouxe de volta à seriedade ao diálogo.
-Henry Sobel se recusou a enterrar o Wladimir Herzog na ala dos suicidas do cemitério israelita; ele rejeitou a versão da ditadura que o jornalista tinha se suicidado.
-Essas entrevistas no “Roda Viva” podem ser resgatadas no youtube.- manifestei-me.
-Eu já estou satisfeito, o Luca também, falta o Carlos.
Olhei as enormes batatas no meu prato. Aos vencedores as batatas; eu, porém, depois de tantas canções tristes, sentia-me derrotado, não fiquei, por isso, com elas, e também me dei por satisfeito.
-Tenho uma entrevista no escritório com uma velhinha às 14h 30min.
-Falta pouco, Elio. - apressei-o olhando o relógio.
Ele, no entanto, manteve o mesmo ritmo tranquilo e avisou o Luca que, dali a uns dias, eles mais a Dona Sarita, conversariam, num encontro a ser agendado, na língua ídiche.
-Vamos sim, o Carlos, também. - acrescentou.
Voltando, de carona no carro do Luca, não consegui me manter calado quando passamos pela Faculdade Celso Lisboa.
-Duas netas, com pouco mais de vinte anos de idade, reergueram com extraordinário  êxito o colégio que o avô fundou;
-Eu li a reportagem. - disse o Lucas, seguindo em frente com o carro.

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