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terça-feira, 26 de julho de 2022

3127 - Jogando com Napoleão (reedição)


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 2224                                       Data: 20 de dezembro de2004

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ENXADRISTA

Eis uma coisa que eu não sabia: máquinas já tinham fama de enxadristas desde o final do século XVIII. Soube através do documentário que o canal de TV, HBO, apresenta, neste mês de Natal, sobre as célebres partidas disputadas entre o campeão mundial, Garry Kasparov, e Deep Blue, o supercomputador projetado pela IBM que possuía a capacidade de analisar 200 milhões de posições por segundo. Logo nas cenas iniciais desse documentário, é citado com imagens “o Turco”, uma máquina de jogar xadrez, e é citado também Napoleão Bonaparte, o adversário do Turco numa célebre partida. 
O Departamento de Pesquisas do nosso periódico foi imediatamente acionado e colhemos alguns dados sobre o Turco, sobre o Francês que nasceu na Córsega e até sobre Che Guevara, o argentino que foi ministro da Fazenda em Cuba e morreu como guerrilheiro na Bolívia.
Com a efervescência da Revolução Industrial no final do século XVIII, um engenheiro austríaco, Wolfgang von Kempelen, apresentou ao público a sua invenção: uma máquina que jogava xadrez. Era essa máquina revestida de madeira, onde se destacava um boneco sentado diante de um tabuleiro de xadrez, trajando vestimentas turcas. Três portinholas, quando abertas na máquina de Kempelen, proporcionavam aos curiosos a visão dos intricados mecanismos do seu interior onde, diziam, não havia espaço para um ser humano esconder-se e ajudar o boneco turco.
As apresentações públicas do Turco, como apelidaram a máquina de jogar xadrez, tornaram-se um acontecimento na sociedade vienense já nos anos 70 do século XVIII.  Diga-se, de passagem, que a Turquia era moda em Viena, nessa época: Mozart compusera a Marcha Turca, e lançara a ópera o “Rapto no Serrralho”, com motivos da Turquia.
Com o sucesso, o Turco passou a viajar pela Europa, apresentando-se nas mais diferentes capitais. O procedimento básico a ser respeitado pelos interessados nas apresentações do Turco era escolher como seu adversário um integrante da platéia que mostrasse conhecimentos do jogo de xadrez. Realizava-se, então, a partida sob mil olhares incrédulos. No momento de o turco jogar o seu lance, ouvia-se do interior da máquina os giros das rodas dentadas para, em seguida, dar-se a cena miraculosa: o boneco pegava uma peça do tabuleiro com a mão esquerda, erguia-a, e executava o seu lance. Para muitos da platéia, isso nada tinha de tecnológico e sim de sobrenatural, alguns até faziam o sinal da cruz.
A grande maioria dos jogos era vencida pela máquina. Mas as disputas com exímios enxadristas, como a com Philidor, em Paris, considerado o melhor enxadrista da época, redundaram em derrotas para o Turco.
Morreu, anos depois, o criador da máquina, mas não a sua criatura, que ainda gozava de sucesso junto ao público. O filho de Kempelen, sem a paciência do pai, vendeu, então, o Turco, por uma dinheirama para o artista mecânico Johann Nepomuk Maelzel, que sabia muito bem a preciosidade que tinha em mãos. 
Napoleão Bonaparte, que nesse tempo costumava ir à Áustria para aplicar homéricas sovas nos austríacos, revelou, como aficionado do xadrez que era, o seu desejo de jogar uma partida contra a máquina. Agendaram, então, uma partida entre os dois para o dia 9 de outubro de 1809, em Viena. A partida aconteceu e terminou com a derrota “acachapante”, como diriam os locutores de futebol de hoje, do poderoso Imperador da França.
Contam que Napoleão, em dado momento do jogo, executou propositalmente um lance errado; foi, então, corrigido pela máquina. Repetiu o erro e foi de novo corrigido. No terceiro erro, Napoleão foi surpreendido por uma crise de nervos do Turco, que lançou o tabuleiro pelos ares.  Saiu, em seguida, de dentro da máquina Johann Allgaier, um gênio do xadrez.  Como o Biscoito Molhado não é o jornal da cidade de Shinbone de “O Homem Que Matou o Facínora”, não sairá impressa aqui a lenda. É verdade que enxadristas geniais tem chiliques de vez em quando, mas diante de Napoleão Bonaparte, depois de vencer os austríacos, nem o Turco, nem a Turquia inteira se atreveria... Prossigamos.
Décadas depois do jogo com Napoleão, o Turco ainda jogava (é claro, ficou bem mais famoso). Em 1837, no entanto, um enxadrista francês, Jacques François Mouret, procurou a imprensa, e fez revelações escandalosas: um homem poderia enfiar-se no meio dos mecanismos da máquina, seguir o andamento das partidas e mover a mão esquerda do boneco turco.  Só não mostrou na prática como isso acontecia porque o Turco fora vendido para os americanos, há algum tempo.
Nos Estados Unidos, o Turco reviveu o sucesso da Europa, mas as suspeitas de fraude começaram a agitar alguns espíritos. O grande escritor Edgard Allan Poe, percebendo espertezas no ar, redigiu um artigo denunciando a fraude. Paulatinamente, a fascinação que aquela máquina de jogar xadrez exercia sobre a platéia arrefeceu até o Turco virar curiosidade de um museu da Filadélfia, que o recebera como doação. Em 1854, esse museu era completamente destruído por um incêndio, nem o Turco que derrotara Napoleão, nos áureos tempos dos dois, escapou.
O imperador francês era fortemente atraído pelo jogo de xadrez que, na realidade, representa uma guerra, onde os peões vão na frente e o objetivo é matar o rei (xeque mate, Shah mat, no idioma persa significa o rei está morto). Mas trata-se de uma guerra asséptica, sem o troar dos canhões, o levantar da poeira pelos cavalos, os gritos e o sangue, talvez por isso Napoleão Bonaparte, embora aficionado, fosse um enxadrista limitado. Registram os historiadores que o adversário enxadrístico mais constante do Imperador foi o Marechal Ney, que quase sempre o vencia. Preso na Ilha de Santa Helena, Napoleão se distraía com o tabuleiro e as suas trinta e duas peças e sessenta e quatro casas. Talvez por serem raras as vitórias napoleônicas nesse tipo de guerra, há o registro de uma partida sua contra o General Bertrand, em 1818. Napoleão, com as brancas, sai com o cavalo na terceira casa do bispo do rei e no décimo oitavo lance, vence a partida. 
O espirituoso comentarista do jogo de xadrez e escritor, Tartakower, dividiu os jogadores em quatro grupos:
Jogadores fracos que não sabem que são fracos; são ignorantes - evite-os.
Jogadores fracos que sabem que são fracos; são inteligentes – ajude-os.
Jogadores fortes que não sabem que são fortes; são modestos – respeite-os.
Jogadores fortes que sabem que são fortes; são sábios – siga-os.
Napoleão foi um jogador fraco, mas inteligente como era, certamente tinha consciência da sua fraqueza.
Quanto a Che Guevara, de quem prometemos falar, foi um respeitado enxadrista, apesar de amador. Em 1962, em Havana, jogando com as peças pretas, empatou com o grande mestre internacional, argentino como ele, Miguel Najdorf, que enriquecera o universo do xadrez com a criação da “variante Najdorf”. Essa partida foi também registrada pelos historiadores. 
Pretendíamos dizer, no início desta edição, que o documentário do HBO levado às telas da televisão estabelecia um paralelo entre o jogo de Kasparov contra o supercomputador Deep Blue com o jogo entre Napoleão Bonaparte contra o Turco, mas deixamos o documentário de lado logo em seguida. Bem, dia desses retornaremos a ele.

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