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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

2793 - Megacanino Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5043                               Data: 08   de  fevereiro de 2014

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE IX

 

CACHORROS (O2) – Morreu o Big sem cruzar com uma fêmea, e ficou o Veludo sozinho, já entrando na terceira idade canina.

Como um animal de estimação, apenas, não bastava à minha mãe, que era uma discípula de São Francisco de Assis, ela mostrou interesse em preencher a lacuna deixada pelo cachorro que nos acompanhou por três casas.

Dona Lurdes, vizinha do outro lado da rua Chaves Pinheiro, esposa do Seu Válter, que me chamava de “Mexicano”, talvez porque o meu bigode se assemelhasse ao do Cantinflas, informou que tinha uma cadela disponível para doação. A minha mãe se interessou e a trouxe nos braços, porque ainda era filhote, para a nossa casa.

O nome?... Tornou-se comum, hoje, cachorros com nome de gente, mas naquela época não era assim, havia muitos Nero, é verdade, uma das poucas exceções (E Nero, o imperador, foi ser humano?...).

Minha mãe, com a aprovação do meu pai, resolveu que o nome da nova moradora seria de uma ópera. Ela gostava mais da “Manon Lescaut” de Puccini do que da “Manon” de Massenet, mas, para uma cadela, preferiu a do compositor francês; também pesou o fato de nome e sobrenome para um quadrúpede ser um exagero – até hoje não ousaram tanto.

Manon era, como o Veludo, de pelo negro do primeiro fio da cabeça ao último da cauda, e também era bem menos encorpada do que ele.  O nome que melhor espelharia a recém-chegada, sem sair do mundo operístico, seria “Mignon” devido ao seu tamanho diminuto, não à personagem de Goethe transformada em ópera.

Veludo tinha, agora, uma fêmea ao seu alcance, mas não se portou como um pedófilo: esperou que ela crescesse.  A infinita tranquilidade do Veludo, que se tornava ainda mais relevante quando o comparamos com o Big, talvez fosse a espera por uma companheira que lhe estava destinada. Ele conseguiu um feito que deixaria o incrível Big invejoso: cruzou com uma cachorra.

Apesar de ser um cão idoso, foi fértil. Dos filhotes, minha mãe só ficou com dois, que foram chamados de Sapeca e de Banzé, este obviamente inspirado no filme “A Dama e o Vagabundo”, além das histórias em quadrinho.

Veludo, cumprida a sua missão de reprodutor da espécie canina, cerrou os olhos para sempre deixando-nos tristes, pois era muito querido.

Manon, por seu lado, era uma esfaimada. Lembro o osso de carré que arremessei para ela roer, durante uns quinze minutos, pelo menos, qual o que, ela o engoliu no ar sem sentir o seu gosto. Espantei-me com aquela ganância que nunca vira na Totó, no Big e, muito menos, no Veludo.

Todos que tiveram cachorros no quintal sabem que atos como os de Jocasta e Édipo não se tornam tragédias gregas; no mundo canino são naturais, não se vê cão necessitando de psicanálise. Assim, Banzé e Manon cruzaram, e nasceu uma ninhada. Meu pai, principalmente, e minha mãe se assustaram com o número de filhotes, seis machos, e eles foram colocados à disposição de quem quisesse adotar alguns deles.

Uma colega da minha irmã desde o tempo em que morávamos na Rua São Gabriel se prontificou a levar o malhado de preto e branco com uma máscara de Zorro, não para si, mas para uma conhecida sua. Minha mãe consentiu na doação desde que fosse informada do endereço do novo lar desse filhote.

Ficaram conosco Don Pixote, Sapeca e Manolo, este tão negro quanto a mãe e o avô.

Teve saudades dos filhotes que havia dado? Minha mãe me disse que não, porém, a desconfiança crescia no seu íntimo; ou seja, o seu sexto sentido lhe dizia que alguma coisa não ia bem com um deles, por isso, rumou para o tal endereço que a amiga da minha irmã lhe dera com o Lopo, meu irmão mais novo. Lá, encontraram o filho do Veludo e da Manon, num cercado de terreiro de macumba, preso num cubículo onde havia pouca água na cumbuca e um prato com comida de aspecto suspeito.  Minha mãe não pensou duas vezes: pediu ao meu irmão que desamarrasse a corda do cachorro. Ele colocou o bicho no colo e eles o trouxeram definitivamente para a nossa casa. Nosso mascarado viria a ser o cachorro mais significativo que tivemos.

Ficou famoso como Silveira, quem escolheu o nome foi o meu irmão Claudio; argumentou ele que era tão magro quanto o jogador de meio de campo do Fluminense, em meados dos anos 70, de potente chute, e ninguém discordou, dizendo que Zorro lhe cairia melhor.

Tínhamos agora, pela primeira vez, vários cachorros em casa. O quase canil ficou, assim, difícil de administrar. Mãe e filha se odiavam, por isso, Manon e Sapeca não podiam conviver no mesmo espaço. Se bobeássemos, deixando um buraco na fronteira estabelecida entre as duas, elas se atracavam, e separá-las, requeria, no mínimo, dois de nós.

Manolo tinha o gênio do avô: contemplativo sem ações arrojadas.

Dom Pixote crescia enquanto o seu nome encurtava, ficou “Pipi”.

Silveira continuava aparentemente magro. Apesar do contato quase nenhum com a rua, apenas umas brechas a guisa de ornamento na parte superior do muro e a parte de cima do portão, ele deu de morder os pedestres que passavam distraidamente pela calçada, ou se encostando no muro à espera do ônibus – o ponto fica a poucos metros da nossa casa. De emboscada, Silveira, ouvia passos e, com a sua audição apuradíssima, sabia qual era o momento exato em que a vítima estava ao alcance dos seus dentes, saltando com uma agilidade felina sobre ela. Tudo bem sincronizado. Quando reclamavam, argumentávamos que ele se achava dentro de casa e informávamos que era vacinado.

Fizemos uma estatística e chegamos a 17 mordidas dados pelo Slveira nos transeuntes desatentos. Ele, no entanto, conosco, sempre foi dócil sem se mostrar um cão carente que se desmancha com cafunés.

Manon não viveu muito, pegou uma infecção ou outra doença – não sei até hoje porque um veterinário não foi chamado – e se foi.

Enquanto isso, a minha mãe se apegava ao Banzé. Ela, com a morte do Fluminense – falaremos dele no vocábulo gato – transferiu grande parte do seu amor pelos animais para ele. Banzé, no entanto, não viveu muitos anos, e o xodó da mamãe passou a ser o Pipi.

Pipi, que sempre foi um dos meus melhores amigos, não sei por que cargas d' água, passou a me hostilizar. Eu não podia me aproximar dele que arreganhava todos os dentes e rosnava. Por quê?... Anos depois, inferi que fosse por ciúmes da minha mãe. Os cachorros também podem ser ciumentos como Otelo.

 

 

 

 

 

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