O BISCOITO
MOLHADO
Edição 5359 SX Data: 31 de março de
2018
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXV
PAPEL PARDO
O trajeto é sempre o mesmo. Da filial das Casas Palermo no Largo de
São Francisco até o minúsculo apartamento na Viveiros de Castro, em Copacabana.
O ônibus está super lotado, faz um calor dos diabos. Muita gente reclama, estou
preocupado com outras coisas.
Comenta-se que a Palermo está enfrentando problemas financeiros,
está atrasando pagamentos a fornecedores. Crise semelhante estaria também
afetando a Cassio Muniz e o Rei da Voz. O que será de mim? Só o que sei fazer é
vender vitrolas e televisões. O que faço há exatos trinta anos. Com a morte
recente de minha mãe, a pensão de fiscal do IAPC de meu pai sumiu do orçamento.
Nada brilhante mas, agora percebo, ajudava um bocado.
Chego suado e deprimido à portaria do prédio, que implora por
reformas. Sou saudado pelo Valmir, porteiro que, na minha avaliação, tem o Q. I.
de uma almôndega. "Pacote para o senhor!", ele grita. Faço contas
para concluir que é o sexto ou sétimo embrulho cuidadosamente produzido em
papel pardo que recebo no intervalo de tempo de três meses. Nenhuma etiqueta,
nada escrito. Cobro explicações do Valmir, também pela sexta ou sétima vez. Sem
resultado. Repete que o sujeito que entrega o pacote está sempre com pressa.
Faz questão de entregá-lo em mãos, enfatizando que o destinatário é o Heitor,
do 507.
Cansado, não tenho disposição para espinafrar o Valmir por sua
incompetência, sua inépcia em identificar o portador dos pacotes. A etapa
seguinte é torcer para não ser vitimado mais uma vez pelo carcomido elevador do
prédio. Acredito piamente que sua porta pantográfica contém um dispositivo
diabólico que me identifica e faz o elevador enguiçar sempre entre terceiro e
quarto andares. Não aconteceu dessa vez, estou num dia de sorte.
Entro no apartamento acanhado tomado pela sensação que há meses me
acomete. Sem minha mãe o apartamento parece maior. E mais triste. Já era triste
com ela, sempre deprimida, impregnada pelo trauma que carregou por toda sua
vida. Mais triste, ainda, sem ela.
Uma faca afiada é providenciada para abrir o tal pacote. Igual aos
demais que recebi anteriormente. Tem um quê de inexpugnável. O excesso de papel
pardo envolve uma caixa pequena e robusta. Dentro, nenhuma surpresa. Dinheiro.
Muito dinheiro. Não propriamente uma fortuna. Mas bem mais do que recebo como
vendedor da Palermo.
Minha reação é a mesma das vezes anteriores. Paralisado, tento
imaginar o que possa estar acontecendo. Os pacotes de dinheiro são apenas parte
dessa história. Minha conta no BANERJ também vem sendo agraciada com depósitos
inexplicáveis. Cinco ou seis aconteceram desde o recebimento do primeiro
pacote. O gerente do banco, feliz com a minha recente proficiência financeira,
tomou um susto quando expliquei o que vinha ocorrendo. Mais assustado fiquei eu
quando fui alertado para as eventuais implicações legais, especialmente
tributárias, de depósitos caídos do céu. Sobre os quais não havia nenhuma pista,
eis que procedidos em dinheiro vivo, na boca do caixa.
Noite adentro fiquei pensando no assunto. Descartando hipóteses que
estariam longe de explicar o que estava acontecendo. Na vida sem graça que
sempre levei, o que poderia justificar aquela imprevista saúde financeira?
Quase desmaiando de sono, lembrei de algo inusitado. Poderia,
também, não ter nada a ver com minhas preocupações. Mas fiquei cismado com o
que me passou pela cabeça. Tinha a ver com minhas andanças pelo centro da
cidade, durante o horário de almoço. Sempre dedicado a uma refeição rápida,
visitas a livrarias ou lojas de discos. Em ocasiões recentes chamou minha
atenção a coincidência de me deparar, repetidas vezes, com um sujeito alto, bem
apessoado e bem vestido, sempre surgido do nada.
Lembrei-me de ocasião em que, na Polar da Avenida Rio Branco, experimentando um sapato, fiquei com a sensação de que esse indivíduo, postado diante da vitrine da loja, não atentava para os itens ofertados, mas acompanhava meus movimentos no interior da sapataria. Foi a primeira vez em que a presença do sujeito chamou minha atenção. Dias depois, num sebo da Rua da Quitanda, voltei a me deparar com ele, parado exatamente em frente à pilha de livros que eu examinava. Numa loja de CDs da Rua São José, a mesma coisa aconteceu. Encontrá-lo uma semana depois na minha agência do BANERJ, na Nilo Peçanha, até me pareceu uma coisa muito natural.
Lembrei-me de ocasião em que, na Polar da Avenida Rio Branco, experimentando um sapato, fiquei com a sensação de que esse indivíduo, postado diante da vitrine da loja, não atentava para os itens ofertados, mas acompanhava meus movimentos no interior da sapataria. Foi a primeira vez em que a presença do sujeito chamou minha atenção. Dias depois, num sebo da Rua da Quitanda, voltei a me deparar com ele, parado exatamente em frente à pilha de livros que eu examinava. Numa loja de CDs da Rua São José, a mesma coisa aconteceu. Encontrá-lo uma semana depois na minha agência do BANERJ, na Nilo Peçanha, até me pareceu uma coisa muito natural.
Passei boa parte da noite pensando no assunto, até ser vencido pelo
cansaço. Desabei no horroroso sofá preto de courvim de minha pobre sala, sem
encontrar forças para me dirigir ao quarto de dormir. Não sem antes concluir
que certamente eu estava ficando ruim da cabeça e que, definitivamente, uma coisa
não tinha nada a ver com a outra.
No dia seguinte fui ao BANERJ da Nilo Peçanha em busca de
informações sobre os depósitos efetivados em minha conta. Foram seis no total.
Além da Nilo Peçanha, também foram utilizadas as agências da Gonçalves Dias e
da Cinelândia. E, para minha surpresa, três depósitos foram efetuados numa agência
do BANERJ em Niterói.
Saí do banco com Niterói na cabeça. Aproveitei a meia hora de
almoço que ainda me restava para correr até a Rua dos Inválidos, alertado por
um amigo sobre uma coleção de discos antigos que havia sido arrematada por um
comerciante local. Foi uma boa caminhada, não me sobrou tempo para examinar com
cuidado o acervo precioso que já estava colocado à venda. Saí apressado em
direção à Palermo. Não deu outra, o tal sujeito estava parado a dez metros da
loja. Tomado de um sentimento de "é agora ou nunca" , quase raiva,
decidi interpelá-lo. Não foi possível. Ele saiu apressado, em direção oposta ao
Largo de São Francisco. Na crise, achei por bem não ultrapassar o horário
reservado ao meu almoço. Mas estava convencido de que seria fundamental
entrevistar a tal figura, se essa chance voltasse a ocorrer.
Dez dias de calmaria se passaram. Até que um novo pacote foi
deixado em minha portaria. O Valmir, é claro, não conseguiu obter nenhuma
informação sobre o sujeito. Agarrei-o pelo paletó para que ouvisse com atenção
o que eu tinha a dizer. Fui minucioso na composição do personagem. Para o bem
ou para o mal, nervoso, Valmir não parava de concordar : "Sim, sim, um
pouco mais alto do que o senhor...cabelos bem escuros, penteados para
trás...forte, bastante forte, jeitão de atleta..."
Saí dali convencido de que o entregador de pacotes e o sujeito que
me seguia eram a mesma pessoa. Sabia, agora, o que deveria ser feito.
Mais uns dias de calmaria. Ou melhor, quase calmaria. Um novo
depósito no BANERJ foi feito. Eu começava a me acostumar com a ideia de que ver
crescer assustadoramente minha conta bancária era a coisa mais natural do
mundo.
Passei a caminhar compulsivamente pela cidade durante o horário de
almoço. Parava em vitrines da Rua do Ouvidor, Rosário, Buenos Aires... nada
acontecia. Alguns dias se passaram até que voltei a encontrar o sujeito. Em
frente ao Palheta, na Avenida Rio Branco. Minha abordagem, reconheço, foi até
certo ponto truculenta : "Acho que o senhor quer falar comigo." A
resposta inesperada do cidadão foi um "Talvez", o que me deixou ainda
mais injuriado. "Se quer falar, é melhor desembuchar. Ou então desapareça
da minha vista."
Desembaraçado e com muita calma, disse o sujeito : "Não sou
eu, propriamente, que quer falar com o senhor. É outra pessoa. Ele gostaria
muito de recebê-lo. Tem dificuldades de locomoção e, por isso, é necessário que
o senhor vá ao seu encontro. Ele mora em Niterói." Achei tudo aquilo muito
estranho. Manifestei-lhe meu receio de participar daquela empreitada. Poderia,
até mesmo, correr perigo... Disse o sujeito:
-Esteja certo de que não é o caso. Como o senhor trabalha no comércio, suponho que um sábado seja o dia mais conveniente. Peço pressa, pelos motivos que o senhor irá compreender. Posso pegá-lo na Viveiros de Castro no próximo sábado? Nove e meia da manhã?
-Acho que está bom para mim. Mas poderia adiantar o assunto desse
encontro?
-Pacotes embrulhados em papel pardo e depósitos no BANERJ.
Ficamos assim combinados.
No sábado, no horário acertado, o sujeito estacionou um belo carro
importado na porta do meu prédio. Eu já o aguardava. O genial Valmir não parava
de berrar : "É ele! É ele!"
Não trocamos uma palavra durante o trajeto até Niterói. Nosso
destino era uma casa deslumbrante na praia de Icaraí. Quando lá chegamos
percebi um vai e vem de seguranças, o que me deixou assustado. Meu companheiro
de viagem foi recebido com deferência por um séquito de empregados. Subimos ao
segundo andar. Num quarto gigantesco, um sujeito muito idoso ocupava uma cama de
hospital e era amparado por um médico e um batalhão de enfermeiras.
Meu acompanhante dirigiu-se ao enfermo: "Papai, esse é o
Heitor." Com voz fraca, disse o doente : "É muito bom conhecê-lo... Faz
tanto tempo... Muitos, muitos anos..."
Havia chegado minha vez de falar : "De onde o senhor me
conhece? Como sabe meu nome? Por que estou sendo há meses seguido por seu
filho?" Emocionado, o velho reuniu forças para dizer : "Meu propósito
é falar sobre seu pai."
Para o meu gosto, a situação estava ficando estranha demais. Seria
melhor cortar o mal pela raiz, com uma explicação clara : "Senhor, é
importante que saiba o seguinte. Meu pai faleceu cinquenta anos atrás. Era
fiscal do Instituto dos Comerciários e eventualmente cumpria missões em cidades
próximas ao Rio de Janeiro, viajando em seu próprio carro. Em certa ocasião, a
caminho de Rio Claro, trafegando pela Via Dutra, seu automóvel saiu da estrada,
numa curva fechada da Serra das Araras. O carro desceu um desfiladeiro e foi
encontrado muitas horas depois, por moradores da região. Já estava escuro. O
carro, completamente destruído. O surpreendente é que meu pai não estava entre
as ferragens. E nem próximo ao carro. Toda a região foi vasculhada durante
semanas, seu corpo - é claro que ele morreu no acidente - jamais apareceu. O
mistério ocupou durante muito tempo o espaço dos jornais. Que fizeram do
assunto um verdadeiro carnaval. 'A Noite' chegou a levantar a hipótese de que
ele teria sido abduzido por extraterrestres. A 'Gazeta de Notícias' afirmou,
com convicção, que o corpo havia sido devorado por animais selvagens da região.
O sofrimento da família foi enorme. O fato é que meu pai jamais apareceu. Minha
mãe sofreu um bocado. Transformou-se numa morta-viva, perdeu a razão de viver,
morreu há poucos meses depois de passar todos esses anos praticamente sem sair
de casa. Minha vida, diante disso, também não teve muita graça. No colégio eu
era apontado como o menino cujo pai sumiu. Convidado, de tempos em tempos, a
conceder entrevistas para comentar o mistério, jamais aceitei. O certo é que,
por conta desse episódio, eu e minha mãe tivemos uma vida triste e medíocre."
Finalizando, fui incisivo com o velhote : "Respeito sua idade, sua saúde
precária, mas peço que me entenda, não tenho planos de conversar sobre meu pai."
Meu relato deixou o sujeito perturbado. Ele voltou a falar, com
extrema dificuldade. Algumas frases eram completadas pelo cidadão que apontava
como filho. Foi uma surpresa o que dele ouvi: "Seu pai casou com sua mãe
por obrigação. Ela engravidou. Seu avô, homem violento, disse que o mataria se
ele não assumisse aquela responsabilidade. O problema é que seu pai estava
perdidamente apaixonado por uma colega de trabalho. Contou com a ajuda do irmão
para forjar o acidente em que seu carro rolou ribanceira abaixo. O irmão
chefiava o jogo do bicho em Niterói e várias cidades próximas. Para ele,
providenciou documentos com um novo nome e acolheu-o como subchefe da
contravenção local. Esse irmão morreu cedo e seu pai ficou à frente do negócio.
Como previsível, ficou muito rico. Teve um filho com a mulher por quem era
apaixonado. Ela morreu há muitos anos. Hoje, esse rapaz administra os seus
negócios".
Interrompi o sujeito para dizer que achava aquela história
interessante, mas inverossímil. E como ele sabia aquilo tudo? Num gesto bem
coreografado ele recebeu do filho uma pequena pasta de couro, castigada pelo
tempo. Que me foi entregue, acompanhada de uma observação : "O que importa
você saber está dentro dessa pasta. Dê uma olhada". Foi o que fiz. O
primeiro papel que me veio às mãos foi a certidão de nascimento de Júlio
Machado Pedrosa, meu pai. Em seguida, uma foto de seu casamento. Numa pequena
caixa, uma aliança gravada com o nome de minha mãe. Trêmulo, indaguei :
"Mas o que isso significa?" Disse o velho: "Esses são os
documentos do Júlio, que morreu no acidente. Fui o Júlio, durante um bom tempo.
Depois do acidente virei Adalberto. Pai do Fernando, que agora você conhece.
Ele é seu irmão. Eu sou seu pai."
Meu coração disparou. Não sem antes ouvir o velhote completar suas
explicações. Ele estava morrendo. Tivera uma vida conturbada, passara
temporadas na prisão. Nos últimos tempos voltara-se para a religião. Estava
empenhado em alcançar o Reino dos Céus. Para isso, precisava obter perdão para
as coisas reprováveis que cometera em vida. A pior delas, certamente, abandonar
um filho recém-nascido. Estava ali suplicando o perdão do filho que deixara há
cinquenta anos. Que seria, agora, devidamente amparado. Mas que as coisas não
se misturassem. Seu propósito não era comprar esse perdão. Na realidade, estava
implorando por ele.
"Você me perdoa?" Tenso, Fernando, o filho, acompanhava a
cena. Também me olhava, ansioso.
Minha resposta não envolveu sinceridade ou compaixão. Decorreu de
uma perturbação extrema, de falta de ar, de um batimento descompassado do
coração, do estado de choque em que eu me encontrava. Num fiapo de voz, disse o
que me veio à cabeça: "O senhor está perdoado."
Adalberto, ou Júlio, meu pai, esboçou um sorriso. E, calmamente,
morreu.
Fortinho
ResponderExcluirFinalmente consegui encontrar o “caminho”, no espaço do “Biscoito Molhado”, para incluir minhas impressões sobre mais uma de suas saborosas crônicas, esta intitulada “Papel Pardo”. Como te perguntei ao telefone: “Foi você quem a escreveu ou foi o Hitchcock?”. A história está claramente, e magnificamente, ambientada nos anos 1940/1950, por este motivo ainda não existiam os CDs, e uma ida de carro a Niterói se fazia usando a barcaça própria para esse fim, ou dando a volta na baía por Magé, mas este detalhe não fez falta. Além disso, nos anos 40/50, todo carro era importado, uma observação que não se fazia necessária mas, que também, não tem importância. Ficou-me, porém, uma dúvida: como você cita o BANERJ, resultado da fusão do BEG com o BERJ quando, em 1975, Geisel fundiu o Estado da Guanabara com o do Rio de Janeiro, não lembro se ainda existiam as lojas que você citou, mas a ponte Rio-Niterói já existia, o que invalida minha observação anterior.
Em resumo posso dizer que, de todas a suas crônicas, sempre ótimas, esta foi a que me causou mais impacto, obra de escritor profissional! Como de hábito, intrometido que sou, e metido a revisor por culpa ou imposição do Jonas e do Simon Khoury, tomei a liberdade de alterar alguns equívocos e até modifiquei um pouquinho uma frase, coisas tão sutis que só prestando muita atenção você irá perceber. Mas foi em vão, não consegui manter as correções, se me permite usar este termo. Mas, parabéns! Minha lista de contatos e eu, teu Fã Clube, aguardamos a próxima com impaciência.
Abraços,
Luciano
Brilhante!!!
ResponderExcluirÉ, mas o perdão foi comprado e com o dinheiro da contravenção.
Servidor público assumindo cargo "doado" pelo presidente em julgamento tem o direito de julgá-lo?
Há isenção quando supremos cargos tem o direito de julgar o doador dos mesmos?
A Igreja Católica aceitava a idade de 7 anos para o recebimento da Primeira Comunhão por julgar que nesta idade a criança possuía a noção do certo e do errado. E os supremos ministros a possuem?
NÓS queremos vingança (rs, rs,rs) ou apenas justiça?
Será que somos apenas um bando de idiotas?
NÃO somos , mas é o que "eles" pensam.