O BISCOITO MOLHADO
Edição 5302 D
Data: 18 de junho de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO:XXXIV
O BELICHE DO GALO
Aconteceu comigo, um dos poucos brasileiros que teve a
oportunidade de servir à Pátria duas vezes. E jurar à Bandeira por duas
instituições militares diferentes.
Até hoje, já livre dos fardos de ser um reservista
bidirecionado, ainda sinto arrepios em pensar a qual arma deveria servir, caso
uma se colocasse contra a outra e não contra a Argentina.
A primeira viagem de instrução de aspirantes a oficial
estava prevista para julho de 1969 e fui escalado para tripular o Cruzador
Barroso, o famoso Charlie 11, até Salvador, Bahia.
Charlie é o nome da letra C no Código Internacional de
Sinais, e onze era o número do Barroso. Não há número de um dígito nas
marinhas, certamente para impressionar e iludir os agentes inimigos. Tudo
começa em onze. E em todas as marinhas.
Na nossa Marinha, o Barroso era o 11 e o Tamandaré, o 12.
Quem tripulou o Charlie 11 não esquece dos alto falantes que berravam 24 horas
por dia; Charlie Onze, e o corneteiro tocava a Alvorada, Charlie Onze, início
do Exercício XPTO, Charlie Onze, um apito avisava que chegou o Comandante, Charlie
11, Postos de Combate.
O chamado para Postos de Combate era odiado. Não porque
fosse ocorrer qualquer escaramuça, mas porque todas as passagens, portas,
escadas, tudo era tornado estanque com as devidas tampas e deixada uma abertura
circular de 40 centímetros por onde você tinha que se esgueirar e achar, do
outro lado, o primeiro degrau, em locais com iluminação reduzida.
Era tombo atrás de tombo. Enquanto isso, um oficial
combatente ficava com um cronômetro, esperando que os bravos aspirantes
chegassem a seus postos, devidamente encapacetados, encoletados e prontos para
a batalha.
Aí, o fonoclama – é esse o nome do alto falante – chamava
Charlie Onze e apitava, com potência redobrada, o fim do combate, mas de
maneira que todos pudessem ouvir o aviso em qualquer ponto do Oceano Atlântico.
Irritante demais.
Aguardávamos, esperançosos, o esganiçado chamar Charlie Onze
e apitar Postos de Abandono do Navio, mas este sucesso nunca foi tocado.
No dia do embarque no Charlie Onze, a ansiedade era enorme.
Nós todos tínhamos uniformes iguais e portávamos um saco de lona, redondo, branco e igual,
onde tudo que coubesse era o que teríamos para a viagem. Fosse de 3 dias, ou de
40.
Alguém nos contou que os beliches eram cinco, um em cima do
outro, com um espaço bem restrito entre camas. Aqueles que fossem mais aptos
deveriam escolher as camas superiores, onde o espaço era bem maior. Dito e
feito, mal a lancha atracou na escada de portaló, nós tomamos o Barroso de
assalto, com a selvageria típica de vikings ocupando uma capela de freiras.
Bem capacitado fisicamente pelos torneios de Medicine Ball
dos velhos tempos do Primeiro Exército, subi a escada em terceiro ou quarto
lugar, e segui a orientação dos oficiais verdadeiros, que incentivavam e se
divertiam com a corrida. Cinco conveses abaixo (ou andares, se preferirem)
encontrei o nosso alojamento e, bem chegado, joguei o saco no beliche mais alto.
À noite, ao fim do primeiro dia de navegação, que inclui
sempre a saída do Rio de Janeiro ao por do Sol, voltei à gruta que eu tão
sabiamente escolhera. Tudo certo, meu saco de viagem estava lá, troquei de
roupa e subi.
Dei de cara com uma viga estrutural (sicorda) que passava,
gigante, exatamente ao longo do meio do beliche, deixando sobre o meu nariz uns
cinco centímetros de ar.
Todo dia um galo novo.
Registro I: Tripulei o Barroso em 69 e ajudei a construir,
em 73, um Rebocador de Alto Mar, o Aquarius, da Wilson Sons. Uma tarde brumosa,
poucos meses depois da entrega do Aquarius, eu voltava de Niterói enquanto o
Barroso saía rebocado, justamente pelo Aquarius em direção ao desmanche, em
Santos, onde nasci.
Fiquei olhando, olhando, até aquelas duas silhuetas tão conhecidas
se fundirem ao cinza molhado daquela tarde triste.
Registro II: O
Barroso e o Tamandaré, embora de projeto idêntico, tiveram destinos separados.
Na Segunda Guerra Mundial, o Barroso (então USS Philadelphia) operou no Norte
da África e no Mediterrâneo, enquanto o pré-Tamandaré (USS Saint Louis) sobreviveu
ao ataque em Pearl Harbor e, modernizado, batalhou no Pacífico.
Sofreu um ataque kamikaze, que danificou seriamente a proa,
mas não o afundou e consta que, desde então, a alma do piloto japonês
assombrava o navio, ora fechando válvulas, ora apitando à meia noite, ora
projetando no radar a bolinha do avião de Toshiro Kaskatayama, tudo
sobrenaturalmente inexplicável.
O Tamandaré foi desmobilizado três anos depois do Barroso e
foi vendido para ser desmanchado no Extremo Oriente. Durante a operação de
reboque, a proa cedeu e, lentamente, o navio penetrou para sempre no Atlântico,
já próximo da costa africana.
O ataque kamikaze teve sucesso, finalmente. Muito melhor
assim.
Aprendi coisas que não sabia e gostei do texto. O piloto japonês descansou!
ResponderExcluirSempre se pode aprender alguma coisa, mesmo comigo.
ExcluirBelo retorno do Editor às lides literárias. Mas fica claro que o simpático japonês não teve nada a ver com o afundamento do Tamandaré.
ResponderExcluirFoi culpa do Editor.
Grato, Redator-Chefe, mas cabe esclarecer que o Editor jamais pisou no mencionado C-12. Teria que ser obra de poder mental extremo, o que nego, embora tenha que levar em conta de que você é a terceira pessoa a suspeitar.
Excluir"E os milhares de Kamikase, e os americanos que levaram com eles, cujas cinzas se misturam em algum ponto do Pacífico..."
ResponderExcluirEm 1967 li A terrível hora dos kamikase e a frase acima se tornou inesquecível.
Busquei o livro, agora sem capa, lembrei da emoção da menina que acreditava que japoneses comiam criancinhas (eu) e de seu despertar para a realidade das guerras.
Para os japoneses, A Divina Tormenta.
Obrigada pela busca do livro e pela emoção rediviva.
ResponderExcluirO seu O BISCOITO MOLHADO é que agradece. Muitos povos comiam criancinhas, menos os antropófagos.
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