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quarta-feira, 22 de agosto de 2012

2207 - momentos dobrados e redobrados



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4007                                      Data: 16 de agosto de 2012
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NOS BASTIDORES  DO  PALÁCIO CAPANEMA

Subitamente, eu e Elio, que estávamos junto aos voluntários da pátria que retornavam da Guerra do Paraguai, nos vimos em pleno Rio de Janeiro, em 1936, próximos de arquitetos. Como isso ocorreu? Dirão os leitores da nossa viagem pelo tempo que a causa foi o ópio, mas, para que não imaginem que este periódico enaltece qualquer tipo de droga, garantimos que não. Dirá o Dieckmann que tudo foi provocado pelo pó de pirlimpimpim que choveu sobre nós. Que seja.
-Carlos, aquele cidadão, debruçado sobre uma prancheta no meio da turma, é o Lúcio Costa e o Oscar Niemeyer também está aqui..
-Veja, Elio, um senhor se aproxima deles.
Em seguida, propus que os ladeássemos com o objetivo de ouvi-los.
-O que o senhor acha do projeto, Le Corbusier? - mostrou-se ansioso o Lúcio Costa.
-O edifício do Ministério da Educação e Saúde tem de destoar da merda do Agache com aquele estilo eclético horripilante dos prédios dos outros ministérios. - esbravejou.
-Carlos, o Le Corbusier é rival do arquiteto francês Alfred Agache, que responde pelo plano urbanístico da nossa cidade, incluindo a Esplanada dos Ministérios. - murmurou-me o Elio.
-Olha, Elio, ele faz modificações no projeto.
-O ministro é vaidoso e quer um palácio nos trópicos, o Palácio Capanema. – enfatizou Lúcio Costa.
Olhamos no relógio e constatamos que o tempo voara, já estávamos em 1945, nos estertores do Estado Novo.
O Palácio tinha sido inaugurado; ostentava toda a fachada de vidro com persianas brise-soleil projetadas por Le Corbusier de tal maneira que vedava o sol acompanhando o seu movimento.
-Carlos, o Palácio Capanema é o embrião das obras que serão criadas por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer daqui a dez anos, em Brasília.
-Muitos acadêmicos consideram isto aqui uma aberração. - frisei.
-Estive, por aqui, poucos anos antes de nós iniciarmos esta série de viagens pelo tempo e constatei que a decadência se instalou com elevadores interditados, pisos com rachadura e infiltrações. Soube, depois, que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) envida esforços para reformar esse prédio de tantas histórias. – disse o Elio.
-Já que estamos aqui, em 1945, vamos tirar proveito e testemunhar algumas dessas histórias. - animei-o.
Vimos, então, o ministro Gustavo Capanema, ao telefone, solicitando de um marchand estadunidense quadros de Van Gogh e Picasso para pôr no seu gabinete.
-Não conseguirá; não há verba para isso. - cochichou o Elio.
Em seguida, o ministro ligou para Cândido Portinari e contratou uma obra, com motivo marinho, para ficar sobre os pilotis do edifício. O artista brasileiro pintou, então, um painel de 33 metros quadrados com inúmeros peixes enquadrados em losangos.
-Elio, você vê o que eu vejo?
-Os peixes têm a cara do ministro Gustavo Capanema.
-O Carlos Lacerda dizia que o ministro tinha uma testa de dois andares, os peixes também.
-O Portinari caricaturou o Gustavo Capanema. - deduziu o Elio.
O ministro teve o mesmo pensamento, pois mandou que encaixotassem tudo aquilo e, em seguida, pediu que o pintor apresentasse outra obra com motivo marinho.
Eu e Elio nos encontrávamos no térreo do edifício, quando vimos um grupo de mulheres à espera dos elevadores.
-Elio, vamos nos juntar a elas, pois nada temos a perder e tudo a ganhar.
-Talvez haja uma costureira entre elas. - assanhou-se.
A mulherada saltou no segundo andar onde trabalhava o chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema.
-Elio, é o Carlos Drummond de Andrade. – exultei de admiração.
-E ele fala de poesia para elas. - disse um Elio não menos extasiado.
-Carlos, recite um dos seus poemas para nós. – solicitou uma das suas admiradoras.
O poeta se escusou, alegando que era mau declamador, mas as moças retrucaram com o argumento que Manuel Bandeira sim, declamava mal, mas ainda assim as atendia. Dando-se por vencido, o poeta recitou “Poema de Sete Faces”.
Nesse momento, Lúcio Costa passou e, pela sua expressão fechada, via-se que aquela chacrinha o desagradava. Ele, na verdade, se sentia incomodado com aquele fluxo de admiradoras porque a sua sala ficava ao lado; mudou, então, de sala.
Não passou muito tempo e a sala do chefe de gabinete do ministro também foi transferida, situava-se, agora, no oitavo andar. Junto à porta de entrada dessa sala encontrava-se a biblioteca e a responsável por ela era a funcionária Lygia Fernandes.
-Carlos, as mulheres que agora sobem ao oitavo andar para ouvir as poesias de Drummond não conseguem o seu objetivo.
-A responsável pela biblioteca sempre diz, para elas, que o senhor chefe gabinete está em reunião com o ministro.
-Carlos, agora eu me lembro, Lygia Fernandes foi a outra na vida dele por mais de trinta anos, até ele morrer.
Não era só essa história do Palácio Capanema que atraía a nossa atenção.
Um dos mais elogiados escultores do Brasil, Celso Antônio, contribuiu com a estátua “Maternidade” para a arte do Palácio Capanema. No alto da escada que conduz ao primeiro andar, lá estava ela para ser apreciada.
-O que você acha, Carlos?
-Gostei, mas Lúcio Costa, que passou perto de mim, pelo rosto crispado, parece que tem outra opinião.
-Talvez seja uma dor de cabeça apenas. – especulou o meu companheiro de viagem pelo tempo.
E um dia as pessoas que chegavam ao Palácio Capanema deram pela falta da estátua.
-Onde está a “Maternidade”? – perguntavam sofregamente.
Mistério profundo.
Meses se passaram, e nada. Jorge Amado, lá de Moscou, até pensou em escrever um livro que intitularia “O Sumiço da Estátua”, mas terminaria, anos depois, redigindo “O Sumiço da Santa”.
Um funcionário chegou, meses depois, ao trabalho anunciando que vira a “Maternidade” numa praça pública.
Era a estátua, de fato, de Celso Antônio.  Lúcio Costa, chefe de arquitetura do Departamento do Patrimônio Histórico, confessou o “crime”.
-Aquilo me desagradava profundamente. Eu não aguentava mais me deparar com essa estátua todos os dias. Eu a doei, então, para a prefeitura. – revelou.
-Pelo jeito, a “Maternidade” não volta mais para cá. – previu o Elio muito acertadamente.
Enquanto isso, no telefone, o ministro Gustavo Capanema, que não conseguira quadros de Van Gogh e Picasso, cobrava os quadros que pedira ao Museu Nacional de Belas Artes. Dias depois, chegaram “Oficinas”, de Pancetti, e “As Gêmeas” de Guignard.
-São duas belas obras. – disse o Elio, quando as viu.
-O ministro não vai devolver esses quadros ao Museu Nacional de Belas Artes. – apostei.
-Vamos ao oitavo andar ouvir as poesias do Drummond. - propôs o Elio.
Fomos, mas ele estava namorando.[†]





 


[*] O redator do seu O BISCOITO MOLHADO foi alertado para a falta de lógica de dois viajantes poderem surpreender o poeta e a namorada em outro dia que não o da visita. Elegantemente, aquiesceu, porém devolveu e manteu, considerando que a emoção do encontro com o poeta deu-lhe a devida licença. Acredita o Distribuidor que tanta poesia o faria também resguardar o poeta, caso a Dona Lygia não houvesse chegado antes.
Claro que não existe manteu, mas se ele pode, o Dieckmann também pode.
[†]  Bem que o Dieckmann avisou.

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