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quarta-feira, 17 de julho de 2013

2423 - Chatô 1, o bife



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4223                                   Data:  06 de  julho de 2013
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90ª VISITA À MINHA CASA

-François-René de Chateaubriand. - exultei com a visita.
-Chateaubriand. - propôs generosamente.
-O escritor que introduziu a escola romântica na literatura francesa.
Às minhas palavras, limitou-se a sorrir.
E prossegui na louvação:
-”Eu quero ser Chateaubriand ou nada” - assim rabiscou nos seus cadernos Victor Hugo, quando estava com 15 anos de idade e demonstrava ambição literária.
-E eu, conhecendo Victor Hugo quando era garoto, chamei-o de “criança sublime”.
-E Stendhal, o grande escritor que se opunha ferozmente a você, na arena política, mas que se deixou influenciar pelo seu estilo romântico.
-Na minha vida, envolvi-me muito com política, porque eu não conseguia ficar indiferente aos acontecimentos do poder.
-Chateaubriand de uma série de grandes personalidades da língua francesa – Lamartine, Victor Hugo, André Malraux, que misturou as carreiras políticas e literárias, você foi o primeiro.
-Voltaire... Não, Voltaire, não, ele se limitou a usar sua pena para mostrar os descalabros, não se fez político.
E concluiu:
-Certamente fui mesmo o primeiro a misturar as duas coisas.
-Mistura explosiva. - acentuei.
-Você se esqueceu de citar um dos meus maiores orgulhos: a cozinha.
-Perdão, o Filé à Chateaubriand... Sabemos que o fato é um só, mas há muitas versões sobre essa iguaria que leva seu nome. Uns dizem que foi seu cozinheiro que, sabendo-o carnívoro insaciável, criou o prato que você, nomeado por Napoleão secretário da embaixada francesa em Roma, ofereceu ao imperador. Outros sustentam que o filé se origina da cidade de Chateaubriand, lugar onde seus ascendentes fundaram o castelo que deu nome à cidade. Uma terceira versão afirma que seu cozinheiro, Henri Paul Pallapart, nada tem a ver com a iguaria e atribui o prato ao restaurante Champeaux, aberto em 1800 e fechado em 1908 em Paris.  Qual é a verdade?
 -A verdade era que eu não resistia a uma boa carne, eu era a antítese dos vegetarianos. - respondeu sem levar a sério a minha pergunta.
-Citei Napoleão, mas você era monarquista. Além do mais, era cristão numa época em que ainda repercutia a frase do filósofo iluminista Diderot: “A humanidade só será feliz depois que o último padre for enforcado com as tripas do último rei.”
-Meus posicionamentos políticos não podem ser colocados numa frase só, de cambulhada. Há uma multitude de questões a serem consideradas.
-Vamos partir, então, do princípio. - pedi.
-O meu nascimento, que se deu em 1768, em Saint-Malo. Eu era o caçula de dez filhos e cresci no castelo da família em Combourg, Brittany.
-Você era descendente de uma ilustre família aristocrática?
-Sim, meu pai era um capitão do mar, virou armador e se tornou comerciante de escravos.
-Era um negreiro que, em Portugal, era um estigma que acompanhavam os comerciantes endinheirados que exploravam tal comércio. - comentei.
-Na França, também. Meu pai era um homem taciturno e melancólico. Cresci numa atmosfera de solidão sombria que eu mitigava com longas caminhadas e uma profunda amizade à minha irmã Lucile.
-E a sua escolaridade, Chateaubriand?
-Fui educado em Dol, Rennes e Dinan. Tinha dúvidas sobre a minha carreira: oficial do mar ou sacerdote? Eu me decidi com 17 anos de idade, e entrei para a carreira militar, ganhando algumas moedas como segundo tenente do exército francês baseado em Navarra.
-A terra de Henrique IV. - interferi.
-Grande rei que inspirou a epopeia de Voltaire, Henríade, que ele escreveu nos onze meses em que ficou encarcerado na Bastilha. - lembrou.
-E como foi a sua vida militar?
-Em dois anos, promoveram-me a capitão. Em 1788, visitei Paris, e travei amizade com os grandes escritores da época: Jean-François de La Harpe, Louis-Marcelin de Fontanes, André Chénier...
Ao dizer o nome de André Chénier, veio-me logo à mente o poeta cuja vida  inspiraria uma dramática ópera italiana, e o interrompi:
-O poeta da Revolução Francesa foi executado na guilhotina.
-Quando eclodiu a Revolução Francesa, fui, a princípio, simpático a ela, mas quando descambou para a violência, viajei à América do Norte. Isso em 1791.
-Um ano antes do Terror, que se iniciou com a queda dos girondinos, e foi até 1794, com a prisão e posterior guilhotinamento de Robespierre, líder dos jacobinos. - comentei.
-O meu período na América, que ainda tinha muito da natureza vibrante, do selvagem na visão do Jean-Jacques Rousseau, enriqueceu-me intelectualmente.
-Suas cativantes narrativas sobre a natureza selvagem de territórios pouco povoados da América, suas descrições dos índios revelaram um estilo novo para a época, que lhe daria a liderança do movimento romântico na França.
Após uma pausa, fui adiante:
-Você retornou a França em 1792, em pleno Terror.
-Naquele cenário, não tive dúvidas: alistei-me no exército dos monarquistas emigrados, em Koblenz, sob a liderança do Príncipe de Condé, Louis Joseph de Bourbon.
-Eram lutas encarniçadas, imagino.
-Fui ferido no cerco de Thionville, onde houve um terrível confronto entre as nossas tropas e o exército revolucionário francês. Meio morto, fui transportado para Jersey, na Inglaterra, onde fiquei exilado.
-E você já era casado?
-Sim, mas deixei a minha esposa para trás.
-E como foi esse casamento, Chateaubriand?
-Foi um casamento nos moldes monárquicos a que sou inteiramente  contra. Casei com uma jovem monárquica, também nascida na minha cidade natal, Saint-Malo, sem conhecê-la.
-É um contrassenso um romântico juntar-se a uma mulher por meio de um contrato, apenas.
-Seu nome era Céleste Buisson de la Vigne.
-Você a traiu muitas vezes, mas a sua formação tradicionalista falava alto, e você nunca se divorciou dela.
-É verdade. - confirmou.
-E como foi o seu exílio na Inglaterra?
-Em Londres, vivi na pobreza, tive de ganhar a vida dando aulas de francês e fazendo traduções.
-Nunca fui um exilado, mas imagino que a terra que nos dá exílio seja tão má assim.
-Viajei de Londres para Suffolk e não tive saudades de casa. Lá, apaixonei-me por uma jovem inglesa, Charlotte Ives.
- O romance durou muito?
-Não, porque lhe revelei que era casado.
-Não ocultou o seu estado civil, mesmo sabendo que seria o fim do relacionamento?
-Eu era um nobre, e tinha de agir como tal, embora muitos aristocratas não o fizessem.






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