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sábado, 16 de setembro de 2017

3069 - SX Halley foi para os fracos


           
O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5329 SX                           Data: 16.09.2017

FUNDADOR CARLOS NASCIMENTO  -  ANO  XXXIV


O COMETA PAULO FORTES


Sempre é tempo de homenagear grandes artistas. Meu pai, o barítono Paulo Fortes, foi um grande artista.

Seu palco principal foi o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ali cantou 57 óperas diferentes, em 330 apresentações. Marca insuperável na história do teatro.

Essa carreira se estendeu de 1945 a 1996. Mas podemos dizer que começou em 1943. Com uma viagem de bonde ao Jardim Botânico. Um dos passageiros é o Maestro José Torre, preparador e regente do Teatro Municipal. Outro é um rapaz de dezoito anos, que tinha pretensões de cantar ópera. Poucos meses antes o maestro havia assistido a uma encenação da “Viúva Alegre”, promovida pelo Teatro Universitário, de Gerusa Camões. Ficara impressionado com a desenvoltura e com a voz daquele menino.

Os dois saltam em frente ao suntuoso palacete de Dona Gabriella Besanzoni, hoje conhecido como Parque Lage. Gabriella Besanzoni foi uma lenda da arte lírica do século XX. Dividiu o palco com Enrico Caruso e Tita Ruffo. Cantou inúmeras vezes no Brasil e se casou com Henrique Lage, o mais poderoso empresário brasileiro da época. Quando Henrique Lage faleceu, em 1941, ela aqui permaneceu, incentivando a ópera, promovendo espetáculos e, sobretudo, transmitindo seus conhecimentos a jovens cantores que viriam a se destacar na cena lírica de nosso país.

Dona Gabriella ouviu o rapaz cantar a “Canção do Aventureiro”, do “Guarany”, de Carlos Gomes, e a “Cavatina” do “Barbeiro de Sevilha”, de Rossini. Aprovado com louvor, Paulo Fortes dava início, naquele momento, a um ciclo exaustivo de estudos de canto.

Dois anos mais tarde, a direção do Teatro Municipal, impossibilitada de contar com a presença do célebre barítono norte-americano Leonard Warren, procurava um substituto para cantar a parte do velho Germont na “Traviata”. Consultada, Dona Gabriella assegura que seu jovem aluno conhece o papel “de trás pr'a frente”. Pura esperteza. Em doze dias mestra e aluno ensaiam a parte com afinco.

Foi assim que chegamos ao dia 5 de outubro de 1945. A temporada de óperas do Municipal alcança o sucesso habitual. O teatro, a exemplo do Colon, de Buenos Aires, está integrado ao circuito internacional da ópera. Por conta disso, aqui se apresentam, com regularidade, as maiores expressões da cena lírica mundial: Tita Ruffo, Beniamino Gigli, Renata Tebaldi, Maria Callas, Mario Del Monaco, Giuseppe Di Stefano, Zinka Milanov...Impossível enumerar tantos astros de primeira grandeza.

A atração da noite é “La Traviata”, conhecidíssima ópera de Giuseppe Verdi. A estreia se reveste do brilho habitual. A iluminação da Cinelândia destaca os contornos do belo teatro, cópia em escala menor da Ópera de Paris. Os convidados começam a chegar. Imponentes automóveis, fabricados ainda na década de trinta e cuidadosamente conservados durante os anos da guerra, quando sua produção foi suspensa, estacionam à frente do Municipal, para onde se dirige a nata da sociedade carioca e as autoridades mais importantes da então capital da república.

Algumas horas antes, cinco para ser preciso, um jovem mal saído do Colégio São Bento para cursar a Faculdade de Direito também chegara ao Municipal, acompanhado de alguns familiares. Ele se apresenta na entrada dos fundos do teatro e tem dificuldades para convencer o porteiro de que é um dos integrantes do elenco da Traviata. Explica o que já sabemos: seu nome é Paulo Fortes, aluno de Dona Gabriella Besanzoni, escolhido para substituir o consagrado Leonard Warren, que não poderia atuar naquela noite por conta de um acidente sofrido recentemente em Nova Iorque.

O porteiro se convenceu. Talvez nem estivesse preocupado com tantos detalhes fornecidos pelo jovem cantor, mas principalmente espantado com o fato, inédito, de um artista chegar ao teatro às 16 horas para se apresentar num espetáculo que só teria início às 21 horas. Três gerações de porteiros do Municipal tiveram que se acostumar com esse ritual, ao longo dos cinquenta e um anos de carreira que o tal garoto viria a desenvolver no mais importante teatro do país.

Já no seu camarim, e agora sozinho, o estreante assumiu sua comovente inexperiência diante da dimensão da tarefa que se propunha realizar. Seu currículo não se estendia por mais do que dois parágrafos. Alguns espetáculos encenados pelo Teatro do Estudante, ao lado de Mario Brasini, Alberto Perez, Nathalia Thimberg, Wanda Lacerda, Milton Carneiro...e um concerto da Mestra Gabriella Besanzoni, na Rádio Gazeta de São Paulo, quando o maior contralto do século, ao se despedir de sua legião de admiradores, apresentou ao público paulistano o aluno que reunia, a seu juízo, melhores atributos para manter viva a chama de sua arte.

Envolvido por esses pensamentos, eis que alguém bate à porta do estreante. Ele se vê diante de um senhor de meia idade, que não perde tempo em declarar: “Garoto, eu acho que você precisa de minha ajuda”. Juntando o que lhe restava de petulância, o jovem indaga: “É? Por quê ?” Candidamente, o senhor pergunta: “Você sabe se maquiar?” O jovem se rende. Com habilidade, Amadeu Celestino, irmão do célebre Vicente Celestino, e também ele cantor, se entrega à tarefa de conferir àquele rosto quase adolescente a fisionomia madura de Giorgio Germont, pai de Alfredo Germont, como reza o libreto da Traviata, extraído de “A Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas.

O gesto carinhoso de Amadeu Celestino foi lembrado durante toda uma vida. Recolhido, já idoso, ao Retiro dos Artistas, foi ele, sempre, o interlocutor das demandas daquela casa junto a meu pai. “Ô Paulo! Tudo bem? O pessoal aqui está muito precisado de uma geladeira... Você pode ajudar a arrumar?" Paulo sempre ajudou.

A estreia do jovem barítono alcançou sucesso extraordinário. Marco inicial de uma brilhante carreira que se estenderia, como já foi dito, por cinquenta e um anos, nos palcos dos teatros de ópera da Europa e da América do Sul, no cinema, no rádio, na televisão e no teatro musicado.

No dia 9 de janeiro de 1997, quando esse cometa chamado Paulo Fortes encerrou repentinamente sua trajetória, recebi imediatamente de Roberto Dieckmann, Presidente do nosso clube de carros antigos, a incumbência de registrar o fato nas páginas da revista de nossa agremiação. Pareceu-me, inicialmente, algo pouco apropriado. Fugia ao espírito gozador da nossa revista. Aos poucos, no entanto, mudei de ideia. Me dei conta de que personagens como ele de alguma forma simbolizavam o apreço que nossa comunidade devotava à nossa cidade, às nossas tradições, a tudo que possui, verdadeiramente, valor histórico, artístico ou estético.

Para concluir, uma história rápida que resume a personalidade alegre, aguda e, sobretudo, carioca de meu pai. Ele foi um dos primeiros cantores de ópera a conseguir se aposentar, no Brasil, na condição de artista lírico. Tinha sua carreira incrivelmente bem documentada e por isso não foi difícil comprovar seus muitos anos de presença em nossa cena lírica. Transformou-se, a partir daí, em autoridade na matéria, sempre consultado por seus colegas interessados em obter também a sua aposentadoria.

Foi assim que um dia compareceu a uma audiência acompanhando o meio-soprano Gloria Queiroz,  para testemunhar a longevidade da carreira de sua colega. Estava acostumado a transformar esses compromissos em verdadeiras festas. Esperava ser recebido pelo Juiz, como de hábito, com um “E aí, Paulo! Tudo bem?” Naquela ocasião nada disso aconteceu. O tal Juiz era um osso duro de roer. Tudo questionava. Qualquer assertiva ou documento assumia diante de seus olhos a dimensão de fraude inquestionável. Paulo Fortes, também conhecido por seu pavio extraordinariamente curto, pediu permissão ao magistrado para acrescentar um dado a mais que talvez pudesse ajudar a comprovar os longos anos de carreira da amiga, desenvolvida quase sempre em sua companhia. “Meritíssimo, por gentileza, Vossa Excelência poderia me dizer quem rezou a primeira missa no Brasil?”

Atônito, respondeu o Juiz: “ Pois não. Frei Henrique de Coimbra, não é verdade?” Ao que Paulo Fortes, apontando para sua colega e para si mesmo, acrescentou: “ E nós, Meritíssimo, e nós. Ele no altar e nós no coro”.



4 comentários:

  1. Bom dia,
    A admiração e o amor filial transbordam a cada parágrafo somando-se a eles a biografia em linda prosa.
    Quem me dera encontrar algo semelhante nos jornais de domingo!

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  2. Quem teve o privilégio de vê-lo atuar num palco de ópera, quem com ele conviveu, recorre ao coração para falar de Paulo Fortes. Impossível disfarçar esses sentimentos, destacados por nossa leitora favorita.

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  3. Sérgio,
    Muito obrigada pelas palavras que elevaram em muito minha autoestima, no entanto devo confessar que o assunto 'amor filial' é por demais conhecido por esta sua leitora que perdeu os pais prematuramente e soube reconhece-lo nas primeiras linhas.
    Belíssimo exemplo para os jovens.

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  4. Como spalla da osb tive o prazer de acompanhá-lo em apresentações exuberantes e inesquecíveis. O talento , a técnica e o carisma de Paulo Fortes ficavam evidenciados logo nos primeiros sons emitidos: um fenômeno.

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