O BISCOITO MOLHADO
Edição 5297 SX
Data: 09 de junho de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
LANÇANDO
MODA
Minha maior proeza atlética aconteceu em 1963: estabeleci
uma nova marca correndo da República do Peru até a Bolívar, em Copacabana. Um
record que não foi superado até o dia de hoje.
Vou contar como aconteceu. Recebi a ligação de uma tia, irmã
de minha mãe, para avisar que havia chegado dos Estados Unidos trazendo a
super-preciosa encomenda que eu havia feito. Em questão de minutos alcancei a
linha de chegada. Ou melhor, cheguei ao Edifício Iporã, na Avenida Copacabana,
quase em frente ao Roxy, onde ela morou durante muitos anos, até se mudar
definitivamente para Petrópolis.
Não lembro bem, é possível que tenha chegado ao apartamento
da minha tia, no sétimo andar, subindo as escadas a pé. Disso não tenho
certeza. Mas não esqueço da violência com que destruí o embrulho que ela me
entregou. Maldito Durex! Livre de papéis e cartolinas, deparei-me, finalmente,
com meu objeto de desejo: uma calça Lee branca!
Que, na verdade, branca não
era. Puxava mais para um tom de creme, marfim, algo no gênero. Mas, na
avaliação minha e dos meus amigos, aquela era uma calça Lee branca.
Poucas haviam chegado ao Brasil. Mais comuns eram as convencionais
“indigo blue”. Também apreciados, os jeans azuis começavam a perder prioridade
no gosto da garotada. Em consequência, a classificação ficava assim
estabelecida: calças faroeste, compradas na Sears, eram usadas por quem estava
irremediavelmente “por fora”. As importadas “indigo blue” das marcas Lee,
Levi´s ou Wrangler, eram dignas de apreço. O reino dos céus, sem qualquer
dúvida, estava reservado aos marrentos que haviam encontrado um jeito de
importar uma Lee”branca”.
Contemplei minha joia, emocionado. A sensação foi a mesma
que sentiu Aureliano Buendia em “Cem Anos de Solidão”, quando foi ao encontro
dos ciganos que acampavam nos arredores de Macondo e impressionavam seus
habitantes com incríveis novidades. Foi ali que Aureliano viu pela primeira vez
algo inacreditável. Uma enorme pedra de gelo!
Minha calça, é claro, foi estreada naquele mesmo dia.
Inexplicavelmente, ficou apertada. Ao encomendá-la, tomei mil cuidados, conferi
minuciosamente as numerações praticadas pelos ianques, mas não teve jeito. O
diabo da calça ficou apertada. Seria querer demais desfilar com uma roupa tão
“estribada” e, ao mesmo tempo, fazer questão de respirar.
Meus amigos da República do Peru, meus colegas de Santo
Inácio, estavam sempre empenhados em “andar na moda”, inventar novidades, com o
intuito de causar inveja aos seus iguais e, também, cada vez mais, despertar a
atenção das meninas que nos atraíam.
Algumas regras deviam ser necessariamente seguidas. Ninguém
podia abrir mão de comprar camisas na “Don Quixote”. A loja ficava na Barata
Ribeiro, no Posto 4, e o dono, um ruivo imenso com quase dois metros de altura,
estava sempre postado à frente do estabelecimento.
Lojas de sapatos havia várias. “Mario”, “Motex”, “Souza”,
“Meu Tio”, “Copamarfel”... O ideal é que fossem encomendados sob medida.
Particularmente, eu era fã do “Peixoto”, que ficava na própria República do
Peru, a poucos metros de minha casa. Era muitíssimo bem atendido pelo Luiz,
figura muito simpática. Um belo dia o Peixoto fechou. Nunca mais vi o Luiz. Falo
de algo que aconteceu há quarenta anos. Mistério, a loja permanece até hoje com
suas portas cerradas.
Algumas modas, admita-se, não faziam o menor sentido.
Durante um tempo a rapaziada andou comprando no Mercadinho Azul agasalhos de
universidades americanas. Custavam uma nota preta. E, pior do que isso, eram
incrivelmente quentes. Ninguém ligava para esse ínfimo detalhe, eles eram
também usados no verão do Rio de Janeiro. Numa estimativa conservadora,
acredito que uma caminhada entre Paula Freitas e Santa Clara em pleno mês de
janeiro propiciasse ao portador da vestimenta a perda de um quilo ou mais.
Ainda no capítulo desses agasalhos, registre-se o ridículo que residia em
desfilar ostentando no peito a logomarca de universidades americanas que nos
eram completamente desconhecidas. Durante um ano usei um desses artefatos
felpudos, em que estava estampado o escudo “ Des Moines University”. Patético.
Havia também ocasiões muito especiais. Nelas recorríamos às
colônias “Pino Silvestre” e “Lancaster”. Todo mundo tinha o mesmo cheiro. Nos
meses de praia, estar bronzeado era uma imposição. Muitos amigos se besuntavam
com um tal “Rayto de Sol”. Depois de várias aplicações, o cara assumia ares de
surfista havaiano. Mas não compensava. Sujava a roupa toda e o tal bronzeado
não resistia a uma esfregação de algodão com álcool. Uma rápida limpeza fazia o
freguês retornar a uma palidez sepulcral. Digna de um personagem da família
Adams.
Andei lançando minhas modas. Tenho para mim que fui o
primeiro cara a aparecer no Santo Inácio com uma caneta esferográfica. Paulo
Fortes foi cantar no Uruguai e trouxe um punhado delas. Fui agraciado com uma
preta e amarela, lembro até hoje. Morri de orgulho. Olhava com desprezo para
aquele bando de seres inferiores que se dedicavam à inglória tarefa de
reabastecer com tinta suas Parker, Esterbrook e Compactor. Minha superioridade
eu ostentava mantendo minha esferográfica sempre no bolso externo do paletó do
Santo Inácio. Bem à vista da plebe ignara. O paletó era cinza. O meu deixou de
ser quando o diabo da caneta vazou completamente e ele foi promovido a azul.
Percalços da modernidade. Nunca esquecendo que os primeiros foguetes de Werner
von Braun explodiram na base de lançamento.
Outra moda foi a dos relógios Sicura. Consta que milhares deles
foram “importados” pelo Zica, um famoso contrabandista da Praça Mauá. Eram
péssimos. Enfeitavam bem os pulsos da garotada. Deles só não se podia exigir
que marcassem a hora. Seu ponto alto era a durabilidade. Alguns, certamente de
uma série especial, chegavam a durar quase uma semana.
Registro aqui, também, uma camisa social que meu pai trouxe
do Uruguai. “Não precisa passar!”, ele exclamava entusiasmado. Acho que, por
aqui, foram lançadas como “Camisas Volta ao Mundo”. Mais pareciam uma tábua.
Perfeitas para quem adora se coçar.
Fui seguindo os costumes, eventualmente até mesmo lançando
moda, até que algo terrível me aconteceu. Tinha 14, 15 anos, e meu cabelo
estava caindo. Fiquei apavorado. A incidência de carecas entre os Fortes e os
Barata Ribeiro era preocupante. Resolvi levar o assunto ao conhecimento do meu
tio Sergio, irmão de meu pai. Ele fez várias conjecturas até lançar uma ideia.
Em sua casa da Rua Nascimento Silva havia um pastor alemão lindo, descomunal,
do tamanho de um ônibus. Meu tio perguntou: “Você já reparou no pelo do Argos?
Existe algo mais saudável? Mais bonito? O que você acha de lavar o cabelo com o
produto que ele usa? É um sabão especial. A marca é Timboró”.
Achei boa a ideia. Comprei o tal sabão e parti para a ação.
Aparentemente, tudo deu certo. Meu cabelo ganhou brilho, ficou ótimo para
pentear. Dias depois, saí à tardinha para encontrar Heloisa, minha primeira
namorada. O romance tinha regras severas a serem observadas. Ficávamos
conversando em frente ao prédio em que ela morava. O regulamento estabelecia um
metro de distância entre os pombinhos. Devidamente vigiados pela mãe da amada,
à espreita na janela do quinto andar.
Um beijinho no rosto era admitido quando da chegada da
namorada. Naquele dia, antes que acontecesse, que eu tivesse oportunidade de
indagar “Que tal meu cabelo?”, Heloisa foi mais rápida e disparou: “Sergio, não
me leve a mal, mas você está com cheiro de cachorro!”
Como é bom sorrir, principalmente, quando sorrimos de nós mesmos. Seu perfumado shampoo provocou em mim o primeiro sorriso do dia.
ResponderExcluirJá ouvi sobre o matuto Américo Pisca-Pisca (analogia com o povo?) acabei de ouvir sobre espelho, tomei ciência do placar de 3 x 3 e lembrei do poeta, de forma um pouquinho diferente: minha alma chora...
Como uma autêntica filha de português considerei o título "ao pé da letra" e imaginei tratar-se de um blog de culinária mesmo pq tem a foto de um chef entre os seguidores. Gosto muito de culinária mas adoro contos, crônicas, literatura, enfim, adorei. Ao passar o nome, por telefone, para minha neta ela estranhou e perguntou se não tinha algo a ver com o Gabriel Pensador. Aí, acordei.
ResponderExcluirAmei as novas fotos no Gg. Ficava meio que assim com meu registro no google acusar inúmeras leituras diárias só para acessar "o biscoito molhado". rs
Devo explicar que estou lendo os tempos de antanho tb.
Um abraço.
O editor do seu O BISCOITO MOLHADO conhece o redator desta crônica e é capaz de atestar os seus modismos, que transparecem em odores estranhos, mãos cor-de-mamão, cabelos violeta e uma atração mini-ferroviária inexplicável.
ResponderExcluirBelo texto, trás ótimas decorações de outrora.
ResponderExcluirNaquela época não existia corretor de texto.kk Recordações.
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