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sexta-feira, 20 de outubro de 2017

3073 - SX Vendo dois por um



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5333 SX                           Data: 20 de outubro de 2017

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXV


NOVAS VELHAS FICHAS

Volto a mexer no baú de fichas, onde guardo roteiros que preparei para os programas que apresentava nas rádios MEC e Roquete Pinto. O propósito é sortear dois ou três temas por vez, e deles extrair temas para serem publicados no " Biscoito Molhado ". Sou um democrata, atento aos regulamentos. Conduzo esse sorteio nos termos da legislação em vigor. Ele é fiscalizado por representantes do Tribunal Superior Eleitoral, da Receita Federal e, como se impõe nos dias de hoje, dois Procuradores da Lava-Jato.

Minha primeira ficha fala de um programa de rádio que Paulo Fortes produzia e apresentava na Rádio Mayrink Veiga, no ano de 1946. A leitura dessas anotações me remete à incrível figura de Artur da Távola, com quem tive o privilégio de trabalhar na secretaria de cultura da cidade do Rio de Janeiro. 

"Rádio" era tema recorrente de nossas infindáveis conversas. Paulo Alberto, seu verdadeiro nome, somente usado pelos amigos mais próximos, dizia que Sergio Fortes sabia "tocar rádio". Na sua concepção, esse era o mais importante elogio que me podia fazer.

Infelizmente, o rádio acabou. Transformou-se, nos dias de hoje, em reduto de mau gosto, pregações religiosas suspeitas, funk, pagode, música sertaneja, locutores esportivos desprovidos de massa encefálica e de repórteres que vivem às turras com o vernáculo. Não vou falar das orquestras da Rádio Nacional, dos arranjos de Radamés Gnattali, Lyrio Panicalli e Leo Peracchi. De Heron Domingues e Majestade. Da PRK - 30, Max Nunes e Haroldo Barbosa. De Clovis Filho, Jorge Curi e Benjamin Wright. Seria covardia.

De volta às minhas anotações, me dou conta de que o barítono Paulo Fortes participou ativamente de programas de rádio, que produziu e apresentou nas décadas de 1940 e 1950 nas rádios Mayrink Veiga, Roquete Pinto, Jornal do Brasil e Gazeta de São Paulo. Sobre esse período da trajetória de Paulo Fortes, recorro ao testemunho de Carlos Heitor Cony, apresentado no excelente livro " Paulo Fortes, Um Brasileiro na Ópera ", de Rogério Barbosa Lima: " Foi assim que o conheci há anos, quando me botaram para escrever programas na antiga Rádio Jornal do Brasil, então PRF - 4. Minha tarefa era escrever os programas do maior barítono do Brasil: aquele vozeirão imenso, acompanhado pela bravíssima orquestra do Maestro Carlos Vianna de Almeida. cantava boleros, canções napolitanas, trechos líricos. Uma gentil mistura de Frenesi, Perfídia, Granada, com a Cavatina do Barbeiro, o Toreador da Carmen, a Canção do Aventureiro do Guarany. Minha obrigação era unir em má literatura aquela substanciosa salada canora e deixar Paulo Fortes inundar os estúdios e ouvintes com sua voz poderosa e maleável."

Minha ficha, retorno ao tema, faz menção ao ano de 1946. Pouco tempo depois de sua exitosa estreia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Paulo Fortes recebe de Edmar Machado, Diretor da Rádio Mayrink Veiga, convite para apresentar na emissora um programa em que cantaria árias de ópera, música de câmara, canções napolitanas e clássicos da música popular brasileira.

Em certa ocasião ele cantou "Guacira', de Heckel Tavares. E não poupou agudos no final da apresentação. A frase final da canção, "Pensando em ti...", foi cantada a plenos pulmões, num formidável sol natural. Encerrado o programa, ele é chamado ao telefone. E ouve uma voz reclamar, com acentuado sotaque nordestino: "Menino, eu gostei de sua voz cantando Guacira. Mas você precisa cantar mais piano! Pára de gritar essa música, ô rapaz! " Impulsivo, famoso aos 22 anos de idade, Paulo Fortes, sem esconder o mau humor, indaga: "E quem está falando aí?" a resposta: "É o autor, Heckel Tavares."

No dia seguinte o barítono corre à casa do maestro, no alto da Rua Marquês de São Vicente, na Gávea. Humildemente, pede conselhos sobre a interpretação de suas músicas. Mas não perde a chance de esclarecer uma dúvida que o atormentava desde garoto: "Mas afinal, Maestro, o que é... onde é Guacira?" Heckel Tavares responde: "Menino, não é nada. A própria música está dizendo: Meu pé de serra que nem deus sabe onde está. Isso não é coisa nenhuma. Ou melhor, não era. Agora é sapato, marca de goiabada...tudo é "Guacira". E eu não recebo os direitos autorais...".

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É hora de sortear uma segunda ficha. O assunto passa a ser o extraordinário compositor norte-americano Jerome Kern. Ele pode ser considerado o "pai" do teatro musical norte-americano, do gênero que conhecemos como musicais da Broadway. Esse trabalho de criação consistiu basicamente na adaptação da opereta européia e foi desenvolvido por um grupo de compositores que incluía, além de Kern, seus colegas Irving Berlin, Cole Porter, George Gershwin e Richard Rodgers. Mesmo tendo desempenhado papel tão importante, Jerome Kern pode ser apontado como o menos "americano" desse grupo. Sua produção tem raízes fortes na música clássica e na opereta, mantendo-se distante da influência do jazz, o que é uma tônica, por exemplo, na produção de George Gershwin.

Kern escreveu cerca de 700 canções e 100 partituras completas de filmes e musicais, durante uma carreira que se estendeu de 1902 até seu falecimento, em 11 de novembro de 1945. Ele nasceu na cidade de Nova Iorque. Seus pais, Fanny e Henry Kern, haviam imigrado da Alemanha e batizaram seu filho com o nome Jerome simplesmente porque moravam perto de uma localidade chamada Jerome Park, lugar que eles apreciavam muito.

Fanny encorajou seu filho a estudar piano. Henry, por sua vez, era um vendedor e, entre vários outros ítens, negociava com pianos. Queria que seu filho seguisse seus passos mas Jerome só queria saber de música. Jerome Kern estudou em escolas públicas, foi posteriormente aceito no New York College of Music e completou sua formação musical em Heidelberg, na Alemanha. Na virada do século se encontrava em Londres, onde viria a se casar. De volta a Nova Iorque trabalhou como pianista ensaiador, mas logo começou a se destacar como renomado compositor. Em 1915, muitas de suas músicas já integravam shows da Broadway. Um dos pontos culminantes de sua carreira foi o musical " Show Boat ", produzido em dupla com Oscar Hammerstein II.

Essa produção marcou definitivamente as carreiras de seus autores. A encenação apresenta mais de uma dezena de maravilhosas canções. "Ol´ Man River" e "Can´t help lovin dat man" são, possivelmente, seus números musicais detentores de maior reconhecimento. " Ol´ Man River" consagrou a voz do extraordinário baixo norte-americano Paul Robeson. "Can´t stop lovin dat man" é cantada no musical em mais de uma oportunidade. O momento mais dramático acontece quando ela é interpretada pelo personagem Julie, artista principal de um show que é encenado a bordo do " Cotton Blossom ", uma barcaça que sobe e desce o rio Mississipi. Julie aparenta ser uma mulher branca. Queenie, uma cozinheira negra, acha estranho Julie conhecer aquela canção, que só é cantada por negros. Julie, na realidade, é uma mestiça que tenta esconder suas origens. Casada com um homem branco, está sujeita às leis severas do Estado, que proíbem casamentos inter-raciais.

"Can´t help lovin dat man" fez sucesso na voz de Helen Morgan. Ela interpretou Julie na encenação original de 1927, na reapresentação de 1932 e na versão filmada de 1936. Enquanto viva, Helen Morgan foi praticamente dona da canção. Algo semelhante ao que aconteceu com Judy Garland e "Over the Rainbow". Mas ela morreu cedo, em 1941, Seus discos pararam de tocar e a versão filmada de "Show Boat", de 1936, foi obscurecida pelo filme que a Metro produziu em 1951, com Ava Gardner fazendo o papel de Julie. Sem cantar, é bem verdade. Ela foi dublada pelo soprano Annette Warren.

Não resisto à tentação de encerrar minhas considerações sobre a gloriosa trajetória de Jerome Kern sem falar sobre aquela que é, na minha avaliação, a mais extraordinária canção por ele produzida.

"The way you look tonight" foi composta por Kern e Dorothy Fields para o filme " Swing Time ", de 1936. Ganhou naquele ano o Oscar de melhor canção. Dorothy Fields comenta em suas memórias que Jerome Kern em certa ocasião sentou-se ao piano para apresentar-lhe a canção, em sua versão definitiva. Ela simplesmente não conseguia parar de chorar. 

No filme a canção é interpretada por Fred Astaire . Ele está ao piano. Ginger Rogers está se embelezando num cômodo próximo e também fica extasiada com o que ouve.
"The way you look tonight" mereceu dezenas de gravações, dos mais consagrados intérpretes. No cinema, volta e meia ela reaparece. Como aconteceu em "Chinatown", "O Casamento de Meu Melhor Amigo", "O Pai da Noiva", e no clássico de Woody Allen "Hanna e suas Irmãs".





Um comentário:

  1. A fidelidade aos temas é altamente louvável. A parte final sobre Guacira, deliciosa.
    A propósito, hoje pela manhã, ouvi, não vi pois que estava preparando meu almoço na cozinha, que músicas inéditas de Tom Jobim foram encontradas e uma cantora ideal para elas a cantava.
    Achei a pequeníssima audição mais para Angela Maria do que para Nara Leão. rs Sem julgamentos, ambas ótimas.
    Fico meio melancólica a pensar e repensar no que será verdade afinal.
    Tempos atrás,tristíssima, após a leitura da biografia da Maísa e na tentativa de assistir a uma lamentável série da televisão sobre a cantora preferi resistir e optar por guardar as minhas próprias e maravilhosas lembranças da artista querida.
    Eu disse louvável? Muito pouco. Retifico, mui digna e honrosa atitude.

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