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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

3090 - FM cabeluda



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5350 FM                           Data: 5 de fevereiro de 2018

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXV

 OS PELINHOS (modificado)
                  

Meu amigo J. já  está na chamada terceira idade mas ainda em pleno (quase) vigor, equilibrando-se corajosamente no corpo de uns 70 quilos, 1,75m de altura, que vai diminuindo conforme o avanço da idade, já além dos 70 anos, equilíbrio mantido à custa de constantes exercícios físicos pela manhã, completados com longas caminhadas à beira mar, no sofisticado Leblon onde os mais ricos se deleitam, com o que a sorte lhes deu ou, de outro modo, o que a falta de caráter  lhe proporcionou, abrindo-lhe as portas das trapaças, metendo a mão nas burras das empresas governamentais, em conluio descarado com empresários inescrupulosos, que pagam à vista o que tiram dos superfaturamentos nas obras realizadas.
O detalhe, para ele, não tem importância, que disso cuide a Justiça,  que tem os aplicativos merecedores. Para o meu amigo, importa apenas o bem bom da vida que leva, sem atribulações, vai levando sem pensar no futuro. Isso ele faz com prazer,  pois é quando consegue estar só, isolado do mundo, para pensar e criar histórias. Sempre nos encontramos nos fins das tardes calorentas, para discutir as misérias do mundo, durante dois ou três chopes gelados. É um consolo e um conforto para nós ambos, durante agradáveis momentos de relembranças. Vale a pena, porque sempre me divirto com suas histórias, não sei se inventadas ou se terão sido acontecimentos verdadeiros. Pois hoje é dia, aí vem ele neste lusco-fusco de pleno Verão.
- Eis que chega o varão do Verão!
- Olá, meu caro, tudo bem, por aqui?
- Como sempre. Abanque-se, que seu chope está chegando...
- Ótimo, é dele que preciso.
- Saúde!
-Tim tim.
- Sem falar em política, sem mencionar a vida agitada, os assaltos, a crise de moral, e por aí vai, que o rosário de maldades é interminável.
- Sinal dos tempos, meu caro. Mas tudo acontece como se fosse programado. É o “Eterno Retorno”, do  filósofo.
- Você acredita?
- Claro! De um modo ou de outro, tudo se repete, na vida. Pelo menos nas minhas lembranças. O mundo gira, a bolinha cai sempre no mesmo lugar... ou quase. A propósito,  neste exato momento, a minha memória me leva de volta a 52 anos passados.
- E o que houve, nesse dia?
- Algo que aconteceu, de que sempre me lembro  e  do que jamais comentei com alguém. Cumpri na risca, uma promessa.
- Posso saber?
- Pode, sim. Mas não me pergunte o nome do santo ou melhor da santa, que é segredo.
- Alguém que eu conheça?
- Não posso dizer. Do nome, vai apenas a primeira letra: L.
- E o que aconteceu com essa Luíza?
- Não é Luíza nem Laura, é Lindinha, como eu a chamava carinhosamente. Era linda, belo corpo, longos cabelos e olhos castanhos, pele muito clara, fina, suave...olhar terno, simpática, um encanto de pessoa.
- E o que houve com a sua Lindinha?
- Vou contar tudo, desde o começo, para ir remoendo nos neurônios o que se passou entre nós.
- Mais um caso de amor...
- Apenas um caso.
- Diga lá!
- Era uma jovem entrando nos seus 18 anos,  como já disse, lindinha, amiga da família desde há muito tempo. Tudo aconteceu por acaso, não sei explicar se obra do destino, ou... sei lá. Eu já estava casado há uns três anos.  Pela amizade, visitava a L. e sua irmã, casada, cujo marido saiu dos trilhos, passou a mão na cunhada, levou um tapa com a advertência de  que jamais repetisse. O caso caiu no esquecimento, mas logo a cunhada conseguira um bom emprego, disse à irmã que ia “dar uma folga”, decidira morar com duas outras colegas de trabalho. E Foi. Geralmente nos encontrávamos nos fins de semana, íamos ao cinema, até que um dia desses, ela chegou à porta e me recebeu com um lindo sorriso, docemente perfumada, abracei-a e dei-lhe um beijo.
- E ela?
- A surpresa foi tão grande que quase desmaiou.
- Repeliu?
-Não. Segurei-a pela mão, saímos como se nada houvesse acontecido.  No cinema, durante o filme, dei-lhe mais deliciosos beijos.
- E aí?
- A história é longa, vai para mais de três anos de duração.
- De beijos e...
- Nada mais. Jamais comentamos o que vinha acontecendo. Eram momentos deliciosos. Nunca pude imaginar o que estava acontecendo. E acontecia aos sábado e  às vezes, também aos domingos. O cinema era o recanto preferido.
- E você nunca ousou ir um pouco além?
- Não tive coragem, a não ser vez ou outra, um pouco de ousadia, quando ela permitia deixar que o seio pequeno, de pele fina e veias azuladas, pelo sangue quente que o tornava intumescido, coubesse na palma de minha mão, penetrada suavemente por sua blusa. O calor que dominava nossas emoções era maior que a tentativa do controle do pudor. Faltam-me palavras para descrever os breves e deliciosos momentos que continuam nas minhas doces lembranças, ainda encantado pela sensação do leve carinho entre meus dedos, que sinto como se fosse hoje. Além disso, os beijos eram tão deliciosos que satisfaziam os nossos sentimentos. Aliás, ela era virgem. Talvez por isso...
- Três anos de beijação!
- É como lhe digo. Até que... aí é que vem o inacreditável. Um dia, ela estava só, em casa, quando cheguei.
- Entra, espera um pouco.
- Entrei,  uns dez minutos depois ela surgiu envolta numa toalha, saíra do banho...
- Aí deu-se o imbróglio...
- O quê?
 - ... Você endoidou!
- Quase. Aproximei-me, dei-lhe um longo beijo, passei a mão por seu belo corpo, tentei ir adiante ela afastou-se um pouco, disse “Não”, estranhei, perguntei por quê, e ela:
- É que vou casar.
- Como?
- Verdade. E hoje é o nosso último encontro.
- Então, me dá um presente.
- Depende...
-  Uma lembrança
Ele enrolou-se novamente na toalha, perguntou o quê, e eu, cinicamente:
     - Quero uns pelinhos para guardar.
    Ela sorriu, apanhou uma tesoura, cortou  um pouco, pôs numa caixa de fósforo e disse: “Um pouco de mim, guarde para sempre, jamais comente com quem quer que seja. Promete? “ Eu respondi que sim, ela disse “ jure”, jurei. E guardei a lembrança.
- E daí?
- Despedimo-nos...  e os anos se passaram.
- Nunca voltaram a se encontrar?
- Nunca mais. Uns dois meses depois, houve   o seu casamento com o gerente do laboratório farmacêutico  em que trabalhavam. Conheceram-se, em pouco tempo aconteceu.
- E depois?
. Em casa, colei fita plástica, guardei o presente até ontem. Era a data do seu aniversário, apanhei a caixa do meu segredo, a Caixa de Pandora. Era apenas um segredo que tinha em volta muitos segredos, parte da minha vida e da dela, a L. que alimentou meus sonhos por três anos e por mais 52. Não resisti, telefonei:
- Olá, Sabe  quem está falando?
- Claro!
- Parabéns.
- Obrigada.
- Você se lembra?
- Lembro-me e tudo.
- Sente saudades?
- Não sei, talvez.
- Você é feliz?
- Penso que sim. Sou religiosa, sou abençoada, acho que tenho sido feliz. E você?
É difícil definir o que seja felicidade. Para o filósofo Aristóteles - se você permite a citação, a felicidade é o maior desejo dos seres humanos. E a melhor maneira de ser feliz é através da virtude. Cultivando-a, alcança-se a felicidade. Francamente não sei se fui uma pessoa virtuosa. Mas, pelo que alcancei ao longo dos anos, não tenho o que reclamar. Terei sido feliz, pois consegui, a duras penas, realizar muitos dos meus sonhos.
- Eu também, disse ela.
Perguntou pela minha mulher, disse-lhe que havia morrido três dias depois do seu casamento.  Teve um problema cardíaco. Ela disse que lamentava muito, fez uma peque pausa,  deu um longo suspiro, disse: “um beijo”, deu tchau e desligou.
- É o que eu sempre digo, as mulheres são um grande mistério.
- Concordo.
-Sua mulher, não desconfiou?
-Jamais desconfiou, não terá visto a caixa. Devo dizer que fomos felizes, sempre. Dela tenho saudades, como também da Lindinha, que encantou meus sonhos.
- E a Caixa de Pandora?
- Logo depois do telefonema, queimei-a.
- Abriu-a?
-  Hein?
- Viu novamente os pelinhos?
- Meu caro, aqui vale recordar o poeta francês Félix Arvers:
“Mon âme a son secret,
   ma vie a son mystére.”
 - Interessante, mas acho que ficaria melhor, o contrário: "Mon âme a son mystére..."
 - É verdade, mas isso fica por conta dos mistérios e dos segredos da vida.
 - É isso. Então, vamos ao nosso penúltimo chope, que o tempo passa…
 - E as lembranças ficam!



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