O BISCOITO MOLHADO
Volume SV Data: 03 de setembro de 2025
CODINOMES (parte2)
uma história do assassinato que não
houve porque houve um assassinato
1 - para se abraçarem no topo do mundo…
2. O FLAGRANTE
Tudo combinado, chegou a sexta-feira, mas a caravana do Getúlio superlotou de senadores e o deputado Quarto sobrou. Sem ter o que fazer na Câmara, sem ser o dia de Violeta, resolveu voltar para casa e viu com os próprios olhos, pelo canto do parabrisa, o belo chifre que, em cores vivas, lhe aprontava Volumosa, contrastando com todo o branco e preto da cena.
Sem escândalos, Quarto anotou a placa e gravou a cara do rapaz que fechava cerimoniosamente a porta. E se abaixou para não ser visto, escafedeu-se debaixo do painel, desapareceu, sumiu.
Báá!! diria como gaúcho, se não fosse Quarto baiano, de menino capitão de areia a homem deputado - tudo bem, fui ajudado por duas providenciais quedas de avião - não vou passar para a história democrática da Bahia como um dos maridos vivos dessa Dona Volumosa, ah, isso não! Filha de Maria duma figa!
A palavra vingança não sai da boca dos vingativos, que simplesmente a executam friamente. Quarto tinha costas queimadas e açoitadas pelas agruras da política do interior. Vereador, deputado do estado, agora federal, não era um Quarto de brincadeiras, era uma fortaleza do sertão. Não ia ficar barato.
Como não ficara para o Xexente, subtenente.
Mas teria Quarto sofrido a infelicidade de se ver traído, por ele mesmo, sem ninguém lhe contar, ou seria isso melhor do que alguém ter visto e contado? Seria, quem sabe, azar ficar com um ativo podre nas mãos, segurando a traição calado, ou seria a sorte de se ver livre de uma sociedade fracassada em que ele, Quarto, passou a ter a minoria das ações? Ele sempre avaliava os acontecimentos por dois pontos de vista, ou quatro, ou oito, mesmo quando era difícil alcançar o segundo. Aquela situação flagrante merecia uma avaliação criteriosa, silenciosa, como o salto da onça em cima do jacaré, se errar, ou perde a comida, ou vira almoço.
E ele queria se ver senador, que sabe governador, meu rei sem trono? Mas, como, governador, se era de fato, corno..? Ninguém ia votar e divorciar, nem pensar, era o mesmo que suicidar, mas, ora, quem sabe, enviuvar? Com tantos infinitivos girando à frente dos olhos, só uma ação viria a calhar, Volumosa não podia ficar.
Mas teria Quarto sofrido a infelicidade de se ver traído, por ele mesmo, sem ninguém lhe contar, ou seria isso melhor do que alguém ter visto e contado? Seria, quem sabe, azar ficar com um ativo podre nas mãos, segurando a traição calado, ou seria a sorte de se ver livre de uma sociedade fracassada em que ele, Quarto, passou a ter a minoria das ações? Ele sempre avaliava os acontecimentos por dois pontos de vista, ou quatro, ou oito, mesmo quando era difícil alcançar o segundo. Aquela situação flagrante merecia uma avaliação criteriosa, silenciosa, como o salto da onça em cima do jacaré, se errar, ou perde a comida, ou vira almoço.
E ele queria se ver senador, que sabe governador, meu rei sem trono? Mas, como, governador, se era de fato, corno..? Ninguém ia votar e divorciar, nem pensar, era o mesmo que suicidar, mas, ora, quem sabe, enviuvar? Com tantos infinitivos girando à frente dos olhos, só uma ação viria a calhar, Volumosa não podia ficar.
Enquanto pensava, teve a ideia de fazer Volumosa passear de avião. Ora, para Recife, ora para Salvador, ela levava documentos ou dinheiro vivo, uma responsabilidade que Volumosa aceitava de bom grado, pois só decolava na quinta-feira e voltava no domingo. Assim, Quarto não via a mulher por meia semana e Volumosa não perdia a quarta-feira; era mesmo para lhe ser irrecusável, ora ver a mãe querida, ora se empanturrar de vatapá, que é uma espécie de labskaus de baiano. O gosto é diferente, varia, mas não cai do prato e nem na terceira garfada esfria.
E quem sabe o avião não caía?
Entretanto, para não contar apenas com o acaso, por que não queimar acidentalmente Labskaus, Volumosa e o Oldsmobile, de preferência em preto e branco, ou melhor, bem preto, carbonizado, sem uma sombra de vapor. Mandou vir de Santo Amaro de Ipitanga o Gercino, seu cabo eleitoral de prestígio, se bem que mais cabo do que eleitoral, ele já tinha práticas em sumiços encomendados, sem deixar vestígios.
Chegado o jagunço, deu as diretivas para a tocaia das quartas-feiras. Gercino era rápido no gatilho e nem tinha chegado o fim do mês de março de 1952, quando o plano - incrivelmente - deixou de ser incendiário, para ser oposto em tudo.
A observação demonstrou que o Oldsmobile se deslocava em percursos movimentados, pela Zona Sul do Rio de Janeiro, depois da hora do almoço; seria impossível explodir o automóvel sem provocar um atentado contra muitos inocentes, o que sempre deixa rastro. Mas, invariavelmente, o casal parava na mureta do canal da Visconde de Albuquerque para ver o mar, perambulando no final do Leblon sem a concorrência de muitos pedestres, às vezes parando na subida da Niemeyer para assistir a uma ressaca. Depois de um tempo andavam até o sorveteiro da pracinha, para deleite de Volumosa, que era fã de Chica-bon.
Chegado o jagunço, deu as diretivas para a tocaia das quartas-feiras. Gercino era rápido no gatilho e nem tinha chegado o fim do mês de março de 1952, quando o plano - incrivelmente - deixou de ser incendiário, para ser oposto em tudo.
A observação demonstrou que o Oldsmobile se deslocava em percursos movimentados, pela Zona Sul do Rio de Janeiro, depois da hora do almoço; seria impossível explodir o automóvel sem provocar um atentado contra muitos inocentes, o que sempre deixa rastro. Mas, invariavelmente, o casal parava na mureta do canal da Visconde de Albuquerque para ver o mar, perambulando no final do Leblon sem a concorrência de muitos pedestres, às vezes parando na subida da Niemeyer para assistir a uma ressaca. Depois de um tempo andavam até o sorveteiro da pracinha, para deleite de Volumosa, que era fã de Chica-bon.
Passaria a ser Gercino um sorveteiro ambulante, levando um caixote térmico com sorvetes e revólver carregado com projéteis de gelo, com uma sofisticada adição de ricina de mamona. O plano estava pronto e definido para ser colocado em movimento. Quarto estabeleceu o dia 2 de abril, aniversário de Volumosa, para o letal e gelado acontecimento.
Era quarta-feira e aniversário, mas choveu durante a manhã e a tarde toda. Naturalmente, ninguém saiu de casa, nem o casal e nem o sorveteiro Gercino, bastante incomodado com aquele súbito esfriamento do clima, que era péssimo para os negócios. O serviço teria que ser adiado para a quarta-feira seguinte, dia 9. E que não chovesse!
Na tarde do dia 8, entretanto, começou a cobertura jornalística do Crime do Sacopã, que virou coqueluche por terem encontrado o bancário morto dentro de seu Citroën negro na Ladeira do Sacopã. Era fantástico como notícia, crime passional, mistério, automóvel, Zona Sul, um conjunto de vários ingredientes consumíveis por um público acostumado à monotonia.
Na tarde do dia 8, entretanto, começou a cobertura jornalística do Crime do Sacopã, que virou coqueluche por terem encontrado o bancário morto dentro de seu Citroën negro na Ladeira do Sacopã. Era fantástico como notícia, crime passional, mistério, automóvel, Zona Sul, um conjunto de vários ingredientes consumíveis por um público acostumado à monotonia.
Na Câmara dos Deputados, o assunto já palpitava em todas as bancadas, a toda hora chegava uma notícia, ora dos envolvidos, ora da moça - e a semelhança com o projeto de Quarto era avassaladora. Quarto correu para travar a ação de Gercino.
3. A PADARIA MAIA
Isso era complicado. Gercino estava numa pensão no Rio Comprido que não tinha telefone, mas a Padaria Maia, na esquina do Largo do Rio Comprido com a Rua Estrela, quase em frente, tinha. Era só passar um recado para o Seu Edvaldo e assim que Gercino passasse por lá, o recado seria dado. Quarto dispensou seu assessor de telefonemas e falou direto com Edvaldo, mas não disse que era caso de vida ou morte - o que era a mais pura verdade - e que deveria ser omitido, para não levantar suspeitas. Desligou e começou a espera.
As notícias sobre o crime não paravam de chegar, rádio, jornal, policiais que serviam na Câmara e todas iam bater no Quarto, sabe-se lá por que o motivo de tanto magnetismo. Metabolicamente, a sua velha sudorese abdominal, há anos desaparecida, fez surgir uma gota que escorreu até o umbigo.
Cada ligação que era recebida, uma gota escorrida. No final da tarde, a barra da camisa estava ensopada e nada de Gercino. Os funcionários foram indo embora, com suas consciências tranquilas e seus até logos leves, saltitantes, encontravam em Quarto um nada comum baiano angustiado, logo ele, falador e contador de casos, será que estava doente..? Quarto decidiu ficar na Câmara então esvaziada, quase sozinho e quase oito da noite, um ou outro gabinete ainda iluminado e uma camisa suada.
Dia 9 em casa, Volumosa dormia sossegada, seminua, e às sete horas, Quarto já estava arrumado, e logo a passos rápidos, atravessava a rua. No jornaleiro deu de cara com todos os matutinos, fotos e mais fotos de Citroën, da erma Ladeira do Sacopã, estava tudo no Diário de Notícias e no Correio da Manhã, no O Dia do Chagas Freitas - este usou a página toda - e até mesmo o sisudo Jornal do Brasil espremeria sua coluna de classificados da primeira página, para tratar do assunto em manchete estrondosa, embora sem fotografias. Mal atravessara a rua e a camisa novinha já molhara o cinto, ainda bem que trazia duas camisas passadas, dobradas e devidamente empacotadas, ia ser um longo dia e cadê Gercino?
Cada ligação que era recebida, uma gota escorrida. No final da tarde, a barra da camisa estava ensopada e nada de Gercino. Os funcionários foram indo embora, com suas consciências tranquilas e seus até logos leves, saltitantes, encontravam em Quarto um nada comum baiano angustiado, logo ele, falador e contador de casos, será que estava doente..? Quarto decidiu ficar na Câmara então esvaziada, quase sozinho e quase oito da noite, um ou outro gabinete ainda iluminado e uma camisa suada.
Dia 9 em casa, Volumosa dormia sossegada, seminua, e às sete horas, Quarto já estava arrumado, e logo a passos rápidos, atravessava a rua. No jornaleiro deu de cara com todos os matutinos, fotos e mais fotos de Citroën, da erma Ladeira do Sacopã, estava tudo no Diário de Notícias e no Correio da Manhã, no O Dia do Chagas Freitas - este usou a página toda - e até mesmo o sisudo Jornal do Brasil espremeria sua coluna de classificados da primeira página, para tratar do assunto em manchete estrondosa, embora sem fotografias. Mal atravessara a rua e a camisa novinha já molhara o cinto, ainda bem que trazia duas camisas passadas, dobradas e devidamente empacotadas, ia ser um longo dia e cadê Gercino?
O volume de investigações sobre o assassinato coberto minuciosamente pela imprensa mostrou a Quarto que, no caso dele, poderia ser ainda maior, fosse pela repetição em tão curto período de tempo, fosse pela política envolvida, afinal, tratava-se da mulher de um deputado, na Capital Federal. Só uma manchete estrondosa, ah, nada disso, seria muito mais, se fosse o caso da morte da Volumosa.
Quarto decidiu sentar praça na Padaria, mais precisamente no Largo e não dentro da padaria. Na pracinha dificilmente seria notado, uma vez que seu traje estava mais para Avenida Rio Branco do que adequado a uma padaria de bairro. Menos adequado ainda seria ficar nas imediações da pensão, na Rua Estrela. Pois que o Largo tinha ponto de bonde, crianças indo para a Escola Pereira Passos, ponto de motoristas de praça, jornaleiro, era bem mais fácil não ser percebido, mesmo com paletó na mão e camisa molhada.
Dia 9, nove e meia, Quarto entrou na padaria, viu Edvaldo que muxoxou um "não o vi até agora", tomou uma média e sentiu o imediato porejar, a camisa já estava molhada até os mamilos. A situação estava se encaminhando para um drama sem fim, Gercino ia liquidar a dupla em questão de duas, três horas, ia ser preso, baiano da mesma cidade do viúvo, iam chegar nele como mandante em questão de minutos, teria que renunciar ao mandato de deputado e seria sentenciado sem perdão. Ou seria possível que ninguém visse o crime, insolúvel como a ricina de mamona no sangue que leva a paralisia em segundos, e amanhã ele estaria no velório da Volumosa, de terno preto e condoído?
Quarto ainda perscrutou a mente em busca de mais alternativas, porque nenhuma estava encaixando bem; a melhor situação era persistir calmo na busca por Gercino, cobrir-lhe do dobro da quantia combinada e interromper a chacina. Mas, como ficar calmo com aquela camisa encharcada?
Não era recomendável aparecer na pensão, fora Gercino quem armara a ligação apenas via Edvaldo, que era quieto, sisudo e com quem já tinha tido um arranjo de sócio no passado, portanto de confiança total. Mas quem estava com a camisa molhada era ele, Quarto, não era Edvaldo e nem Gercino. Ô tensão braba de passar...
Dia 9, dez e meia, esse Gercino não come não?
Dia 9, onze horas, Quarto decide reexaminar todas as alternativas, calculadamente, para se mexer com certa urgência e achar um caminho, em parte pelo correr das horas fatais, em parte para não se afogar em suor, que já beirava o colarinho. Era abril, mas estava bem quente e a lama que descera pela Santa Alexandrina na semana anterior secara e exalava o cheiro característico de bactérias em decomposição, aquele cheiro de mangue seco, que lhe trazia memórias olfativas da agora longínqua Santo Amaro de Ipitanga. Longe em distância e longe nos anos. Não, essas lembranças não o ajudariam em nada.
Dia 9, dez e meia, esse Gercino não come não?
Dia 9, onze horas, Quarto decide reexaminar todas as alternativas, calculadamente, para se mexer com certa urgência e achar um caminho, em parte pelo correr das horas fatais, em parte para não se afogar em suor, que já beirava o colarinho. Era abril, mas estava bem quente e a lama que descera pela Santa Alexandrina na semana anterior secara e exalava o cheiro característico de bactérias em decomposição, aquele cheiro de mangue seco, que lhe trazia memórias olfativas da agora longínqua Santo Amaro de Ipitanga. Longe em distância e longe nos anos. Não, essas lembranças não o ajudariam em nada.
Ação era o que faltava, afinal desde nove horas naquela pasmaceira, ele era homem de ação, ou será que não era? Olhou mais uma vez para si próprio, sem ir longe demais no passado lamacento e, meio no desespero, começa a perceber que o acaso era parte importante em sua biografia. Será que dava para deixar o acaso resolver mais esta?
Dia 9, quinze para meio-dia, ação, finalmente, Quarto sai da padaria em direção à pensão que ele não sabia exatamente onde era, mas que era naquela calçada. Quando Gercino saísse, ele se veriam e pronto. Neste momento, ouve-se a sirene de uma rádio-patrulha, um camburão preto e branco, que sobe exatamente na mesma calçada para onde se dirigia Quarto e o som agudo da sirene vai se tornando grave, indicando a sua parada. Um sinal claro, para larápios e meliantes, de que a lei chega para todos.
O que mais faltava, pensou Quarto em um segundo, pois no segundo seguinte, um esbaforido sorveteiro todo de branco surgiu na escada, com uma caixa amarela dependurada em bandoleira. Em dois saltos estava na calçada e correu para pegar o bonde que arrancava da imobilidade. Uma acrobacia de execução simples não fosse o desvio de um automóvel, que não contava com a estancada repentina da viatura policial e se espremeu entre o bonde e ela, sem espaço para Gercino. A acrobacia de execução simples virou um salto mortal.
O que mais faltava, pensou Quarto em um segundo, pois no segundo seguinte, um esbaforido sorveteiro todo de branco surgiu na escada, com uma caixa amarela dependurada em bandoleira. Em dois saltos estava na calçada e correu para pegar o bonde que arrancava da imobilidade. Uma acrobacia de execução simples não fosse o desvio de um automóvel, que não contava com a estancada repentina da viatura policial e se espremeu entre o bonde e ela, sem espaço para Gercino. A acrobacia de execução simples virou um salto mortal.
Gercino foi pelos ares em voo direto para o beleléu, enquanto o automóvel sumia, levantando a poeira fedida. Os policiais saltaram da camionete e foram acudir o sorveteiro, ou o que restava do sorveteiro. Com o impacto, a correia da caixa amarela desprendeu-se e duas dúzias de sorvetes espalharam-se pela Rua Estrela. O bonde estancou.
Na mesma calçada estavam umas dez crianças, que saíam da escola e sem se preocuparem com o abalo da cena, viram nos sorvetes esparramados uma sorte grande de loteria gorda, desde que não derretessem. Não derreteram.
Na mesma calçada estavam umas dez crianças, que saíam da escola e sem se preocuparem com o abalo da cena, viram nos sorvetes esparramados uma sorte grande de loteria gorda, desde que não derretessem. Não derreteram.
Além da sorvetada espalhada, o Smith & Wesson .32 sem cão, niquelado, também voou e, bem mais pesado do que um Chica-bon, foi parar lá debaixo do bonde. Os policiais detiveram o bonde por uns dez minutos, mas as reclamações dos viajantes, justas, pois o bonde nada influíra no triste desenlace e também a próxima chegada do bonde seguinte, determinaram que o motorneiro seguisse viagem. Foi quando encontraram o revólver, na sujeira da rua, ligeiramente umedecido.
O livro completo pode ser adquirido na Amazon, ou na Estante Virtual, por cerca de 40 reais. E a versão e-book custa 18 reais.
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