O BISCOITO MOLHADO
Edição 5298 SX
Data: 12 de junho de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
WARREN, O FENÔMENO
Prometo que vou falar sobre o barítono Leonard Warren, uma
das mais extraordinárias vozes jamais ouvidas no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro.
Isso, no tempo em que havia ópera no Teatro Municipal.
Melhor dizendo, no tempo em que havia Teatro Municipal. E autoridades
minimamente comprometidas com as demandas da cultura.
Nos bons tempos de nosso Teatro, que, tudo indica, não
voltam mais, reinava Gabriela Bezansoni. Foi uma cantora extraordinária, dona
de uma majestosa voz de contralto, capaz de mobilizar a atenção das plateias
mesmo quando dividia a cena com colegas do porte de Titta Ruffo e Enrico
Caruso.
Essa grande artista, nascida na Itália, manteve vínculos
estreitos com o Brasil. Sua primeira apresentação no Rio de Janeiro aconteceu
em 19 de setembro de 1918, quando cantou “Sansão e Dalila”, um dos pontos
culminantes de seu repertório.
Frequentadora assídua de nossas temporadas líricas, Gabriela
Bezansoni casou-se em 1925 com o industrial Henrique Lage, uma das maiores
fortunas brasileiras daquela época.
Afastada dos palcos, encontrou diversas maneiras de
permanecer incentivando a arte lírica em nosso país. Promoveu espetáculos e
organizou companhias de ópera. Em sua fantástica mansão do Jardim Botânico,
hoje conhecida como Parque Lage, transmitia seus conhecimentos para uma
valorosa nova geração de cantores brasileiros. Entre eles, Paulo Fortes, Maria
Henriques, Heloísa de Albuquerque e Violetta Coelho Neto de Freitas.
Inesquecíveis eram os saraus que promovia. Cantorias se
prolongavam até as madrugadas, quando ali se apresentavam os maiores nomes da
cena lírica mundial, então participando das temporadas promovidas na época
áurea do Teatro Municipal.
Foi ali que o novato Paulo Fortes teve o privilégio de
presenciar algo inacreditável: Leonard Warren, o extraordinário barítono
norte-americano, cantar, em tom, “La Fleur Que Tu M’avais Jetté”, ária do tenor
na ópera “Carmen”, de Georges Bizet.
Chegamos, enfim, ao tema da nossa crônica. Para dizer que a
carreira de Leonard Warren esteve repleta de fatos extraordinários. A começar
pelo dia em que ele resolveu se inscrever para participar das rigorosas
audições promovidas pelo Metropolitan Opera House, de Nova Iorque, sob o
comando do maestro famoso Wilfrid Pelletier. Corria o ano de 1938. A
experiência do rapaz, filho de imigrantes russos cujo verdadeiro sobrenome era Warenoff,
era nenhuma. Se dependesse exclusivamente da vontade de
seu pai, o jovem Leonard jamais deixaria de trabalhar na loja de peles que
assegurava o sustento da família.
Warren havia estudado com Sidney Diete, quando era
praticamente um menino. Conseguira um emprego no coral do Radio City Music
Hall. Conhecia, mal, cinco árias de ópera. Para não se dizer que sua
experiência de palco era nenhuma, há que se registrar o papel de índio que ele
fez no colégio, numa encenação sobre o herói Daniel Boone.
Pois naquela audição, quando Warren começou a cantar, o
Maestro Pelletier, muito zangado, passou a circular pela plateia, na tentativa
de encontrar o responsável por aquela brincadeira. Aquilo só podia ser uma
gravação! Possivelmente do célebre barítono Giuseppe De Luca... Não era.
Leonard Warren foi imediatamente contratado pelo Metropolitan. Havia pressa. O
problema agora era transformar uma voz extraordinária em um verdadeiro cantor
de ópera. A tempo de ocupar o espaço de Lawrence Tibbett, o grande barítono do
MET, que entrava em declínio.
Warren foi mandado para a Itália. Para estudar em Milão com
o Professor Riccardo Picozzi. Em sete meses preparou exaustivamente cinco
papéis. Inclusive o de Paolo, em “Simão Bocanegra”. Nele faria sua gloriosa
estréia no palco nova-iorquino.
Começava ali a carreira fulgurante de um dos maiores
fenômenos vocais do século XX. Que alcançou os mais importantes palcos do mundo
da ópera. Cumpriu, no Metropolitan Opera House, mais de 600 apresentações.
Visitou muito o Brasil, tendo se apresentado 43 vezes no Teatro Municipal do
Rio de Janeiro e 9 vezes no Municipal de São Paulo. Em 1945, cantou a “Força do
Destino”, tanto no Rio quanto em São Paulo.
Leonard Warren tinha 48 anos de idade quando essa trajetória
gloriosa chegou ao fim. Aconteceu em 4 de março de 1960, em pleno palco do
Metropolitan Opera House. Numa sexta-feira à noite, o teatro, completamente
lotado, encenava “A Força do Destino”, de Giuseppe Verdi, com um elenco estelar
que incluía Renata Tebaldi, Richard Tucker e Jerome Hines.
No meio da segunda cena do terceiro ato, Warren dava início
ao recitativo que antecede a ária famosa “Urna Fatale Del Mio Destino”. Ele
exclamou: “Morir! Tremenda cosa!” e desabou no palco do Metropolitan. Sofrera
um fulminante ataque do coração. Às 22h30, Rudolf Bing, gerente geral do
teatro, colocou-se à frente da cortina e disse: “Esta é uma das noites mais
tristes da história desse grande teatro. Peço uma homenagem à memória de um dos
nossos maiores artistas, que acaba de morrer em meio a uma de suas mais
extraordinárias performances”.
Autopsicografia,
ResponderExcluirF. Pessoa.
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração
Sei que não preciso explicar o porquê da poesia de Pessoa.
ResponderExcluirSei também que a dor que não é sua também dói. Muito.
"A experiência do rapaz, ..........., era nenhuma." A emoção total!
Continue, continue...
ResponderExcluirMais F. Pessoa,
ResponderExcluir(que precisou ser mais de um para ser um só.)
Tenho saudade de mim.
De quando de alma alheada
Eu era não ser assim,
E os versos vinham do nada.
Eu fico torcendo que os leitores de O BISCOITO MOLHADO, concorrente literário de O GLOBO, FOLHA e ESTADÃO, que têm muita sorte das nossas edições não serem diárias, visitem os comentários. Mas que nada...
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