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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

2510 - Camus caminha no Cachambi

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O BISCOITO MOLHADO




Edição 4310                         Data: 10  de novembro  de 2013

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96ª VISITA À MINHA CASA
 
-De volta ao Brasil.- foram as primeiras palavras de Albert Camus quando se materializou à minha frente.
-Pena que o Engenhão foi interditado; fica perto daqui e poderíamos assistir a uma partida de futebol.
-Então, você sabe que pedi para me levarem a um estádio de futebol quando visitei o Brasil pela primeira e única vez, em 1949, onze anos antes de eu morrer?
-Li o espanto que você, como escritor, ensaísta, dramaturgo e filósofo, provocou, com esse pedido, nos brasileiros afetados pelo intelectualismo.
-Saiba que fui goleiro da seleção da universidade. Não pude dedicar mais tempo ao futebol por causa da tuberculose.
-O seu discípulo e companheiro de redação do periódico “Combat” disse que você amava o trabalho em equipe, não só com os jornalistas , mas também com os tipógrafos. Que você sempre buscava o trabalho conjunto; seja quando foi goleiro no time de futebol do seu colégio, seja no jornalismo, seja no teatro.
-Aprendi muito na prática desse esporte.
-Você foi um dos editores do “Combat”?
-Com a guerra, eu não podia viajar para a Argélia, onde estavam a minha mulher e meus filhos, nem eles podiam vir até mim.. Mas pude sair de Paris, afastar-me da vigilância mais atroz dos nazistas, estabelecendo-me em Vichy, onde participei do Núcleo de Resistência á ocupação como um dos editores do “Combat”.
-Você pertencia a uma família “Pied Noir”, Pé Negro”, que era  termo que designava os franceses estabelecidos  nas colônias do norte da África, como a Argélia, Marrocos e Tunísia.
-Nasci na Argélia, em 1913, em Mondovi. Meu pai morreu no ano seguinte, servindo o exército da França na feroz Batalha de Marne durante a Primeira Guerra Mundial.  
-Seu pai era francês, e sua mãe de ascendência espanhola?
-Sim; viúva, ela nos levou para Argel, para o bairro operário, portanto pobre, de Belcourt.
-Bairro onde muitos árabes seriam massacrados na guerra de descolonização da Argélia.
-Terrível. - penalizou-se.
-Você atravessou uma infância de extrema pobreza; todos seus biógrafos registraram esse tempo difícil na sua vida.
-Vivíamos na mesma casa eu, minha irmã, o meu irmão mais velho, minha avó e meu tio.
-Com toda a miséria, você estava na escola?
-Estava, mas eu tinha de contribuir financeiramente pra mitigar um pouco a nossa ruína, assim, pensei em ser tanoeiro como meu tio. Não era só isso, eu me sentia atraído pelo ambiente da oficina em que meu tio atuava, por aquele ambiente em que sobressaíam a alegria e a camaradagem. Não trabalhei nessa oficina, mas escrevi um conto para demonstrar meu encantamento.
-Esse conto e toda a sua exuberante criação intelectual só foram possíveis porque você estudou.
-Não fui tanoeiro porque um professor da escola primária, Louis Germain, considerou-me extremamente inteligente e convenceu a minha mãe a não interromper os meus estudos. Quando eu cursava o segundo grau, não tinha jeito: minha mãe lavava roupa para fora, eu tinha de ajudar também no sustento da casa. Surgiu, então, outro professor basilar na minha vida, Jean Grenier; com a ajuda dele pude seguir na escola até graduar-me em filosofia.
-E você sempre reconheceu a importância desses professores para a sua formação.
-Dediquei livros e meu discurso na Suécia, quando recebi, em 1957, o Nobel de Literatura a esses dois mestres.
-E a sua amizade e posterior rompimento com Sartre?
Ao ouvir o nome de Sartre, Camus esboçou um sorriso de incontáveis matizes.
-Durante a Segunda Guerra Mundial e os anos 50, eu e Sartre éramos vistos como parceiros inseparáveis da intelectualidade francesa.
-Com a Simone de Beauvoir formavam um ménage a trois da esquerda intelectualizada. - não perdi a piada.
 -Depois de Sartre ler o meu livro “O Estrangeiro”, teceu elogios e declarou que queria me conhecer. Nós nos tornamos amigos em 1942.  Foram dez anos de amizade, rompida, em 1952, por posições políticas.
Como eu lera alguma coisa sobre esse desentendimento, tagarelei:
-Sartre alinhava-se com os comunistas, sob a liderança de Stalin, na época e também denunciava com veemência o imperialismo francês na Argélia, principalmente. Você, por outro lado, atacava o totalitarismo do regime russo e chamava a atenção para o movimento de independência argelina, chefiada pela Frente de Libertação Nacional, que poderia substituir a tirania francesa pela tirania argelina.
-Eu expus essas ideias no meu livro “O homem revoltado”.
-E Sartre o criticou duramente no “Les temps modernes”, jornal que ele dirigia.
-Houve réplicas e tréplicas, e nós rompemos o laço que nos unia.
-Passaram-se quatro anos, e as denúncias feitas por Kruschev dos crimes de Stalin, demonstraram a sua razão quanto ao totalitarismo russo.
-Sartre escreveu que fazer política é enfiar a mão na merda, mas, no caso, enfiaram a mão em sangue.
-Quanto a esse maniqueísmo que houve na guerra da Argélia, imperialismo francês no poder ou revolucionários radicais, você pregou uma Argélia pluralista, sem o êxodo dos brancos; uma convivência pacífica.
-Recebi ataques violentos de toda a esquerda francesa, com a liderança de Sartre,  por esse meu posicionamento.
-Aqui, no Brasil, diriam que você estava em cima do muro ou que era um intelectual omisso por não ficar do lado dos revolucionários.
-Vejo com suspeição as revoluções.  A revolução tende a devorar os seus filhos, e os exemplos na história são inúmeros; assim aconteceu em 1793 na Revolução Francesa, na Revolução Bolchevique, na Revolução de Mão, e por aí vai.
-E acrescentou:
-Considero a revolta muito mais salutar, pois os revolucionários tendem a repetir o que seus inimigos faziam, agora sob outra bandeira, enquanto os revoltados são fiéis aos seus ideais mesmo quando alcançam o poder.
-Como você morreu em 1960, não viu a política que você queria para a Argélia tão logo ela saísse do jugo francês; o grande estadista Nélson Mandela a colocou em prática no país mais racista do mundo, a África do Sul. Sob a liderança dele, não houve perseguições aos brancos, a África do Sul se tornou um país plural, onde todos convivem sem derramamento de sangue.
E acrescentei:
-Nélson Mandela,. Mesmo tendo passado 27 anos detido, no regime do apartheid convidou seu carcereiro para um jantar, quando presidente da África do Sul.
-Eu gostaria de conhecer um homem com essa grandeza.
-Seria uma amizade que nunca seria quebrada.
-Certamente. - concordou.
-Hoje, você não é mais um incompreendido. O ex-presidente socialista Nicolas Sarkozi sugeriu o traslado dos seus restos mortais para o Panthéon e o presidente conservador, François Hollande enaltece a sua importância na história do pensamento,
Albert Camus se limitou a um sorriso luminoso.
-Bem, Camus, você foi um dos maiores filósofos do século XX, apesar de ter morrido com apenas 47 anos de idade...
-Pensador; prefiro ser chamado de pensador a filósofo.
-Pois é, muitos são seus pensamentos  para serem explorados nessa nossa conversa...
-Mas meu tempo é curto. Tenho de ir.
-Diga, então, outra coisa sobre sua visita ao Brasil em 1949:
-Eu observei que os motoristas daqui ou são alegres loucos ou frios sádicos. Como eles são agora?
-Pioraram. - respondi.

E partiu.

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