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domingo, 5 de agosto de 2018

3102 - SX Psicografando, psicopintando



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5362 SX                           Data: 05 de agosto de 2018

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIV


SERGIO DELAUNAY

Com o passar dos anos vou me transformando, cada vez mais, num sujeito metódico. Percebo isso ao constatar que, pelo menos uma vez por semana, sou acometido por uma ideia de jerico.

A da semana passada foi recorrer a uma viagem de metrô para transportar duas grandes telas, que pintei, até a galeria de arte do meu amigo Jaime Vilaseca, na Rua Dona Mariana, em Botafogo. Agarrado a elas percorri quatro quarteirões do meu apartamento na Paula Freitas até a estação Siqueira Campos do metrô. A estação de Botafogo fica perto da praia. Carregando minhas obras-primas, caminhei por vários quarteirões ao longo da rua São Clemente, até chegar na Dona Mariana.

Causei espanto no vagão lotado do metrô. Otimista, imaginei inicialmente que os demais passageiros estavam embevecidos com a beleza dos meus quadros. Aos poucos, minha bola foi baixando e cheguei à conclusão de que, na verdade, estavam espantados com as proezas que eu cometia tentando me equilibrar no vagão, segurando minhas telas gigantescas.

Cheguei, finalmente, à galeria do Jaime. Numa sequência de bonitas casas situadas numa charmosa vila da Dona Mariana ele desenvolve suas múltiplas atividades. Produz molduras sensacionais e está ultimando providências para expandir em grande estilo sua galeria de arte.

Como eu, ele também é viciado em automóveis antigos. Proprietário de um lindo Triumph TR4, belíssimo carro esporte inglês, é alvo da inveja de toda a comunidade de colecionadores do Rio de Janeiro, que admira o destemor com que ele utiliza sua preciosidade, sempre envolvido em passeios nos fins de semana, ou até mesmo em viagens que contemplam longas distâncias, evitadas por esse escriba e pelos demais covardes do clube.

Como sempre, sou recebido com enorme simpatia pelo querido amigo. Minhas telas vão se juntar a duas outras que já estão devidamente emolduradas pelo Jaime, aguardando a inauguração de sua galeria. O evento vai envolver outros "colegas artistas", comes e bebes e apresentação de um grupo de jazz.

Dessa vez, Jaime me deu um susto: "Sergio, para expor seus quadros, preciso informar algo sobre sua trajetória artística. Como você descobriu essa vocação? De quem recebeu orientação? Gosto muito dos seus quadros, me lembram a obra de uma artista que admiro muitíssimo. Sonia Delaunay. Você se inspirou na Delaunay, não é verdade? Confesse!"

Vi-me, recorrendo a uma expressão recentemente criada, em palpos de aranha. Fui muito sincero. Nunca tive professor de pintura. Desenho mal. Sonia Delaunay? Nunca ouvi falar...

Pacientemente, Jaime Vilaseca me explicou que ela foi uma extraordinária pintora e cenógrafa, nascida na Ucrânia em 1885. Desenvolveu sua carreira em Paris, onde faleceu em 1979. Agraciada com a Legion D`Honneur, foi a primeira mulher a contar com uma retrospectiva no Louvre, o que aconteceu em 1964. Recorrendo à Internet, me apresentou à obra da grande pintora. E tinha razão. Meus quadros mostram formas geométricas e cores fortes bem ao estilo da Delaunay.

Permanecemos na estaca zero. O que Jaime poderá dizer aos milhares de clientes que vão se degladiar na ânsia de adquirir meus quadros?

Faço um esforço para transmitir algumas informações ao meu amigo. Explico que minha disposição de enfrentar a tela branca decorreu do fim do meu primeiro casamento. Saí de casa carregando apenas um travesseiro, deixando para trás quadros e tapetes que ornamentavam meu apartamento na avenida Rui Barbosa.

Não eram obras de pintores super renomados. Nem pensar em Portinaris, Pancettis ou Di Cavalcantis. Tinha em minha casa quadros de artistas que gostava muito, ainda que não tão valorizados: Henrique Cavalleiro, Manoel Santiago, Heitor de Pinho, Fernão Bracher, Haydéa Santiago, Mario Mendonça... Apreço especial eu tinha por um quadro pintado por Rui Campelo, primo distante, integrante do Núcleo Bernardelli. Sua obra não alcança preços altos. Mas é belíssima, sempre premiada nos salões de arte de que ele participou.

Expliquei ao Jaime que havia ficado incomodado com as paredes vazias de minhas novas moradias. Sem grana para refazer meu antigo acervo, desandei a pintar.

Meu pai foi também um incentivo importante que me atraiu para o mercado de arte. Comentei, numa antiga crônica que cometi para o "Biscoito Molhado", que Paulo Fortes era um talento multifacetado. O mais destacado barítono brasileiro desenhava como ninguém e produzia caricaturas extraordinárias. Adorava pintura e tornou-se amigo de muitos artistas importantes, frequentando suas casas. Euclides Santos, notável ilustrador da revista "O Cruzeiro", sempre o presenteava com pequenos quadros, por ocasião do Natal.

Recentemente "herdei" uma marinha maravilhosa, que ocupava lugar de destaque na sala de seu apartamento. A história da compra desse quadro é bastante peculiar...

Em 1954, Paulo Fortes cumpria uma temporada no Teatro Comunale de Florença. Durante seis meses cantou naquele grande teatro uma série de óperas desconhecidas no Brasil, que lhe demandavam ensaios exaustivos. Um jovem pintor expunha seus trabalhos nas proximidades da saída de artistas do Comunale. Era religioso. Todo dia o barítono parava para apreciar os quadros do tal pintor. Um deles chamava especialmente sua atenção. Um belo dia o sujeito não se conteve e disse: "Senhor, há meses o senhor pára na frente desse quadro e passa um tempo enorme apreciando meu trabalho. Por que não compra o quadro?" Paulo Fortes explicou: "É verdade. Não canso de admirá-lo. É maravilhoso! Mas não é barato... Vim do Brasil, meu país, para cantar nesse teatro. Estou super feliz, fazendo sucesso e ganhando um bom dinheiro. No entanto, meu contrato termina daqui a dois meses. Morro de saudades de minha família e não cogito renová-lo. Minha ideia é levar dinheiro para o Brasil. Não estou aqui para fazer compras..."

Mario Rinaldi, o pintor, declarou: "Entendo bem seu ponto de vista. Mas acho um absurdo o senhor deixar de comprar algo que tanto admira. Vamos fazer o seguinte. Vou lhe vender o quadro por uma fração do preço que peço normalmente. Na verdade, estou cobrando, basicamente, o custo da tela e das tintas. O que acha?"

Paulo Fortes não pensou duas vezes. Fechou negócio na hora. Poucos meses depois a marinha estava em seu apartamento, no Leblon. Hoje, para minha satisfação, enfeita meu apartamento em Copacabana.

Com o passar dos anos Mario Rinaldi ganhou fama na Itália. Hoje seus quadros podem ser encontrados em galerias e coleções de toda a Europa. Em certa ocasião, testemunhei uma conversa entre meu pai e Giuseppe Irlandini, italiano que era dono de uma grande galeria na Teixeira de Melo, em Ipanema. Papai falou sobre o quadro do Mario Rinaldi. Irlandini ficou tenso, não parava de perguntar: "O senhor vende? O senhor vende?".

Falei também com o Jaime sobre minha trajetória trabalhando com Ronaldo Cezar Coelho, proprietário de uma belíssima coleção de obras de arte. Especialmente sobre o espetacular Guignard que ele comprou em um leilão em Nova Iorque e não conseguia trazer de volta para o Brasil, por conta de tributos escorchantes que seriam cobrados. Difícil entender a lógica tupiniquim.

Falamos, também, sobre as belas obras que enfeitavam as paredes da Multiplic. Na sala do sócio Antonio José de Almeida Carneiro, conhecido no mercado financeiro como "Bode", havia um Marcier de rasgar as cuecas. Eu conversava muito com Antonio José sobre automóveis, tema que nos era muito caro. E não tirava os olhos do Marcier. Um belo dia o "Bode" me chamou para conversar sobre um Porsche espetacular, sua nova aquisição. Gelei. O Marcier não estava no lugar de sempre. No seu lugar, uma gigantesca tela branca, sobre a qual algum tarado derramou um balde de tinta Suvinil vermelha. Atônito, perguntei: "Bodão, cadê o Marcier?"  Resposta de Antonio José: "Descurti...". E apontando para o acidente ecológico acima de sua mesa, declarou: "Agora estou nessa...". A partir daí nossa amizade arrefeceu.

Muito mais falei com o Jaime na tentativa de justificar minhas veleidades artísticas. Imaginei, de certa forma, que o assunto poderia ser alvo de uma crônica para o "Biscoito Molhado".


Tomara que sim.

6 comentários:

  1. O Editor quer agradecer à Miriam Leitão a inspiração para criar o subtítulo, tarefa nem sempre facilitada pelos autores. Mas a terminação psicografada do programa sobre o Bolsonaro foi de tal forma impactante, que tornou fácil apostar no Delauney existente a virtude da Delauney desaparecida.
    Os vinhos Carmenère também desapareceram e renasceram no Chile, ora, por que não?

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    1. O Gentileza (que só respondia por monossílabos) virou filósofo,
      não mais profeta como era conhecido e contínua psicografando, ou seria psicopintando, suas gentilezas.
      Há outros...

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  2. Diferentemente do Biscoito a senhora Mirian Leitão não consegue me inspirar. Apenas, falando sério, senti a presença do ponto que a fez tremer os lábios. Parecia um Congresso (de triste memória) cheio de petistas a ganhar no grito.
    Sobre a crônica do Sérgio, a ausência do Fernando e do Biscoito, devo dizer que a alegria de vê-lo preenchendo com sua arte este espaço foi muito grande.
    Já houve cientista estudando sobre como ideias se expandem e se desenvolvem por diversas pessoas em lugares distantes no mundo. Na ciência o fato chega a ser corriqueiro.
    Obrigada, Sérgio.
    Não abandone o sonho. Como o colega carregue-o pelo metro, trem, carros de luxo, bicicletas. Pelo menos eles são discretos e não pesam. rs
    Um abraço.

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  3. Quanta coisa acontecida entre a publicação de 05.08.2018 e ontem.
    O Brasil não espera para piorar.
    Não queria perder a fé nas Instituições mas o contexto atual me obriga.
    Pensei que, após a queima do museu, nada pior poderia acontecer.
    Aconteceu!
    Uma facada na Democracia.
    Doeu. Muito.

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