O BISCOITO MOLHADO
Edição 5337 SX
Data: 13 de novembro de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXV
MORRE O ÍDOLO
Faz cerca de quarenta anos. Os jornais passaram um bom tempo
se ocupando da queda do Learjet que vitimou o deputado federal Pelópidas
Nonato, do Ceará. A queda do avião, segundos depois de decolar do
Aeroporto Internacional do Galeão, seria, por si só, motivo para muitas
manchetes. Mas o fato foi potencializado pela presença, a bordo, de Kelly
Bordéu, estrela do teatro de revistas, que fazia muito sucesso com "Piriri
no Pororó", grande atração da Praça Tiradentes.
O Globo, Correio da Manhã e Jornal do Brasil optaram, pelas
circunstâncias, por tratar o assunto com a discrição possível. O mesmo não
aconteceu com a "Última Hora", que tinha pavor do deputado
Pelópidas, líder do governo revolucionário de então. Mas quem chutou o balde
para valer foi a "Luta Democrática". O escrachado jornal teve a
ousadia de publicar em letras garrafais a manchete "Dona Santinha não
estava a bordo!" Santinha, todos sabiam, era a esposa do deputado
Pelópidas.
Quando se imaginou que o frenesi em torno da queda do
Lear estivesse começando a arrefecer, uma constatação colocou mais lenha na
fogueira. Havia mais um passageiro a bordo! Trajando uma vestimenta própria dos
mecânicos, sujo de óleo, seu corpo foi encontrado a uma distância razoável do
local em que o avião atingiu o solo. Por conta disso, os investigadores levaram
algum tempo para ter certeza de que o cidadão estava envolvido no acidente aéreo
em pauta.
Acompanhei com atenção a evolução dos acontecimentos.
Atenção que alcançou seu ponto máximo quando as autoridades conseguiram identificar,
finalmente, o nome da última vítima do Learjet. Fiquei tonto quando a
Rádio JB divulgou seu nome, em primeira mão: Nelson de Assis Pereira de
Carvalho. "Nelsinho", morador da República do Peru, ex-aluno do Santo
Inácio, exímio nadador, cracaço do futebol de praia, ídolo, talvez por conta de
suas maluquices, de muitos garotos da República, como eu, cerca de cinco anos
mais jovens do que ele.
Fazia tempo que não tinha notícias do Nelsinho. Eu
completara a faculdade de economia, estava casado e não morava mais na
República do Peru. Recebia ocasionalmente uma ou outra informação sobre ele,
todas dando conta de que a vida lhe tinha sido adversa.
Com o correr das investigações, as autoridades chegaram a
uma incrível conclusão. Nelsinho estava envolvido no tal acidente, mas não era
passageiro do avião. Na verdade, fora o causador da queda do Learjet!
Não é fácil explicar, mas a coisa aconteceu mais ou menos
assim : Nelsinho, trilhando seu calvário de problemas existenciais e
financeiros, conseguira um emprego na Recauchutadora Oriente, em Duque de
Caxias, localizada nas proximidades da pista auxiliar do aeroporto do Galeão.
Uma empresa de porte, apta a reformar pneus especiais, fossem eles de avião, ou
das gigantescas empilhadeiras operadas ali perto pela Supergasbrás.
Sabe-se lá porquê, numa atitude bem ao estilo da figura que
eu conhecia, Nelsinho resolveu colocar quatrocentas libras de pressão num
gigantesco pneu que estava consertando. Permanecia de pé, em cima do artefato,
martelando-o furiosamente. Deu-se uma terrível explosão. Houve quem achasse que
Duque de Caxias sairia do mapa. Meu amigo foi projetado como um míssil. Não
fosse o Learjet do deputado, que ele derrubou, teria alcançado a primazia de se
tornar o primeiro brasileiro a entrar em órbita. Sorte do Coronel Marcos Pontes
que, em circunstâncias muito menos emocionantes, visitou, a bordo de uma nave
Soyuz, a Estação Espacial Internacional, anos mais tarde.
A turma da República do Peru proporcionou um
sepultamento digno ao Nelsinho. Muitos haviam presenciado suas proezas de
excepcional nadador, que deixavam atônitos os frequentadores do Posto 3, em
Copacabana. A mise en scène era sempre a mesma. Ele chegava à praia por volta
do meio dia, em dias de tremenda ressaca. Fazia por diversas vezes o sinal da
cruz e se jogava ao mar, ignorando apelos frenéticos de mocinhas e mães de
mocinhas que frequentavam nosso pedaço de praia. A performance era conhecida.
Passava uma boa meia hora furando ondas gigantescas. Quando chegava
á conclusão de que metade da mulherada da plateia havia enfartado,
escolhia finalmente a onda em que pegaria um tresloucado
"jacaré", retornando à areia. Era sempre recebido por uma multidão de
admiradores. Especialmente admiradoras. Uma única exceção aconteceu no dia em
que essa onda “grand finale” arrancou-lhe o calção e nosso herói completou seu
enredo inteiramente nu.
No Santo Inácio, as presepadas do ídolo também ficaram
famosas, tendo culminado na sua expulsão do colégio, no início dos anos
sessenta. Lembro bem de duas confusões em que esteve envolvido. Nelsinho era um
grande consumidor de "Puf", um dispositivo junino que, jogado ao
chão, produzia uma grande cortina de fumaça. Era um susto e tanto.
Inadvertidamente a vítima cruzava com nosso amigo, o "Puf" era jogado
ao chão e, em meio à fumaceira, Nelsinho gritava : "Mandrake!" Fora o
susto, tudo acontecia sem maiores problemas. Até o dia em que escalou como
vítima o Carlinhos Bornay, um dos mais delicados alunos do colégio. Carlinhos
sofreu um desmaio e foi levado às pressas para a enfermaria do Santo Inácio.
Nelsinho foi agraciado com uma suspensão.
Sua expulsão não demorou a ocorrer. Num acesso de gentileza
e bons modos, ele foi visto no recreio portando uma bandeja repleta
de bombons. Cruzava com os colegas e candidamente indagava: "Aceita?"
É claro que todos aceitavam. Pouco depois o recheio dos acepipes podia ser
identificado em meio a muita tosse e engasgos. Variava de serragem a sabão de
coco. Novamente, a molecagem poderia não resultar em grandes problemas.
Mas não foi o que aconteceu. Osório Neves, o rei dos puxa-sacos, disse para
Nelsinho que degustaria a oferta mais tarde, possivelmente em sala de aula.
Nelsinho vibrou com a confusão que disso resultaria. Mas o pior aconteceu.
O rei dos puxa-sacos resolveu transferir o mimo para o Padre Leonardo, que
passou mal prá dedéu. Diante do cadafalso, Osório explicou a origem do brinde.
Fim de linha para a trajetória inaciana do Nelsinho.
Na República do Peru, a fama do nosso herói cresceu quando ele botou fogo num apartamento da Rua Prado Júnior. Foi isso exatamente
que aconteceu. Mas o evento merece uma explicação detalhada. Depois de
meses e meses de tentativas, Hildinha aceitou o convite do Nelsinho para uma
noite de amor. O problema era arranjar local para o embate. Nelsinho, como de
hábito, estava duro feito um coco. Foi salvo pelo Zé Armando, que lhe cedeu um
apartamento. Não tinha a menor ideia sobre quem era o dono do imóvel. Chamou a
atenção, apenas, para um pequeno problema: a luz da quitinete havia sido cortada
pela Light, por falta de pagamento. Segundo Zé Armando, isso não causava
qualquer problema. Em primeiro lugar, porque o apartamento era minúsculo, nele
havia apenas uma cama, Nelsinho não teria muitos cômodos a percorrer. Além
disso, tudo que se propunha a ali fazer, sabia fazer de cor.
Tudo correu conforme o combinado, salvo um pequeno problema.
Devidamente instalados na tal cama, uma cantoria de pássaros passou a
perturbar o casal. Nelsinho concluiu que era impossível se concentrar em meio aquela
barulheira. Pediu licença à Hildinha para buscar a origem do problema. Acendeu
seu isqueiro Ronson, para constatar que do teto pendiam dezenas de
gaiolas, repletas de pássaros cantantes. Não reparou que a chama do Ronson
alcançou um lençol, igualmente pendurado no teto do aposento. Os bombeiros só
chegaram meia hora mais tarde.
Meu último contato com Nelsinho aconteceu quando ele
apareceu na República do Peru muito machucado, repetindo sem parar uma frase
ininteligível. Fui informado de que sua última ocupação tinha sido a de guarda-costas
de um líder estudantil que combatia a revolução de 1964. Numa passeata, foi
preso pelo temido inspetor Piroteu e levado para as dependências da Polícia do
Exército, na Barão de Mesquita. Apanhou muito. De volta à República, repetia
sem parar: "Odicnev Ares Siamaj, Odinu, Ovop, O" . Alguém descobriu
que, de trás para a frente, isso quer dizer "O povo, unido, jamais será
vencido". Era o que Nelsinho gritava quando foi preso. Na prisão, colocado
durante horas seguidas de cabeça para baixo, era obrigado a repetir a frase sem
parar, também de cabeça para baixo.
Fui ao enterro do Nelsinho. Eu e dezenas de amigos. Chegamos
à conclusão de que ele estava sorrindo. Deve ter achado tudo muito
engraçado.
P a r a b é n s, Biscoito!
ResponderExcluirAcabei de ler, sem fôlego.
ResponderExcluirFica em mim uma pergunta muito antiga:
- Continuo sem saber se a arte imita a vida ou se é a vida que imita a arte. Morte absolutamente de acordo com sua vida.