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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

2023 - Não é que você pegou o samba?


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4023                                       Data: 07 de setembro de 2012
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68ª VISITA À MINHA CASA

Noel Rosa, meu pai se orgulhava de tê-lo visto, quando ele era garoto, em Vila Isabel, onde também morou. - foram as primeiras palavras que me vieram à mente, que se agitou, quando me deparei com o filósofo do samba.
-Ele nasceu, como eu, em 1910?
-Era seis anos mais novo.
-Tinha, então, 20 anos de idade, quando eu morri.
-Com 20 anos de idade, você despontou para o sucesso. Sua mãe, Dona Marta, escondeu a sua roupa para retê-lo em casa, pois as noitadas prejudicavam seus estudos de medicina.
-Mal sabia a minha mãe que, assim, me deu a inspiração para compor o samba “Com que roupa?”
-O primeiro verso, Noel, um decassílabo com as tônicas nas sexta e décima sílabas, tinha a mesma linha melódica do “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas”.
-Pois é, camarada, como eu não sabia colocar as notas musicais no pentagrama, pedi socorro ao Homero d' Ornelas, violoncelista, que usava o pseudônimo de Candoca da Anunciação.  Quando entoei “Agora vou mudar minha conduta”, ele me interrompeu imediatamente, alertando-me que as notas do meu samba eram as mesmas do início do Hino Nacional.  Foram alterados, então, os três primeiros compassos e a semelhança se desfez.
-E o povo cantava nas ruas:
“Eu hoje estou pulando como sapo,
pra ver se escapo
desta praga de urubu.
Já estou coberto de farrapo,
eu vou acabar ficando nu:
meu paletó virou estopa
e já nem sei mais com que roupa,
com que roupa eu vou
ao samba que você me convidou?...”
Eu passei, nesse tempo, para o segundo ano de medicina, mas a minha turma de sambista se encontra no botequim, nos pontos da Lapa. Eu apareci poucas vezes no Café Nice com os meus colegas acadêmicos.
-Você, com 15 anos de idade, foi conhecer Sinhô, que morava numa casa paupérrima, mas isso  não o abalou porque você já frequentava barracões no morro de São Carlos, onde o mestre Brancura lhe ensinou noções de capoeira.
-Queria ver Sinhô tocando violão e chamei para me acompanhar o Hélio, meu irmão e o cérebro da família...
-Noel, o cérebro da família era você. - impedi que seguisse adiante com a sua modéstia e admiração pelo caçula.
-Eu gostava da riqueza melódica do J.B. da Silva, que todos conheciam como Sinhô, mas quando ele empunhou o violão para solar uma melodia sua, fiquei decepcionado; eram acordes primários, sem encanto algum.  Então ele, com a expressão até então inexpressiva, largou o violão e nos levou a uma mesa em que estavam umas tiras de cartolina, desenrolou-as e nos mostrou teclas brancas e pretas de piano desenhadas. Disse-nos que esse era o seu instrumento e que nele compunha suas músicas.
-Noel, você não começou com o violão?
-Não; o meu primeiro instrumento foi o bandolim. Eu tinha 13 anos de idade e já estudava no Ginásio São Bento, quando me interessei pelo bandolim, que tocava de ouvido. Pouco depois, o som dos violões,  que eu ouvia nos meus devaneios de garoto, no chalé da rua Teodoro da Silva, me cativou.
-E você aprendeu a tocar violão.
-Meu pai me deu as primeiras lições, mas era comerciante, não parava muito em casa. Betinho Marceneiro...
-Era sobrenome dele ou ofício? - interferi.
-Ofício. - esclareceu e continuou:
-Betinho Marceneiro me ensinou os tons de dó maior, lá maior e menor. Com Romualdo Miranda, aprendi a solar uma valsa que fez muito sucesso no passado. Procurei, também, auxílio também naqueles métodos didáticos. Meu irmão Hélio, que tocava cavaquinho, se interessou também pelo violão.
-Seu irmão, quando retornava do Ginásio São Bento, ouvia os mestres do instrumento, Oton Saleiro, João Pernambuco, Pequenote, conhecido como “Papel Carbono”, Dilermando Reis e, guardava as músicas na memória, e, em casa, tentava reproduzi-las.
-Helio, que foi colega de São Bento, do Glauco Viana, passou muitos solos para mim. - disse Noel, que prosseguiu:
-Aprendemos eu e ele também com o Dr. Steve Neto, um médico legista, que tocava muito bem violão para espairecer. Com Fabrício Dutra, tio de Dick Farney, Hélio aprendeu a tocar a valsa “Destino”, que aprendi também. Depois, uns virtuoses do instrumento passaram a visitar a nossa casa, com o beneplácito da nossa mãe. Meu irmão tocou com o professor do Glauco Viana, no rádio, mas era tão novo que não recebeu uma pataca; trabalhou de graça.
-Devido aos ensinamentos que vocês obtiveram o Sinhô, como violonista, os decepcionou?
-Isso não tisnava o seu talento de modo algum. Ele não teve as mesmas oportunidades que os integrantes da classe média tiveram, por isso, sempre reconheci o talento dos sambistas de morro e me integrei com eles.
-Sim, Noel, a sua contribuição para a legitimação do samba do morro e do asfalto, através do principal órgão de divulgação, o rádio, foi fundamental.
-As pessoas estranhavam o fato de eu, que cursei o Ginásio São Bento e o curso de medicina até o terceiro ano, procurar crioulos de morro para fazer parceria, mas depois perderam esse preconceito, pelo menos a maioria.
-A sua presença no samba elevou o nível desse gênero musical consideravelmente.
Ele se manteve calado, por modéstia e eu prossegui com uma pergunta.
-E a Aracy de Almeida?
-Aracy tinha senso rítmico, ouvido apurado, mas no início não era assim.
-Eu a conheci, na televisão, agressiva, com o rosto de poucos amigos...
-Ela era delicada, acanhada, quando aparecia lá em casa para ensaiar um samba.
-O tal ouvido atento, o senso rítmico...
-Um desastre! Quando era extenso e torneado o meu trecho melódico que ela deveria cantar, não acertava. Eu ficava fulo da vida: “Já vi que você só serve para cantar samba de Roberto Robert.” - gritava eu com Aracy. Para acalmar-me, minha mãe me trazia um cafezinho. Eu bebia, ela tentava de novo, mas não tinha jeito. Diante da minha neurastenia, Aracy de Almeida me olhava com os olhos de culpa, Eu saía de casa largando-a lá.
-E, então?
-Então, o Hélio pegava o violão e, com sua paciência de chinês somada com a sua capacidade didática, repassava o samba com ela.
-E você bem longe dali. - disse-lhe com o olhar zombeteiro.
-No dia seguinte, quem aparecia com a expressão frágil, delicada?...
-Aracy de Almeida.
-Ela mesmo. Eu lhe dizia, então, meio casmurro: “Vamos tentar mais uma vez.”
E, então?
-Quando ela acabava de cantar, eu dava a mão à palmatória: “Não é que você pegou o samba, Aracy?”

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