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quinta-feira, 7 de julho de 2022

3121 - D Passeio Completo

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3002D                          Data: 8 de outubro de 2022

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TRINTA E SEIS ANOS


Fiquei fora do Brasil durante 36 anos. Dividida entre as carreiras de médica e pianista, abandonei a primeira ainda no quarto ano da universidade, em benefício da música, o que desgastou o meu relacionamento familiar irremediavelmente, porque aqui todos gostariam de me ver sucedendo meu pai. Mas não voltei antes ao Rio porque não quis, pois, apesar dessa frustração, todos sempre fizeram de tudo por mim.


Eles me prepararam para a música clássica, seguindo o raciocínio natural da época - mulher deve tocar piano e ser professora primária. Quando perceberam, eu estudava medicina e continuava com o piano também. Em 1935, passei por um dificílimo concurso, que me dava o direito de me aprimorar na Europa, em Viena; nem pestanejei, tranquei a matrícula da medicina e prometi voltar...


Casei em fevereiro de 1936 com um maestro austríaco e fiquei. Foram dois anos esplêndidos, até a anexação à Alemanha. Então a regra passou a ser: quem está fora, não entra e quem ficou dentro, não sai. Minha família moveu céus e terras, getúlios, embaixadores, generais e marechais para obter um indispensável salvo-conduto. Pensei bem e fiquei lá mesmo, achando de verdade que não haveria a guerra que houve. Afinal, a história da noviça rebelde só seria contada muito tempo depois. Comecei a me assustar quando umas figuras um tanto sinistras resolveram perguntar aqui e ali por que eu me chamava Ester e de onde eu vinha. Ou bateram de cara com meu salvo-conduto, ou arranjaram ocupação, mas o fato é que me deixaram tocar piano em paz.


Quando me batizaram, era comum o uso de nomes ou antigos, ou bíblicos, como o meu, Raquel, Judith, nomes que eram usados muito comumente pelos judeus, que já tinham sofrido ao longo dos séculos, inúmeras perseguições, mas nada parecido, nem a mim tão próximo, com o que viria acontecer.


Entre 38 e setembro de 39, podíamos passear à vontade, desde que não passássemos dos limites da Alemanha e da Áustria, mas a guerra impôs restrições ao uso do combustível e ficamos muito mais em casa, meio sem o que fazer e meio sem o que comer, A mim pouco afetou, mas Karl perdeu 30 de seus 110 quilos com esse novo regime.


Atrapalha muito numa guerra dessas proporções não ter uma profissão de uso imprescindível, como médicos ou professores e comecei a refletir se não teria sido melhor se estivéssemos no Brasil. Essas minhas decisões impetuosas começavam a pesar na minha consciência, até então juvenil e aventureira. Acabei me oferecendo para trabalhar em um hospital próximo pelo resto da guerra e cheguei a repensar o tema da escolha da profissão, mas, quando acabou, voltei ao piano e foi certo, pois nunca mais passei por outra guerra.


Melhores tempos, melhores salários, um Porsche creme na garagem, um carro super resistente que rodou a Europa toda sem pedir refresco, nem agasalho. A cor bem clara era um contraste com as velharias escuras a que tínhamos nos acostumado.


Mas tudo dura e acaba e um dia Karl ligou o carrinho bem cedo e levou tudo que era dele. Ora, fiquei pensando, já lá estava há 22 anos e não haveria de ser agora que eu voltaria correndo para o colinho da mamãe... nada disso, continuei fazendo tudo igualzinho. De início, para me esquecer do verme, mas logo percebi que as coisas melhoravam pouco a pouco, e depois, muito a muito. Não é que o Karl só atrapalhava?!


Em 59 eu já tinha um Mercedes esporte, comprei usado, vermelhinho com bancos pretos, uma graça e, um dia, passei pelo Karl ainda com o Porsche, de pneu furado e já meio acabado; aliás, ambos. Empinei meu Ray-ban na ponta do nariz, ajeitei o lenço também vermelho e preto, enquanto jogava uma segunda para rosnar como só os carros alemães rosnam e passei acelerando.


Mal deu pra ver que o verme tinha um petizinho que estava com uma mamãezinha... aí a visão da criança mexeu comigo. Chegando em Florença em belíssimo dia, escolhi um cartão postal cheio de cores renascentistas e escrevi carinhosamente, me desculpando por não ter ajudado.


Fui trocando de Mercedes, sempre duas portas, sempre dois lugares, onde poucos sentaram até 72. Já era hora de me aposentar e podia muito bem rever a família. Cheguei gritando papai e mamãe no meio do Galeão, todo mundo olhando a grisalha senhora que parecia órfã a se reunir com os velhinhos.


Fomos para casa no Itamaraty do papai. Fiz questão de decorar o nome pomposo do carro, pois ali mesmo já começava a sentir saudade de casa. Era o tempo do milagre brasileiro, dos reflexos do tri-campeonato e do fim da guerrilha urbana, mas nada disso me iludiu, peguei um Boeing dois meses depois.


Meus 36 anos musicais terminam aqui. Teve de tudo, guerras e guerrilhas, promessas em vão, correrias e investigações, estagnação, meditação, muita música, Porsches, Mercedes e Itamaraty. Penso nas minha sobrinhas no velhor sofá vendo novela, na mesma casa em que tramei, solitária, um enredo difícil de engolir, fácil de fazer, delicioso de viver.




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