Total de visualizações de página

segunda-feira, 24 de junho de 2013

2414 - Zeca Gavroche




O BISCOITO MOLHADO
Edição 4214                                   Data:  22  de  junho de 2013

NA  REVOLTA  DO  VINTÉM

Esfreguei os olhos, como se não acreditasse no que via, pessoas de chapéu e bengala, e disse:
-Elio, estamos de volta ao Brasil.
-Não no Brasil de 2013, a não ser que seja carnaval.
-Com tanto tempo viajando pelo passado, você se esqueceu que o carnaval se resume, desde o final do século XX, a escolas de samba, trios elétricos... A criatividade popular se foi.
-Carlos, olhe ali. - apontou.
-Um bonde puxado por burros! - exclamou.
-Coitados dos burros. - penalizado, essa foi a minha primeira reação.
-Lembra-me uma crônica do Machado de Assis que tive de ler no Colégio Militar quando eu estava na turma do corte e costura.
-Entendo, você foi para turma de corte e costura atrás das costureiras. - não perdi a piada.
-Nos anos 50, não entravam meninas no Colégio Militar. - defendeu-se.
-Elio, nessa crônica do Machado de Assis, dois burros conversam sobre o fim da atividade deles porque seriam substituídos pelos bondes elétricos; um demonstra otimismo, o outro, pessimismo.
-O pessimista estava certo, pois não ficaria ocioso, puxar carroças de lixo seria o destino deles.
-Até que o Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, acabou com essa maldade; burros arrastando carroças de lixo debaixo de vergastadas a 45º de calor.
Elio, que não gosta do governador, não disfarçou a contrariedade quando mencionei seu nome, mas logo se refez.
-Fora o vintém. Fora o vintém.
O alarido de uma pequena multidão convergiu a nossa atenção.
-Carlos, uma passeata.
-Em que ano estamos?... Precisamos saber, pois essa agitação, pelo que vejo, entrou para a história do Brasil.
Elio foi, imediatamente, atrás de um menino que vendia jornais e retornou meio esbaforido com um monte de jornais nas mãos.
-Carlos, ele me deu todos os jornais dizendo que participar da passeata era o que lhe interessava.
-Se houver barricada e esse garoto estiver nela, não haverá mais dúvidas: ele é o nosso Gavroche.
-Carlos, hoje é 28 de dezembro de 1879. - informou-me ao ler o cabeçalho da Gazeta da Noite.
E, prosseguindo na leitura do jornal, disse:
-O ministro da Fazenda, Afonso Celso de Assis Figueiredo, aumentou a passagem do bonde para vinte réis, ou seja, para um vintém.
-Como estamos em 1879, Joaquim Callado ainda vive, vou gravar uma apresentação do seu grupo de chorões e levar para o Dieckmann, que precisa conhecer melhor uma das mais representativas personalidades da música popular. (*)
-Carlos, o Fred Figner não trouxe ainda o gramofone e o fonógrafo para o Brasil, aliás, as invenções ainda não foram aperfeiçoadas.
 Não perdi, porém, o entusiasmo:
-Vamos, então, para a passeata, pois fatalmente encontraremos nela a Chiquinha Gonzaga, uma das mais combativas representantes da Revolta do Vintém.
-Calma, Carlos, isso não será resolvido hoje, as manifestações populares irão até o dia 4 de janeiro do ano que vem, ou seja, 1880.
-Sua mãe, Dona Sarita, lhe ensinou isso?
-Mamãe ensaiava suas aulas comigo, ela dizia que, se eu entendesse, seus alunos do Pedro II também entenderiam.
-E você aprendeu direitinho tudo o que ela lhe ensinou sobre a Revolta do Vintém?
-Esqueci muita coisa, mas sei que o ministro da Fazenda que citei se tornaria, mais tarde, o Visconde de Ouro Preto.
 -A São Cristóvão. - gritou alguém com o penacho de líder.
-Por que São Cristóvão se é tão longe?- intriguei-me.
-Porque lá fica a sede do palácio imperial. - lembrou-me o Elio.
Enquanto aquela pequena multidão marchava, nem sempre ordeiramente, para a residência de Dom Pedro II, eu e Elio esperamos o bonde.
-Temos 40 réis para pagar a passagem?
-Tenho um dólar no bolso e a moeda americana sempre teve valor no Brasil.
Não foi preciso o Elio tirar a moeda do bolso, pois negociou antes e, assim, viajamos ao custo de vinte exemplares de jornal, aqueles que ele recebera gratuitamente do nosso Gavroche.
Na viagem, soubemos que o bonde só subiria para um vintém no dia 1º de janeiro de 1880.
-Elio, o Mário Henrique Simonsen, quando ministro do governo Geisel, queixava-se das majorações dos preços na virada dos anos, chamando isso de inflação gregoriana, mas constata-se que a coisa é antiga no Brasil.
Meu companheiro de viagem pelo tempo limitou-se a sorrir.
Chegamos, evidentemente, à Quinta da Boa Vista bem na frente dos manifestantes. Enquanto aguardávamos, compramos alguns rebuçados. Elio tirava o papel de um deles para levá-lo a boca, enquanto eu me detinha na leitura da única edição da Gazeta da Noite que restou conosco.
-Por que você franziu a testa? - interessou-se.
-Estou lendo um artigo do Lopes Trovão e ele escreve com uma ênfase de Zola contra o aumento do bonde.
-Ele foi um dos mais destacados republicanos, minha mãe me ensinou muito antes de o meu professor de História de História do Colégio  Militar se referir às causas e às consequências da República..
-Lopes Trovão era um dos intelectuais do grupo integrado por Chiquinha Gonzaga, ou seja, ele não era retrógrado. - comentei.
Um rumor que vinha de longe e, a cada minuto, crescia em intensidade abalava São Cristóvão.
-São eles.
E eram muitos, pelo caminho, mais pessoas engrossaram a marcha dos descontentes. A força policial, alertada, observava aquela massa humana sem intervir.
Pediram calma e uma voz se levantou sobre o barulho da massa: era Lopes Trovão que discursava.
O imperador se prontificou a receber os líderes do protesto, mas Lopes Trovão se recusou a negociar.
-Por que, Carlos?
-Porque Lopes Trovão está vivendo seu grande momento e vai prolongá-lo por alguns dias, pelo que deduzo.
-E Machado de Assis?...
-A essa hora, ou escreve um conto, uma crônica, algum soneto,  ou um romance. - respondeu-me.
-Se não estiver jogando xadrez, pois foi um enxadrista amador também talentoso. - acrescentei.
A multidão se dispersou, com o pedido do Lopes Trovão, mas a insatisfação, que estava no ar, deixava evidente que o desfecho não seria pacífico.
Eu e Elio conseguimos nos hospedar numa casa de pensão, não muita diferente daquela que foi descrita por Arthur Azevedo, no seu romance, à espera dos acontecimentos.
Na passagem do ano, ouvimos muitos foguetes, mas também sons suspeitos, que nos pareceram tiros de armas de fogo.
Bem, se o povo estava descontente antes de pagar um vintém pelo bonde, imagina-se o que aconteceu quando o aumento se concretizou. Não, não dá para imaginar. Na Rua Uruguaiana, Largo de São Francisco e arredores, cidadãos pacíficos, aparentemente, se tornaram possessos pela fúria. Paralelepípedos eram arrancados do chão, depois os trilhos, condutores dos bondes eram espancados violentamente...
-Carlos, esfaqueiam até os burros.
-O que os pobres dos burros têm com isso. - revoltei-me.
Mas os manifestantes estavam mais revoltados do que eu, a polícia avançou sobre eles com truculência fazendo vibrar sobre o lombo de muitos os seus enormes cassetetes.
-São as “bengalas de Petrópolis”, assim minha mãe me disse que era como o povo chamava os cassetetes dos policiais.
-Provavelmente, porque Petrópolis era a cidade de veraneio do imperador.
Mas não pude prosseguir porque quase escorreguei numa poça onde se misturavam o sangue dos burros e das pessoas.
-Os capoeiristas vieram para cá brigar, enquanto os arruaceiros para saquear as casas comerciais. - observei, olhando a agitação ao redor.
-As tropas do Exército chegaram para controlar a turba enlouquecida.
Mal o Elio disse essas palavras, um pedra arremessada atingiu em cheio a cara do comandante, o tenente-coronel Antonio Eneias, primo do Deodoro da Fonseca. Desatinado, ele ordenou aos soldados que atirassem. Muitos caíram feridos e mortos. No meio da fumaceira da pólvora, nós reconhecemos o garoto dos jornais. Entre os mortos e os feridos,  ele recitava:
-Se um vintém sai da algibeira,
Pobreza vem mais ligeira.
Quem provoca o despautério
É gente do ministério.

Cobre no bolso não tem,
E ainda nos tiram um vintém.
Maltrapilho, eu causo pena.
A culpa é de quem ordena.

E saltando sobre feridos e mortos, prosseguia:
-É muito suor no rosto
Para pagar tanto imposto.
Tudo fica mais sinistro,
A culpa é desse  ministro.

Com a morte raspando por ele, não parava.
-Chove bala em vez de chuva,
Machuca mais que saúva.
O quadro é desolador,
A culpa é do impera...

Uma bala o atingiu no peito, mas o menino valente ainda conseguiu pronunciar antes de morrer:
- dor...
Os sobreviventes não se deram por vencidos.
E não foram, de fato, derrotados. Quando tudo amainou, embora a pólvora ainda fedesse, lemos na Gazeta da Noite, no dia seguinte, que o reajuste do preço do bonde fora revogado.
-A Revolta do Vintém vai ser notícia até no The New York Times. - previu o Elio.
E acertou.
Logo depois, o ministério caiu.

(*) O redator do seu O BISCOITO MOLHADO deve ter levado o celular. Não funcionaria como telefone, mas sim como filmadora, ou gravador, desde que ele soubesse mexer nos botões. Até que acabasse a carga da bateria...

Nenhum comentário:

Postar um comentário