O BISCOITO MOLHADO
Edição 5338
D Data:
19 de novembro de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXV
FI-LHO-DA-PU-TA!
Heloísa não
desconversou: -Aí eu congelei.
As razões do
congelamento intelectual derivam da surpresa, ou de um conjunto de surpresas e
são impossíveis de controlar.
O homem
chamava-se Drury, não tinha qualquer traço estrangeiro, ao contrário, era
completamente carioca, quem o batizou devia gostar do uísque. Estivera sentado
em um círculo de mulheres sorridentes e gargalhantes, e suas pernas trançadas
sugeriam uma atitude nada máscula. A calça justa, branca e a fivela do cinto
ligeiramente espalhafatosa pareciam confirmar essa primeira impressão.
O sussurro no
ouvido de Heloísa foi mesmo inesperado. Era quente, vaporoso, mas não úmido, e
tinha não um sotaque, mas um pronunciar gutural. Para quem tinha se apaixonado
por fonética, vendo Rex Harrison nos primeiros movimentos de My Fair Lady, era
impossível não perceber aquele farfalhar grave, solene, notável apenas em
certos encontros consonantais.
Só faltava um
peteleco para o encontro total.
Nem demoraram
mais na festa, como em um piquenique, saíram sorrindo a pé pela Oswaldo Cruz
até o prédio do homem, nem grandioso, nem mixuruca. A porta aberta dava para um
visual meio enluarado do granito do Pão de Açúcar, visível entre árvores, numa
dessas raras combinações de luz e sombra que as vistas do Rio de Janeiro
preparam para embalar os sonhos mais fantasiosos.
Drury foi
pegar uma bebida e Helô sentou no sofá imaculado, entre simétricas almofadas de
seda, todas com um bico achatado na parte superior, como se esperassem uma
régua para alinhá-las. O homem era um decorador de tudo, exterior, interior,
fonética. Em frente ao sofá, uma mesa com tampo de vidro escuro e de forma
irregular, continha uma meia dúzia de livros, bem dispostos e de vários tamanhos,
mas um se destacava, pela cor de um azul muito escuro, pela capa dura e por estar
meio escondido.
O primeiro é
sempre o que está por baixo. Helô pegou o livro da capa azul, onde se lia
CARTOONS!, assim, com exclamação, como o título desta história.
Voando em
desenho meticuloso, estavam dois gansos em ato sexual e abaixo, o conhecido
dito Fly United, da United Airlines. Aquilo era bem achado e seria impossível
não seguir livro adiante.
As folhas não
eram impressas no verso e poderiam ir decorar qualquer parede onde não houvesse
uma exagerada repressão de costumes.
Na segunda
página, uma Margarida com véu de odalisca fumava ópio de um narguilé, enquanto
João Bafodeonça, de camiseta, fazia com as mãos um sinal de paciência aos
comparsas: “ela ainda não está no ponto...”
Depois,
Branca de Neve dobrava sua saia comprida para pendurá-la nos pequenos cabides
do anões, cuja canção vinha pela janela, ...pra casa agora eu vou...
Página
virada, um cenário de caubói, Tonto algema Dale Evans de braços e pernas
abertas, enquanto Zorro venda a vista de Roy Rogers dizendo: "melhor você não
ver!"
Sininho,
imaculada de meia arrastão e asinhas, desabotoa a fivela das calças vermelhas
do Capitão Gancho e dialoga: “comigo aqui, você não se machuca”, uma óbvia
referência à dificuldade de se manusear fivelas e botões com um gancho afiado.
Adiante, o único nu frontal, a clássica cena do acidente de Jessica Rabbit, em
que os desenhistas da Disney, insatisfeitos com o salário, a colocaram sem
calcinha, enquanto rodava pelo ar. Três anos depois, a cena se tornaria um caso
de sucesso entre os adolescentes de todo o mundo, munidos de vídeo cassetes e pause.
Tudo assim,
sugerido, mas sem grosseria, parecia decifrar Drury, seus fonemas, sua calça
justa, seu jeitão nada ameaçador.
E mais Helô
veria no livro, se não fechasse os olhos e sonhasse com a Luluzinha entrando no Clube do Bolinha, onde "menina não entra" para possuir o próprio Bolinha. Essa era a gravura que faltava no livro e Helô a materializaria em seu cada vez mais borbulhante pensamento, se Drury não voltasse com uma garrafa de também borbulhante champanhe, balde e uns
amendoins em lata. Enquanto a garrafa era aberta, na lata de amendoins via-se vários
caracteres, no mínimo em sânscrito, que decoravam a tinta branca, dando a
impressão de formar a palavra Kamasutra.
Mas talvez fosse só impressão. Que era
perfeita, quadros alinhados na parede, uma cor musguenta atrás de uma TV, tudo
se encaixava entre luzes indiretas e os brilhos ocasionais de uma escultura de
bronze.
Helô era só borbulhas. No caminho
para o quarto, ainda viu uma estante de três níveis encaixada na parede,
onde quatro ursões de pelúcia repousavam na prateleira superior, meia dúzia
de ursos ficavam na prateleira do meio e na inferior, uma dúzia de
mini-ursinhos.
Dentro do
quarto foi uma festa. O amendoim era longo e possuía um sabor indescritível, o
rótulo em forma de escudo normando da champanhe era da Pérignon e tudo somava.
Helô não deixou barato e nem pra depois.
Só de relógio
de pulso, minúsculo porém marcador de horas, percebeu que já era hora de
terminar o prazer e de pensar na aula de amanhã, às oito, depois de uma hora de
trânsito.
Drury vestiu
então um robe de seda lilás com o monograma H em roxo.
Com um sorriso
estampado, Helô olhou mais uma vez para o quarto e não freou um cumprimento à
performance dele e, já que ela também estava lá, arrematou: "e eu também não fui
mal, não...?"
- - Helô,
você foi maravilhosa, disse, enquanto abria a porta. E, apontando para a
estante do corredor: “escolha um dos ursinhos da prateleira do meio pra você”.
O que era uma desconfiança, agora virou certeza. Carlos Zéfiro, a exemplo de Elvis Presley, não morreu ! No momento, ganha a vida como colaborador do " Biscoito Molhado ". Aguardemos seu próximo texto. Fartamente ilustrado,é esperar para ver.
ResponderExcluirInfelizmente a produção do seu O BISCOITO MOLHADO não permite a inclusão de desenhos ou fotografias. Não fosse assim, a escultura de bronze mencionada, dura e ereta, além de lustrosa e brilhante, estaria em primeiro lugar. E o desenho da nada fada Sininho, em segundo.
ResponderExcluirDevido a púdicas ponderações dos leitores do seu O BISCOITO MOLHADO, o editor obteve do redator de Ursinhos de Pelúcia a necessária revisão do palavrão do título até então considerado ofensivo. Crê-se que beneditinos e inacianos poderão superar melhor o início da história.
ResponderExcluirEd.
PUDIBUNDA CRIATURA, O ACENTO PUDONOROSO CAIU NA LETRA ERRADA. FALTA DE CUIDADO NA DIGITAÇÃO.
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