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segunda-feira, 13 de novembro de 2017

3077 - SX Uerrom?



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5337 SX                           Data: 13 de novembro de 2017

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXV


MORRE O ÍDOLO

Faz cerca de quarenta anos. Os jornais passaram um bom tempo se ocupando da queda do Learjet que vitimou o deputado federal Pelópidas Nonato, do Ceará. A queda do avião, segundos depois de decolar do Aeroporto Internacional do Galeão, seria, por si só, motivo para muitas manchetes. Mas o fato foi potencializado pela presença, a bordo, de Kelly Bordéu, estrela do teatro de revistas, que fazia muito sucesso com "Piriri no Pororó", grande atração da Praça Tiradentes.

O Globo, Correio da Manhã e Jornal do Brasil optaram, pelas circunstâncias, por tratar o assunto com a discrição possível. O mesmo não aconteceu com a "Última Hora", que tinha pavor do deputado Pelópidas, líder do governo revolucionário de então. Mas quem chutou o balde para valer foi a "Luta Democrática". O escrachado jornal teve a ousadia de publicar em letras garrafais a manchete "Dona Santinha não estava a bordo!" Santinha, todos sabiam, era a esposa do deputado Pelópidas.

Quando se imaginou que o frenesi em torno da queda do Lear estivesse começando a arrefecer, uma constatação colocou mais lenha na fogueira. Havia mais um passageiro a bordo! Trajando uma vestimenta própria dos mecânicos, sujo de óleo, seu corpo foi encontrado a uma distância razoável do local em que o avião atingiu o solo. Por conta disso, os investigadores levaram algum tempo para ter certeza de que o cidadão estava envolvido no acidente aéreo em pauta.

Acompanhei com atenção a evolução dos acontecimentos. Atenção que alcançou seu ponto máximo quando as autoridades conseguiram identificar, finalmente, o nome da última vítima do Learjet. Fiquei tonto quando a Rádio JB divulgou seu nome, em primeira mão: Nelson de Assis Pereira de Carvalho. "Nelsinho", morador da República do Peru, ex-aluno do Santo Inácio, exímio nadador, cracaço do futebol de praia, ídolo, talvez por conta de suas maluquices, de muitos garotos da República, como eu, cerca de cinco anos mais jovens do que ele.

Fazia tempo que não tinha notícias do Nelsinho. Eu completara a faculdade de economia, estava casado e não morava mais na República do Peru. Recebia ocasionalmente uma ou outra informação sobre ele, todas dando conta de que a vida lhe tinha sido adversa.

Com o correr das investigações, as autoridades chegaram a uma incrível conclusão. Nelsinho estava envolvido no tal acidente, mas não era passageiro do avião. Na verdade, fora o causador da queda do Learjet!

Não é fácil explicar, mas a coisa aconteceu mais ou menos assim : Nelsinho, trilhando seu calvário de problemas existenciais e financeiros, conseguira um emprego na Recauchutadora Oriente, em Duque de Caxias, localizada nas proximidades da pista auxiliar do aeroporto do Galeão. Uma empresa de porte, apta a reformar pneus especiais, fossem eles de avião, ou das gigantescas empilhadeiras operadas ali perto pela Supergasbrás.

Sabe-se lá porquê, numa atitude bem ao estilo da figura que eu conhecia, Nelsinho resolveu colocar quatrocentas libras de pressão num gigantesco pneu que estava consertando. Permanecia de pé, em cima do artefato, martelando-o furiosamente. Deu-se uma terrível explosão. Houve quem achasse que Duque de Caxias sairia do mapa. Meu amigo foi projetado como um míssil. Não fosse o Learjet do deputado, que ele derrubou, teria alcançado a primazia de se tornar o primeiro brasileiro a entrar em órbita. Sorte do Coronel Marcos Pontes que, em circunstâncias muito menos emocionantes, visitou, a bordo de uma nave Soyuz, a Estação Espacial Internacional, anos mais tarde.

A turma da República do Peru proporcionou um sepultamento digno ao Nelsinho. Muitos haviam presenciado suas proezas de excepcional nadador, que deixavam atônitos os frequentadores do Posto 3, em Copacabana. A mise en scène era sempre a mesma. Ele chegava à praia por volta do meio dia, em dias de tremenda ressaca. Fazia por diversas vezes o sinal da cruz e se jogava ao mar, ignorando apelos frenéticos de mocinhas e mães de mocinhas que frequentavam nosso pedaço de praia. A performance era conhecida. Passava uma boa meia hora furando ondas gigantescas. Quando chegava á conclusão de que metade da mulherada da plateia havia enfartado, escolhia finalmente a onda em que pegaria um tresloucado "jacaré", retornando à areia. Era sempre recebido por uma multidão de admiradores. Especialmente admiradoras. Uma única exceção aconteceu no dia em que essa onda “grand finale” arrancou-lhe o calção e nosso herói completou seu enredo inteiramente nu.

No Santo Inácio, as presepadas do ídolo também ficaram famosas, tendo culminado na sua expulsão do colégio, no início dos anos sessenta. Lembro bem de duas confusões em que esteve envolvido. Nelsinho era um grande consumidor de "Puf", um dispositivo junino que, jogado ao chão, produzia uma grande cortina de fumaça. Era um susto e tanto. Inadvertidamente a vítima cruzava com nosso amigo, o "Puf" era jogado ao chão e, em meio à fumaceira, Nelsinho gritava : "Mandrake!" Fora o susto, tudo acontecia sem maiores problemas. Até o dia em que escalou como vítima o Carlinhos Bornay, um dos mais delicados alunos do colégio. Carlinhos sofreu um desmaio e foi levado às pressas para a enfermaria do Santo Inácio. Nelsinho foi agraciado com uma suspensão.

Sua expulsão não demorou a ocorrer. Num acesso de gentileza e bons modos, ele  foi visto no recreio portando uma bandeja repleta de bombons. Cruzava com os colegas e candidamente indagava: "Aceita?" É claro que todos aceitavam. Pouco depois o recheio dos acepipes podia ser identificado em meio a muita tosse e engasgos. Variava de serragem a sabão de coco. Novamente, a molecagem poderia não resultar em grandes problemas. Mas não foi o que aconteceu. Osório Neves, o rei dos puxa-sacos, disse para Nelsinho que degustaria a oferta mais tarde, possivelmente em sala de aula. Nelsinho vibrou com a confusão que disso resultaria. Mas o pior aconteceu. O rei dos puxa-sacos resolveu transferir o mimo para o Padre Leonardo, que passou mal prá dedéu. Diante do cadafalso, Osório explicou a origem do brinde. Fim de linha para a trajetória inaciana do Nelsinho.

Na República do Peru, a fama do nosso herói cresceu quando ele botou fogo num apartamento da Rua Prado Júnior. Foi isso exatamente que aconteceu. Mas o evento merece uma explicação detalhada. Depois de meses e meses de tentativas, Hildinha aceitou o convite do Nelsinho para uma noite de amor. O problema era arranjar local para o embate. Nelsinho, como de hábito, estava duro feito um coco. Foi salvo pelo Zé Armando, que lhe cedeu um apartamento. Não tinha a menor ideia sobre quem era o dono do imóvel. Chamou a atenção, apenas, para um pequeno problema: a luz da quitinete havia sido cortada pela Light, por falta de pagamento. Segundo Zé Armando, isso não causava qualquer problema. Em primeiro lugar, porque o apartamento era minúsculo, nele havia apenas uma cama, Nelsinho não teria muitos cômodos a percorrer. Além disso, tudo que se propunha a ali fazer, sabia fazer de cor.

Tudo correu conforme o combinado, salvo um pequeno problema. Devidamente instalados na tal cama, uma cantoria de pássaros passou a perturbar o casal. Nelsinho concluiu que era impossível se concentrar em meio aquela barulheira. Pediu licença à Hildinha para buscar a origem do problema. Acendeu seu isqueiro Ronson, para constatar que do teto pendiam dezenas de gaiolas, repletas de pássaros cantantes. Não reparou que a chama do Ronson alcançou um lençol, igualmente pendurado no teto do aposento. Os bombeiros só chegaram meia hora mais tarde.

Meu último contato com Nelsinho aconteceu quando ele apareceu na República do Peru muito machucado, repetindo sem parar uma frase ininteligível. Fui informado de que sua última ocupação tinha sido a de guarda-costas de um líder estudantil que combatia a revolução de 1964. Numa passeata, foi preso pelo temido inspetor Piroteu e levado para as dependências da Polícia do Exército, na Barão de Mesquita. Apanhou muito. De volta à República, repetia sem parar: "Odicnev Ares Siamaj, Odinu, Ovop, O" . Alguém descobriu que, de trás para a frente, isso quer dizer "O povo, unido, jamais será vencido". Era o que Nelsinho gritava quando foi preso. Na prisão, colocado durante horas seguidas de cabeça para baixo, era obrigado a repetir a frase sem parar, também de cabeça para baixo.

Fui ao enterro do Nelsinho. Eu e dezenas de amigos. Chegamos à conclusão de que ele estava sorrindo. Deve ter achado tudo muito engraçado. 


2 comentários:

  1. Acabei de ler, sem fôlego.
    Fica em mim uma pergunta muito antiga:
    - Continuo sem saber se a arte imita a vida ou se é a vida que imita a arte. Morte absolutamente de acordo com sua vida.

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