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sexta-feira, 14 de abril de 2017

3026 - FF FICOU LÁ ATRÁS

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5275FF                           Data: 14 de abril de 2017

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIV

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FICOU LÁ ATRÁS

Preciso me certificar que minha foto está lá, no quadro de formandos. Todo aluno que se forma no Santo Inácio tem sua foto num quadro, atestando que ele se formou pela instituição. Eu tenho certeza que não, que minha foto nunca esteve. Há semanas sonho que não consegui me formar, algo ficou para trás, uma vida que é um engodo.  Não poderia ter feito faculdade, não poderia ter feito concurso para a Petrobras, não poderia ter feito concurso para a Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul. Já começo a fazer contas de quanto devo, pelo menos 11 anos de salários. Se estou negativo hoje, como pagarei 11 anos de salários? Minhas mãos tremem, suo frio, como se fosse pegar uma nota de física do Professor Zarur.

A suspeita na minha cabeça já é certeza conforme os sonhos acumulam. Pego o primeiro avião que consigo para o Rio de Janeiro para visitar meu antigo colégio, Santo Inácio, Santo Inácio de Loiolaaaa...Vem um ritmo de música na cabeça, a letra não. O que lembro, o que esqueci?  Nunca me formei em 1994, ano em que o Senna morreu, ano do Plano Real, ano da Copa do Mundo. Quero apenas me certificar de que a mentira que vivo é verdade. Quantas mentiras mais tenho?
De fora parece o mesmo colégio. Entrada discreta, grades as mesmas. Um novo baleiro sem a cara simpática do falecido Madura.
 - Você vende uvinha?
 - Uvinha? O que é isso?
 - Deixa pra lá;

Entrar no colégio é surpreendentemente fácil. Um paletó azul marinho me dá um ar professoral, livros diversos nas mãos são um álibi óbvio e eficiente. Cabelo grisalho e ninguém me interrompe. Entro pelo metrô, como chamavam na minha época. Já chamo tempos passados de minha época. Não sei por que se chama metrô, não acho parecido. Antigamente as notas eram pregadas aqui, parece que foi ontem que fiquei de recuperação em física e catei meu nome como um doido para ver se eu tinha passado. Será que as notas são por whatsapp hoje em dia? Se minha foto não está no quadro em que matéria repeti? Alguma de exatas com certeza. Sempre fui uma besta matemática. Amigos riam das minhas dificuldades, da falta de talento em desenho  geométrico…Mediatriz? Nunca consegui fazer uma.

Caminho pensando como farei para pagar a matéria que devo. Um homem de 40 anos sentado ao lado de meninos de 17. Será que os padres aceitam suborno? Há padres ainda?
Não sei por onde começar a procurar. Na frente do colégio ficam os quadros mais recentes, era assim antigamente. Percorro os andares nervoso, a sensação de desconforto de um adolescente tímido volta com mais força. Olho para o banheiro onde me escondia, mas agora não quero mais me esconder. Quero achar uma vida, talvez a que não devesse estar vivendo.

Lá está ele, o quadro. Brega como imaginava que era. Uma cor que não sei precisar, salmão acho. Minhas pernas tremem mais ainda, como antigamente. O quadro está alto, já não enxergo tão bem, cacete, cadê minha foto?
Vejo professores que já morreram, amigos que nunca mais vi, adolescentes populares, adolescentes tímidos loucos por sexo, uma playboy que fosse. Ah Luciana Vendramini!!!  Mas não me vejo. Cadê minha foto? Meu olhar percorre o quadro salmão brega na maior velocidade que consigo. Não está na ordem isso, Bernardo Langoni, Bruno Wong, , Eduardo...?

 - Bom dia, tudo bem contigo? Posso te ajudar?
Um professor, padre, não sei como se vestem hoje em dia, fala comigo com olhar desconfiado. Me dou conta que estou suado, tremendo todo, não sei o que responder sem despertar suspeitas.
 - Procuro uma fraude.
Ele me olha meio assustado, mas não se alonga. Segue seu rumo, qualquer que seja.

Mais nervoso ainda, procuro a bendita foto, a prova de que existo na sociedade. Minhas mãos geladas prenunciam que irei ter um troço se não achá-la, mas a encontro.
Como as notas de antigamente nas provas de matemática olho uma, duas vezes, três para ter certeza que passei. Passei de ano. E agora, passei do quê?

Um cabelo escorrido, lambido, sorriso forçado, discreto. Ela está lá. Fabio Fortes, sim, meu nome. Cabelo castanho, hoje grisalho. Está lá.  Das mentiras que sou e carrego, esta não faz parte. Olho mais uma, duas, dez vezes. Mais relaxado, vejo os colegas, muitos dos quais não lembrava. São lembranças, boas ou indiferentes. A idade te ensina a não guardar mágoas.

Mais calmo desço as escadas e reparo como elas continuam afundadas nas pontas.  Bebo a água do bebedouro mais forte, o da ponta e, como antigamente, ele esguicha forte no meu rosto me molhando todo. Continua gelada, penso. Na cantina com o apelo clean da modernidade peço um cheeseburger. O queijo não vem derretido e escorrido como antigamente. Sento na arquibancada para ver o jogo e reparo que poucos prestam atenção. Entretidos com seus celulares postam felicidades virtuais sem viver o presente. Terão lembranças como eu?  O campo de futebol me parece ainda menor do que da última vez que estive no colégio. Cabiam 20 times quando criança achava, hoje mal cabem 2.
Minha foto está lá, mas continuo achando que algo ficou para trás.

5 comentários:

  1. Longo tempo sem percorrer as palavras certas,as frases fluidas.
    Eu nem sonho em visitar o Andrews da Praia de Botafogo, já não é mais Andrews, já não existe mais o vendedor de uvas caramelizadas que certa vez foi preso por vender algo mais além de uvas, "grapes" como ele anunciava.
    O Andrees da Praia de Botafogo não existe mais, mas quando existia, em 1970 quando passei para o Científico, o velho porteiro Seu Zuza se aposentou e foi substituído pelo Paulinho da cantina.
    Saí do Andrews para o convênio com o cursinho de vestibular e de lá para a inóspita UFRJ na Ilha do Fundão.
    Fotos, só algumas tiradas no meio do ano, de 1966 a 1972, mas nada de quadro em parede, apenas fotos em PB guardadas numa pasta.
    Acabou o Andrews da Praia de Nota fogo, nunca fui a nenhuma reunião de ex-alunos, nunca entrei no Andrews do Humaitá.

    Assino de olho rútilo e lábio trêmulo como Nelson Rodrigues,

    VM (amigo do editor Dieckmann)

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  2. Maldito corretor ortográfico do celular. Deveria ter escrito no meu computador que tem tum monitor do tamanho da tela do antigo cinema São Luiz.

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  3. Impossível não contribuir. O mesmo sentimento eu tenho, porém a sabedoria adquirida com a idade e a certeza de ter escondido uma prova final, me impedem de sequer ir passear no aniversário do Colégio Militar do Rio de Janeiro, todo 6 de maio. Não tenho dúvidas de que alguém surgiria debaixo de um dos longos bancos de concreto e: você não é o 1551? Estava mesmo a sua procura...

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  4. No Andrews não tínhamos número fixo a cada ano. Apesar de, como todo colégio, convento ou quartel, ser também uma "instituição total", nesse ponto além se laico o Andrews era mais relax. Beautiful people carioca se misturava com a dita classe média na maior harmonia. Não que meninos maus das famílias boas se amancebassem com meninas boas das famílias más. Lá não existiam alunos de famílias más, alguns pobres, sim, bolsistas anônimos. Enquanto uns moravamos na Vieira Souto ou Av.Atlântica, outros moravam anonimamenre nos famosos prédios Rajá e Rani na Praia de Botafogo.
    No Ginásio reinava essa igualdade social, no Clássico e Científico não. Exagerado nas minhas imagens literárias, o "lumpen proletariat" se distinguia da supracitada "beautiful people" não só pelas roupas - não havia mais uniforme - como pelos programas de fim de semana.
    Essa visão crítica advém de décadas de observação. Meu pai era funcionário público, não ganhavá mal, tínhamos uma vida confortável mas eu começava a ter a noção que eu não pertencia à elite do Andrews.
    Li um pouco de Marx, Engels e Saint Simon para entendê-los na plenitude após ler Aldous Huxley.
    A vida chega na reta final, como os cavalos no Jockey Club o fazem apôs contornarem em a curvá do hospital (Miguel Couto).
    Não sei até hoje se o Andrews foi um bem ou um mal. Só saberei quando sair o resultado no photochart.

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    1. Parece que o seu O BISCOITO MOLHADO terá logo um colaborador com as iniciais VM. Nada lhe falta, tem um corpo de vantagem.

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