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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

2797 - Fúnereo-canino Dicionário Biográfico, o final do Silveira


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5047                      Data: 15 de fevereiro de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE X

 

CACHORROS (03) – O fusca do Luca, ano 1973, foi também uma espécie de ambulância para a cachorrada lá de casa. Banzé, cuja saúde frágil se evidenciou quando ele era ainda novo, obrigou a minha mãe a requisitar, por diversas vezes, o carro do nosso amigo para levá-lo ao médico veterinário Moisés Frimer.

Certa vez, o Luca não estava disponível e eu carreguei o Banzé nos braços, com algum esforço, por boa parte da Rua Chaves Pinheiro, fato esse que agitou todos os quadrúpedes em prisão domiciliar – para citar uma expressão hoje na moda – que latiram, ao vê-lo, ensandecidamente.

Com a morte do Banzé, como já escrevi anteriormente, o Pipi passou a ser o xodó da minha mãe. Ele era mais saudável do que o pai, porém, o Luca, com a sua paciência bíblica, o carregou, vez ou outra, no seu fusca até o Frimer. Levá-lo eu, no colo, pela Chaves Pinheiro, como fizera com o Banzé, era uma hipótese inviável, haja vista a antipatia quase ódio que tomou por mim de uma hora para outra,

Silveira, o mais saudável de todos – talvez a temporada num terreiro de macumba o tenha fortalecido – continuava mordendo os transeuntes incautos, apesar das nossas broncas. Porém, quando recebíamos, em casa, visitas, ele não se mostrava hostil, sendo amigos nossos, respeitava. Do mesmo modo, agiam os demais cachorros, embora a Sapeca tenha sido uma exceção.

Certo dia, uma das nossas primas, recém-casada, nos visitou com o marido. Nós o alertamos para não dar muita confiança à Sapeca, que era dissimulada, mas ele insistiu em paparicá-la.

-”Olha, meu bem: a Sapeca é minha amiguinha” - disse ele para a esposa.  Encerrada a visita, foi mordido por ela na saída. O Big, não contei no momento oportuno, mas aqui vai, também tinha essa mania de avançar sobre os visitantes no momento de eles irem embora, mas não provocou estragos porque ficava confinado no quintal, o que não acontecia com a Sapeca e os demais, que tinham  trânsito livre pela casa.

Sapeca engravidou. Quem era o pai incestuoso? Nunca soubemos, muitos foram os suspeitos. Toda a sua ninhada, no entanto, não vingou, todos nasceram mortos.

Nesse ínterim, uma senhora passou a ir lá em casa, anualmente, para vacinar os nossos animais de estimação contra a raiva.  Quem a indicou? A minha memória falha, mas não consultarei a minha mãe para sabê-lo porque não quero despertar-lhe tristes recordações.

O ano foi 1977, eu trabalhava no Jornal do Brasil, quando a cinomose, provocada pela agulha infectada da vacina contra a raiva, começou a dizimar nossos bichinhos um por um.

Nessa época, meu pai ficava mais tempo em casa, já superara o período em que o trabalho em jornais o prendia por muitas horas, assim, acompanhou o veterinário sacrificando o Pipi, a Sapeca e o Manolo. Minha mãe, sem estrutura emocional para presenciar aquela tragédia, afastou-se, ficando toda a carga com ele.

-”Se eu não tivesse compromissos com todos vocês, eu iria atrás dessa filha da puta e acabava com ela. - disse-me o meu pai com o cigarro fumegante quase caindo dos seus lábios trêmulos.

 Silveira ainda resistia e o meu pai indagou do veterinário se poderia ser salvo; ele respondeu que, talvez com três doses de vacina, ele escapasse, mas não garantia nada. No meu íntimo, duvidei, pois vira o Silveira lambendo o pelo do Manolo, que seria sacrificado poucos dias depois, por mais de um minuto.

Bem, lá foram o Lopo e o eternamente prestativo Luca, no seu inseparável fusquinha, por três vezes a uma clínica veterinária com o Silveira. Ele escapou, apenas um leve tremor nas mandíbulas, quando abria a boca, foi a sequela que restou.

Como único sobrevivente, a paixão da minha mãe por ele cresceu exponencialmente, a do meu pai também.

Minha mãe tratou de trazer um veterinário, o Doutor Jorge, que examinava periodicamente o nosso sobrevivente na Rua Chaves Pinheiro. Numa das suas primeiras visitas, mostrou-se curioso sobre o porquê de ele ter sido batizado de Silveira.

-É porque é magricela como aquele jogador do Fluminense.

Ele discordou prontamente, orientando-nos a apalpar as nádegas do Silveira; feito isso, constataríamos que aquilo era puro músculo, que ele nada tinha de pele e osso, estava bem distante disso.  Nosso cachorro era extremamente musculoso, o que explica, até certo ponto, as muitas mordidas que já dera com seus saltos acrobáticos.

Quando nos mudamos da casa da Rua Chaves Pinheiro para o apartamento da Avenida Suburbana, Silveira perdeu o espaço para seus movimentos e pulos e engordou. Envelheceu e não procurava mais ninguém para morder.

Todos os dias, por volta das 5h 30 min da manhã, meu pai saía com ele na coleira e os dois davam longas caminhadas pelo canteiro que dividia as duas pistas da Avenida Suburbana.  Certa vez, meu pai chegou transtornado desses passeios: um carro capotara e por muito pouco não pegava os dois em cheio. Quando restabeleceu a calma, concluímos que o Silveira, por ter passado um estágio num terreiro de umbanda, ficou com o corpo fechado.

Nesse ínterim, meu pai comprou um apartamento em Del Castilho, mas ficou estabelecida uma cláusula pétrea: só nos mudaríamos para lá depois da morte do Silveira.

Os filhos todos casaram e, como eu era a exceção, fiquei com os meus pais morando na Suburbana. Éramos agora quatro.

Com 16 anos de idade, Silveira caiu doente e o Doutor Jorge não deu esperanças.

Silveira ficou num canto, sobre páginas de jornais e dali não tinha força para se levantar. Mal tocava na comida e na cumbuca d' água que meus pais lhe traziam.

Numa madrugada, fui acordado pelo meu pai, que entrou no meu quarto chorando copiosamente. Soube, então, que o Silveira, depois de dias de prostração, se erguera, caminhou até a cama dos meus pais e, junto a eles, morreu.  Esse último ato do nosso cachorro aniquilou emocionalmente o meu pai e a minha mãe.

Mudamo-nos, então, para o apartamento de Del Castilho. Silveira foi o nosso último cachorro, ninguém mais poderia substitui-lo. 

 

       

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