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quarta-feira, 3 de setembro de 2025

3166 - esse trem não volta mais para a estação (2)




O BISCOITO MOLHADO


Volume SV                    Data: 03 de setembro de 2025


CODINOMES (parte2)

uma história do assassinato que não 

houve porque houve um assassinato



1 - para se abraçarem no topo do mundo…


2. O FLAGRANTE


Tudo combinado, chegou a sexta-feira, mas a caravana do Getúlio superlotou de senadores e o deputado Quarto sobrou. Sem ter o que fazer na Câmara, sem ser o dia de Violeta, resolveu voltar para casa e viu com os próprios olhos, pelo canto do parabrisa, o belo chifre que, em cores vivas, lhe aprontava Volumosa, contrastando com todo o branco e preto da cena.

Sem escândalos, Quarto anotou a placa e gravou a cara do rapaz que fechava cerimoniosamente a porta. E se abaixou para não ser visto, escafedeu-se debaixo do painel, desapareceu, sumiu.

Báá!! diria como gaúcho, se não fosse Quarto baiano, de menino capitão de areia a homem deputado - tudo bem, fui ajudado por duas providenciais quedas de avião - não vou passar para a história democrática da Bahia como um dos maridos vivos dessa Dona Volumosa, ah, isso não! Filha de Maria duma figa!

A palavra vingança não sai da boca dos vingativos, que simplesmente a executam friamente. Quarto tinha costas queimadas e açoitadas pelas agruras da política do interior. Vereador, deputado do estado, agora federal, não era um Quarto de brincadeiras, era uma fortaleza do sertão. Não ia ficar barato. 

Como não ficara para o Xexente, subtenente.

Mas teria  Quarto sofrido a infelicidade de se ver traído, por ele mesmo, sem ninguém lhe contar, ou seria isso melhor do que alguém ter visto e contado? Seria, quem sabe, azar ficar com um ativo podre nas mãos, segurando a traição calado, ou seria a sorte de se ver livre de uma sociedade fracassada em que ele, Quarto, passou a ter a minoria das ações? Ele sempre avaliava os acontecimentos por dois pontos de vista, ou quatro, ou oito, mesmo quando era difícil alcançar o segundo. Aquela situação flagrante merecia uma avaliação criteriosa, silenciosa, como o salto da onça em cima do jacaré, se errar, ou perde a comida, ou vira almoço. 

E ele queria se ver senador, que sabe governador, meu rei sem trono? Mas, como, governador, se era de fato, corno..? Ninguém ia votar e divorciar, nem pensar, era o mesmo que suicidar, mas, ora, quem sabe, enviuvar? Com tantos infinitivos girando à frente dos olhos, só uma ação viria a calhar, Volumosa não podia ficar.

Enquanto pensava, teve a ideia de fazer Volumosa passear de avião. Ora, para Recife, ora para Salvador, ela levava documentos ou dinheiro vivo, uma responsabilidade que Volumosa aceitava de bom grado, pois só decolava na quinta-feira e voltava no domingo. Assim, Quarto não via a mulher por meia semana e Volumosa não perdia a quarta-feira; era mesmo para lhe ser irrecusável, ora ver a mãe querida, ora se empanturrar de vatapá, que é uma espécie de labskaus de baiano. O gosto é diferente, varia, mas não cai do prato e nem na terceira garfada esfria.

E quem sabe o avião não caía?

Entretanto, para não contar apenas com o acaso, por que não queimar acidentalmente Labskaus, Volumosa e o Oldsmobile, de preferência em preto e branco, ou melhor, bem preto, carbonizado, sem uma sombra de vapor. Mandou vir de Santo Amaro de Ipitanga o Gercino, seu cabo eleitoral de prestígio, se bem que mais cabo do que eleitoral, ele já tinha práticas em sumiços encomendados, sem deixar vestígios.

Chegado o jagunço, deu as diretivas para a tocaia das quartas-feiras. Gercino era rápido no gatilho e nem tinha chegado o fim do mês de março de 1952, quando o plano - incrivelmente - deixou de ser incendiário, para ser oposto em tudo.

A observação demonstrou que o Oldsmobile se deslocava em percursos movimentados, pela Zona Sul do Rio de Janeiro, depois da hora do almoço; seria impossível explodir o automóvel sem provocar um atentado contra muitos inocentes, o que sempre deixa rastro. Mas, invariavelmente, o casal parava na mureta do canal da Visconde de Albuquerque para ver o mar, perambulando no final do Leblon sem a concorrência de muitos pedestres, às vezes parando na subida da Niemeyer para assistir a uma ressaca. Depois de um tempo andavam até o sorveteiro da pracinha, para deleite de Volumosa, que era fã de Chica-bon.

Passaria a ser Gercino um sorveteiro ambulante, levando um caixote térmico com sorvetes e revólver carregado com projéteis de gelo, com uma sofisticada adição de ricina de mamona. O plano estava pronto e definido para ser colocado em movimento. Quarto estabeleceu o dia 2 de abril, aniversário de Volumosa, para o letal e gelado acontecimento.

Era quarta-feira e aniversário, mas choveu durante a manhã e a tarde toda. Naturalmente, ninguém saiu de casa, nem o casal e nem o sorveteiro Gercino, bastante incomodado com aquele súbito esfriamento do clima, que era péssimo para os negócios. O serviço teria que ser adiado para a quarta-feira seguinte, dia 9. E que não chovesse!

Na tarde do dia 8, entretanto, começou a cobertura jornalística do Crime do Sacopã, que virou coqueluche por terem  encontrado o bancário morto dentro de seu Citroën negro na Ladeira do Sacopã. Era fantástico como notícia, crime passional, mistério, automóvel, Zona Sul, um conjunto de vários ingredientes  consumíveis por um público acostumado à monotonia.

Na Câmara dos Deputados, o assunto já palpitava em todas as bancadas, a toda hora chegava uma notícia, ora dos envolvidos, ora da moça - e a semelhança com o projeto de Quarto era avassaladora. Quarto correu para travar a ação de Gercino.


3. A PADARIA MAIA


Isso era complicado. Gercino estava numa pensão no Rio Comprido que não tinha telefone, mas a Padaria Maia, na esquina do Largo do Rio Comprido com a Rua Estrela, quase em frente, tinha. Era só passar um recado para o Seu Edvaldo e assim que Gercino passasse por lá, o recado seria dado. Quarto dispensou seu assessor de telefonemas e falou direto com Edvaldo, mas não disse que era caso de vida ou morte - o que era a mais pura verdade - e que deveria ser omitido, para não levantar suspeitas. Desligou e começou a espera.

As notícias sobre o crime não paravam de chegar, rádio, jornal, policiais que serviam na Câmara e todas iam bater no Quarto, sabe-se lá por que o motivo de tanto magnetismo. Metabolicamente, a sua velha sudorese abdominal, há anos desaparecida, fez surgir uma gota que escorreu até o umbigo.

Cada ligação que era recebida, uma gota escorrida. No final da tarde, a barra da camisa estava ensopada e nada de Gercino. Os funcionários foram indo embora, com suas consciências tranquilas e seus até logos leves, saltitantes, encontravam em Quarto um nada comum baiano angustiado, logo ele, falador e contador de casos, será que estava doente..? Quarto decidiu ficar na Câmara então esvaziada, quase sozinho e quase oito da noite, um ou outro gabinete ainda iluminado e uma camisa suada.

Dia 9 em casa, Volumosa dormia sossegada, seminua, e às sete horas, Quarto já estava arrumado, e logo a passos rápidos, atravessava a rua. No jornaleiro deu de cara com todos os matutinos, fotos e mais fotos de Citroën, da erma Ladeira do Sacopã, estava tudo no Diário de Notícias e no Correio da Manhã, no O Dia do Chagas Freitas - este usou a página toda - e até mesmo o sisudo Jornal do Brasil espremeria sua coluna de classificados da primeira página, para tratar do assunto em manchete estrondosa, embora sem fotografias. Mal atravessara a rua e a camisa novinha já molhara o cinto, ainda bem que trazia duas camisas passadas, dobradas e devidamente empacotadas, ia ser um longo dia e cadê Gercino?

O volume de investigações sobre o assassinato coberto minuciosamente pela imprensa mostrou a Quarto que, no caso dele, poderia ser ainda maior, fosse pela repetição em tão curto período de tempo, fosse pela política envolvida, afinal, tratava-se da mulher de um deputado, na Capital Federal. Só uma manchete estrondosa, ah, nada disso, seria muito mais, se fosse o caso da morte  da Volumosa.

Quarto decidiu sentar praça na Padaria, mais precisamente no Largo e não dentro da padaria. Na pracinha dificilmente seria notado, uma vez que seu traje estava mais para Avenida Rio Branco do que adequado a uma padaria de bairro. Menos adequado ainda seria ficar nas imediações da pensão, na Rua Estrela. Pois que o Largo tinha ponto de bonde, crianças indo para a Escola Pereira Passos, ponto de motoristas de praça, jornaleiro, era bem mais fácil não ser percebido, mesmo com paletó na mão e camisa molhada.

Dia 9, nove e meia, Quarto entrou na padaria, viu Edvaldo que muxoxou um "não o vi até agora", tomou uma média e sentiu o imediato porejar, a camisa já estava molhada até os mamilos. A situação estava se encaminhando para um drama sem fim, Gercino ia liquidar a dupla em questão de duas, três horas, ia ser preso, baiano da mesma cidade do viúvo, iam chegar nele como mandante em questão de minutos, teria que renunciar ao mandato de deputado e seria sentenciado sem perdão. Ou seria possível que ninguém visse o crime, insolúvel como a ricina de mamona no sangue que leva a paralisia em segundos, e amanhã ele estaria no velório da Volumosa, de terno preto e condoído?

Quarto ainda perscrutou a mente em busca de mais alternativas, porque nenhuma estava encaixando bem; a melhor situação era persistir calmo na busca por Gercino, cobrir-lhe do dobro da quantia combinada e interromper a chacina. Mas, como ficar calmo com aquela camisa encharcada?

Não era recomendável aparecer na pensão, fora Gercino quem armara a ligação apenas via Edvaldo, que era quieto, sisudo e com quem já tinha tido um arranjo de sócio no passado, portanto de confiança total. Mas quem estava com a camisa molhada era ele, Quarto, não era Edvaldo e nem Gercino. Ô tensão braba de passar...

Dia 9, dez e meia, esse Gercino não come não? 

Dia 9, onze horas, Quarto decide reexaminar todas as alternativas, calculadamente, para se mexer com certa urgência e achar um caminho, em parte pelo correr das horas fatais, em parte para não se afogar em suor, que já beirava o colarinho. Era abril, mas estava bem quente e a lama que descera pela Santa Alexandrina na semana anterior secara e exalava o cheiro característico de bactérias em decomposição, aquele cheiro de mangue seco, que lhe trazia memórias olfativas da agora longínqua Santo Amaro de Ipitanga. Longe em distância e longe nos anos. Não, essas lembranças não o ajudariam em nada.

Ação era o que faltava, afinal desde nove horas naquela pasmaceira, ele era homem de ação, ou será que não era? Olhou mais uma vez para si próprio, sem ir longe demais no passado lamacento e, meio no desespero, começa a perceber que o acaso era parte importante em sua biografia. Será que dava para deixar o acaso resolver mais esta?

Dia 9, quinze para meio-dia, ação, finalmente, Quarto sai da padaria em direção à pensão que ele não sabia exatamente onde era, mas que era naquela calçada. Quando Gercino saísse, ele se veriam e pronto. Neste momento, ouve-se a sirene de uma rádio-patrulha, um camburão preto e branco, que sobe exatamente na mesma calçada para onde se dirigia Quarto e o som agudo da sirene vai se tornando grave, indicando a sua parada. Um sinal claro, para larápios e meliantes, de que a lei chega para todos. 

O que mais faltava, pensou Quarto em um segundo, pois no segundo seguinte, um esbaforido sorveteiro todo de branco surgiu na escada, com uma caixa amarela dependurada em bandoleira. Em dois saltos estava na calçada e correu para pegar o bonde que arrancava da imobilidade. Uma acrobacia de execução simples não fosse o desvio de um automóvel, que não contava com a estancada repentina da viatura policial e se espremeu entre o bonde e ela, sem espaço para Gercino. A acrobacia de execução simples virou um salto mortal.

Gercino foi pelos ares em voo direto para o beleléu, enquanto o automóvel sumia, levantando a poeira fedida. Os policiais saltaram da camionete e foram acudir o sorveteiro, ou o que restava do sorveteiro. Com o impacto, a correia da caixa amarela desprendeu-se e duas dúzias de sorvetes espalharam-se pela Rua Estrela. O bonde estancou.

Na mesma calçada estavam umas dez crianças, que saíam da escola e sem se preocuparem com o abalo da cena, viram nos sorvetes esparramados uma sorte grande de loteria gorda, desde que não derretessem. Não derreteram.

Além da sorvetada espalhada, o Smith & Wesson .32 sem cão, niquelado, também voou e, bem mais pesado do que um Chica-bon, foi parar lá debaixo do bonde. Os policiais detiveram o bonde por uns dez minutos, mas as reclamações dos viajantes, justas, pois o bonde nada influíra no triste desenlace e também a próxima chegada do bonde seguinte, determinaram que o motorneiro seguisse viagem. Foi quando encontraram o revólver, na sujeira da rua, ligeiramente umedecido. 



quarta-feira, 27 de agosto de 2025

3165 - Esse trem não volta para a estação



O BISCOITO MOLHADO


Volume SV                    Data: 27 de julho de 2025


CODINOMES

uma história do assassinato que não 

houve porque houve um assassinato

 

1. UM



Labskaus é o prato do marinheiro alemão. Mal o barco sai do Rio Elba, de fluxo calmo, quase suave e entra no Mar do Norte, ou, na melhor das hipóteses, no Mar Báltico, a coisa muda. Qualquer um destes mares fazem barco e marinheiros enfrentarem muito balanço e frio, às vezes muito mais balanço do que frio, às vezes vice-versa.

O conteúdo do prato precisa ser estável, para não deixar a comida cair no convés e compacto, para não esfriar na terceira garfada. Assim foi desenvolvido o Labskaus.

O Labskaus aqui não é a comida, mas o apelido de um espertalhão carioca, imune às situações adversas, fossem estas geladas, ventosas, ou inclinantes. Passa a tormenta e o espertalhão sobrevive incólume, como o matagal que se curva, ondulante e obediente aos ventos e depois fica de pé e sacode a poeira.

Labskaus não foi atraído para uma emboscada assassina porque dois dias antes, exatamente três dias antes, o bancário Afrânio fora atraído exatamente para uma emboscada assassina, executada premeditada e friamente pelo traído. Foi o conhecido Crime do Sacopã.

A repercussão deste caso fez com que o inimigo do Labskaus refletisse sobre a situação de haver no Rio de Janeiro de então, dois  assassinos passionais nos jornais, o que configuraria um emblema sinistro para a Cidade Maravilhosa de 1952. 

Labskaus ganhava bastante dinheiro alugando uma garçonnière na Avenida Beira-Mar. Apenas de segunda a sexta-feira e para políticos que orbitavam no Senado Federal, o apartamento ficava no quarteirão final da Beira-Mar, com porta de serviço nos fundos, pela Praça Virgílio de Melo Franco. Como esse endereço era próximo à Bolsa de Automóveis, do Aeroporto Santos Dumont e do Petit Trianon, o intenso movimento de pessoas, compradores e vendedores, proporcionava álibis culturais e automobilísticos adequados a encobrir encontros furtivos.

O edifício ficava numa zona super valorizada do Rio de Janeiro. Todos aqueles prédios tinham um zelador, ou zeladora. Todos tinham acabamentos dourados polidos, fossem nos corrimãos e maçanetas, fossem nas delicadas treliças pantográficas que fechavam os elevadores. No caso do nosso Labskaus, por doze anos tratava de tudo, chefiando três empregados, a Esmeralda, portuguesa. Um dia deixou substituta a filha Violeta, em um claro exemplo de dinastia bem sucedida e jamais posta em dúvida pelos condôminos. Em 1952, Violeta já passara dos quarenta anos, mas conservava uma silhueta que se pode chamar de atraente, resultado da ginástica frenética que a zeladoria lhe impunha.

Labskaus residiu ali durante dez anos e a morte dos pais em acidente da aviação permitiu-lhe botar a mão numa recheada herança, composta pelos bens dos pais e pelo seguro das vidas ceifadas. Mudou-se para o Morro da Viúva e concebeu um projeto de garçoniére diária para o imóvel.

Garçoniére já estava sendo, mas a custo zero e apenas para os amigos, que pegavam a chave com a zeladora. Violeta reclamava do mau uso da casa sempre que via Labskaus, mas  ficava por isso mesmo. Da orfandade em diante, entretanto, o cano da pistola iria mudar de lado e o apartamento seria alugado em cada dia da semana a cinco inquilinos permanentes, que encontravam na sua vez, um canto limpo e cheiroso, preparado pela mesma diligente Violeta, promovida de zeladora a rica cafetina, encerrando por completo as queixas anteriores. Uma sociedade plural onde todos ganhavam. 

Vez por outra, um fim de semana chuvoso aqui, outro ali, Labskaus encontrava conforto com a Violeta, a quem chamava, sussurrando ao pé do ouvido, de a preferida de Ferdinando, a musa da seminudez para dez entre dez leitores das páginas de quadrinhos de O GLOBO. Violeta, a gostosona de Brejo Seco, virada da Violeta zeladora, encanto balzaquiano e garantia permanente de um grande dia.

Mas quem eram os inquilinos de Labskaus?

Se a leitora acha que nomes sairão em lista pronta para questionamentos judiciais, deve parar imediatamente de ler Grande Hotel, pois romances furtivos não têm roteiro de cinema, ao contrário, florescem cada um à sua moda e no nosso caso, em cinco versões, uma para cada dia da semana. E, certamente, todos judicialmente questionáveis, até pelos padrões sociais dos anos 50.

Labskaus e Violeta tinham cinco inquilinos:
Na segunda-feira, o Segundo.
Na terça-feira, o Terceiro.
Na quarta-feira, o Quarto.
Na quinta-feira, o Quinto. E, na sexta-feira, o Senador, pois não ficaria bem chamar um senador de sexto.

E tudo corria muito bem, às mil maravilhas, a chave sempre com a zeladora, o aluguel religiosamente pago e era raro o dia em que o apartamento não tinha ocupação, exceto, claro, nos feriados, quando as obrigações familiares de cada Romeu determinavam a escolha da Julieta do cotidiano.

Quarto pediu um dia que Violeta encomendasse um almoço,  a ser regiamente remunerado à zeladora. Essa tarefa extra iniciou uma aproximação entre a eficaz e atraente zeladora e o nosso Quarto, um prolixo deputado federal do Estado da Bahia, cinquentão e cheio de disposição. Logo, outro almoço e mais outro, até que Quarto fez um almoço sem convidada...

Violeta almoçou e passou a responder também pela cama do Quarto. A intimidade da conversa cresceu e levou a nossa zeladora e cafetina às tarefas de terapeuta de casal. Nem era remunerada por tal, mas Quarto não tinha a mínima preocupação de sigilo contratual  e Violeta logo ficou sabendo de tudo que se passava, de normal e anormal, em pouquíssimo tempo.

Quarto casara com jovem loura pernambucana, educada Filha de Maria, que veio com armas e bagagens para Copacabana, a cereja do bolo da Capital Federal, para completo encanto da moça. Pouco afeita ao mar, atirou-se com o suporte das verbas frouxas da política ao consumismo desenfreado, um pouco de vestuário chique e um muito de Confeitaria Colombo, o que lhe trouxe felicidade e alguns quilos sabiamente distribuídos, que a tornaram Volumosa.

Em meia dúzia de sábados com Violeta, Labskaus passou a saber do que não sabia que precisava descobrir. O dia certo, o endereço, os hábitos. Caçador nato, procurou logo ver do que se tratava. 

Encontrou Volumosa, a volumosa, mas não adiposa mulher,  uma gelatina gelada que balança, mas não cai da colher, algo em comum com Labskaus, o que não escorrega do prato. De Colombo em Colombo, de torta em torta e de coxinha em coxinha, chegou ao contato, batendo papo no ponto certo e já que morava perto, por que não usar o próprio quarto do Quarto? Ainda mais que quarta-feira era dia de batente para o deputado; e Labskaus contou toda a história, ou quase toda.

E foram usando o quarto, a sala, a cozinha, corredores e banheiros, sim, inclusive o armário do banheiro de empregada, para os abraços do casal, se é que o nome certo é abraço. Houve, entretanto, com esse inusitado périplo pelos metros quadrados do apartamento-alcova, uma inesperada mudança, o caçador encantou-se, tornou-se ele a presa.

E apareceu no calendário uma oportunidade de um segundo encontro semanal... o Aeroporto do Galeão iria ser inaugurado na sexta-feira, primeiro de fevereiro de 1952 e o nobre representante baiano estava incluído na caravana de Getúlio Vargas... coisa de dia todo. Volumosa contou a novidade para Labskaus e os pombinhos vislumbraram a oportunidade única de terem mais um dia inteiro para aumentar a cornualha do deputado. Dava até para ir a Paquetá!

Não iriam a Paquetá, mas ao Sumaré, para se abraçarem no topo do mundo, de carro, o cupê Oldsmobile Futuramic, branco com teto preto - saia e blusa, era como se dizia - e pneus de banda branca, bem larga, quase tocando no chão. Volumosa, a pedido de Labskaus iria também de saia preta rodada e blusa branca decotada... Levariam ainda toalhas pretas e brancas para banhos ao natural, nas cascatas da simpática estradinha. Cada escorregada, um abraço, riam-se muito ao programarem a fascinante excursão.




quarta-feira, 19 de março de 2025

3164 - Tão moderno...

 
O BISCOITO MOLHADO


Volume SV                    Data: 29 de outubro de 2004

 


OS ROOSEVELTS

Allen Churchill, no seu livro sobre os Roosevelts, cita uma frase do eminente historiador da política americana, Richard Hofstadter, que destacou o temperamento do presidente como a peça principal na luta   contra a grande depressão:


-"No âmago do New Deal não estava uma filosofia, e sim um

temperamento."

E o historiador assim conclui o seu raciocínio:

-"A essência desse temperamento era a confiança do presidente,

mesmo consciente do terreno desconhecido em que se encontrava, que não erraria."

Allen Churchill, depois dessa citação, escreve que estava arraigada na personalidade de Franklin Delano Roosevelt uma ansiedade que o fazia encarar cada problema da vida como uma novidade e um estímulo. Era uma qualidade efervescente de otimismo que levava muitos a sentirem que Roosevelt, embora escarmentado pela doença, jamais deixaria de ser jovial.


-"Até o fim dos seus dias, ele era vivo como um menino." - cita     Allen Churchill um trecho redigido por John Gunther, um                     respeitado jornalista da época. A seguir, o biógrafo dos Roosevelts         acrescenta:


-"Nisso, naturalmente, ele se assemelhava ao seu primo, o ex-

presidente Theodore Roosevelt. Mas a despeito dos traços da

adolescência, Franklin era maduro sob outros aspectos e                    Theodore não o era."


Uma das primeiras ações do presidente, em 1933, foi visitar o

influente juiz da Suprema Corte, Oliver Wendell Holmes Jr, que

estava doente. Este, pouco depois da visita, expressou a sua

impressão sobre o presidente recém-empossado:


"Um intelecto de segunda, mas um temperamento de primeira

classe."


Um temperamento de primeira classe seria imprescindível para o comando dos Estados Unidos no meio da maior crise que já atingira a economia capitalista; quanto ao intelecto de primeira, fazia-se mais necessário aos membros da equipe do presidente do que a ele próprio. E ele soube cercar-se de excelentes cérebros. Eis o que registram os historiadores:

Para o seu Gabinete, Franklin Delano Roosevelt escolheu vigorosos individualistas, como Harold Ickles, e este, com o seu estado-maior, consideraram-no sempre o Chefe, sabiam que ele estava sempre no comando. O presidente, na realidade, reuniu equipes de conselheiros que iam dos idealistas do Brain Trusters até os calejados políticos. E mesmo no meio de um turbilhão de opiniões, na maioria das vezes contraditórias, ele não se perturbava.


Sua cabeça até foi chamada, pelos mais íntimos, de papel apanha-mosca, porque ele considerava todos os conselhos, antes de depurá-los na hora de agir.


Grace Tully, aquela que foi a sua secretária por dezesseis anos (a sua amante fora outra secretária) lembrava que, por diversas vezes, sabendo que um ramo do governo se encontrava com um problema difícil, Franklin dizia:

"Mande-o para mim. Minhas costas são largas, e eu posso suportar a carga."


Esses anos todos de experiência ao seu lado levaram-na a declarar que Roosevelt possuía no mais elevado grau a vontade de assumir a principal responsabilidade pelos acontecimentos.


"Em Roosevelt, o ardor e o otimismo se misturaram a sua força interior, criando, assim, um desses homens excepcionais que gostavam de tomar decisões." - concluíram os historiadores.


Sempre foi explícito em Franklin Delano Roosevelt, bem mais do que em Theodore Roosevelt, o amor pela política. "O que mais lhe interessava era a alta política" – assinala Arthur Schlesinger - "não a política no sentido de intriga, mas de educação." A própria visita que fizera ao adoentado juiz, Oliver Wendell Holmes Jr, já fora um ato político: as medidas do New Deal chegariam à Suprema Corte.


Numa admirável análise sobre o seu marido, Eleanor concluiu que, misturado com o desejo de Franklin de fazer a vida mais feliz para as massas, estava o seu gosto pela mecânica da política, não como uma ciência apenas, mas como um jogo. E isso envolvia compreender as reações do público e a lidar com essa compreensão.


Ela também disse que Franklin se considerava um instrumento escolhido pelo povo e que, como tal,tinha a obrigação de esclarecê-lo e liderá-lo. Não havia problema, dizia ela, que o marido considerasse intransponível pelos seres humanos.


-"Eu nunca o vi encarar a vida, ou qualquer problema que surgisse, com medo." – escreveu.

Bem alto, na lista das virtudes de Franklin Delano Roosevelt, a sua esposa colocava o seu senso de humor que, no momento exato, permitia-lhe transformar o assunto mais sério num objeto de divertimento.


Na Convenção do Partido Democrata que o indicou a presidente pela primeira vez, vemos nos documentários o quanto se divertia com as piadas do humorista Will Rogers (1879-1935), que não abrandava o seu espírito com ninguém, basta olhar algumas das suas frases:

-"Invista em inflação; é a única coisa que continua subindo."

-"O imposto de renda produziu mais mentirosos do que jamais ousou sonhar o diabo."

-"Todo o mundo é ignorante, só que em assuntos diferentes."

-"Tudo é engraçado, desde que esteja acontecendo com outra pessoa."


Nos documentários que assistimos, Will Rogers brada, na Convenção Democrata de 1932, que tem a mente aberta, e por isso, anunciaria ali até mesmo Herbert Hoover, caso ele aparecesse. Quando finalmente anuncia o sorridente Franklin Delano Roosevelt, expressa a sua surpresa com o numero fantástico de pessoas que pagaram tão caro para ver um político.


Roosevelt, com o seu temperamento de primeira, sabia o quanto o humor era também necessário para derrotar aquela terrível crise, mesmo que fosse o humor cáustico de Will Rogers, que voltou a atacar nos seus primeiros dias de governo:

-"Não temos empregos, não temos dinheiro, não temos bancos, e se ele (Roosevelt) tivesse queimado o Capitólio, nós teríamos dito:


Graças a Deus que ele pôs fogo em alguma coisa."

domingo, 2 de fevereiro de 2025

3163 D - Leão da Baviera

O BISCOITO MOLHADO


Volume SV                    Data: 03 de fevereiro de 2025

 


RO-BER-TÓ


Conheci o Jorge Lettry em S. Lourenço. Ele assistiu a uma palestra que fiz no hotel durante o evento do Veteran Car de Minas Gerais. A palestra era sobre o automóvel no Rio de Janeiro - do Barão do Rio Branco ao tempo da internet - e consegui juntar muitas fotografias de 1900, com arrojados motoristas e seus artefatos mecânicos de então. 


Naturalmente, a identificação desses automóveis veteranos daquelas "rodovias" é muito difícil e entre as fotos escolhidas, havia duas que eu realmente não tinha nem pista do carro que poderia ser. Então sapequei, com a firmeza de alpinista em Pão de Açúcar molhado, que seriam o Unknown 1902 e depois, o Unknown 1909. Não abusei do uso dessa desconhecida marca e ninguém falou nada, aplaudiram o suficiente para eu ficar satisfeito e ir embora.


Na saída, o Jorge se apresentou e falou baixinho: "Unknown, é?". Caímos na gargalhada e ficamos amigos instantaneamente, o que, eu soube depois, não era nada corriqueiro com ele.


Patrão severo, chefe de equipe de competição da Vemag nos anos 60, impunha muita disciplina aos jovens pilotos, quase sempre garotos que davam o coração e o talento nas pistas, mas que certamente, detestavam obedecer ordens de quem quer que fosse.


Mas não eram só os pilotos que sofriam... mecânicos, chefes, entrava todo mundo pelo cano na presença de seus argumentos irrefutáveis e dados precisos, praticamente fatos. A lista é enorme, pois logo que chegou no Brasil foi para uma revenda Volkswagen, antes mesmo da fábrica se instalar em 1953. Quando começaram a acompanhar os resultados das oficinas, a alemãozada deu de cara com copiosos relatórios do Jorge. Aliás, ele não gostava nem um pouco de Fusca, metia o pau com vontade.


Naqueles tempos, os carros de competição iam para as corridas rodando, às vezes, 500, 600 km e cada piloto levava o carro que pilotaria em seguida. Consta que havia recomendações em relação à velocidade máxima, para que não se afastassem muito do caminhão da fábrica, onde ia o Jorge. A turma sumia na poeira...


Costumeiramente um pneu furava, ou quebrava um parabrisa; o Jorge passava insensível pelo infeliz, às vezes dava um tchau.


Eu sabia disso tudo, mas tinha a sombra do Unknown a meu favor e, no nosso papo, ele falou que tinha sítio, que fazia marzipã e mais isso e mais aquilo, naquela conversa de duas horas. Disse a ele que eu frequentava um restaurante do Rio que servia marzipã de própria fabricação, o Leão da Baviera, e o Lettry abriu um olhão. Como eu era presidente do Veteran carioca, eu o convidei para dar uma palestra e que no dia seguinte, eu o levaria para provar o tal marzipã.


A palestra foi um sucesso, gente saindo pelo ladrão na velha casa de Santa Teresa - para onde o clube se mudou após ser despejado do imóvel anterior sob falsas premissas, uma característica pessoal do presidente que me antecedeu. Eu fiquei feliz com a palestra, um sucesso que solidificou a claudicante nova sede e no dia seguinte, promessa mantida, lá fomos nós para o Leão da Baviera.

O Lettry me avisou que viria também um amigo, o Pessoa de Mello, ou Homem de Mello, não tenho certeza hoje, mas era uma pessoa e homem, além do Mello indiscutível. Entretanto, ele me avisou que a chegada do Mello estava atrasada e que não poderíamos almoçar no horário comum.


Não houve problema, pois o dono do Leão da Baviera era o Bertrand, um alemão super simpático que atendia os clientes com sua mulher de pele de seda, Márcia, a Mulata nº2, ou seja, vem aqui mais história.

O Bertrand começou o Leão com a primeira mulher, que não conheci, mas que devia ser igualmente atraente. Um dia tirou férias para visitar a mãe na Alemanha e, para não perder a auxiliar, levou-a junto. Chegando lá, o casal foi tomar chopp com os velhos amigos do Bertrand, que ficaram maravilhados, estonteados, e certamente esfomeados, com a visão da formosura em tom de chocolate amargo. Não tiravam o olho nem um segundo, e toda hora cumprimentavam o amigo pela sábia escolha de tão bela companheira. Foi tanto cumprimento que o Bertrand saiu-se com essa: - Ihhh, lá no Brasil tá cheio!


Foi o bastante, os amigos replicaram na hora - "Então deixa ela aqui". E assim chegamos na Mulata Nº2, pois a primeira ficou entre os germânicos. Passada esta importante evolução da administração do Leão da Baviera, voltemos ao almoço. Chegamos quase três da tarde, Bertrand nos recebeu com um sorriso naquele espaço que mais parecia um stand da BMW. Toalhas quadriculadas de azul e branco, sofás azul e branco, cortinas azul e branco... Estava completa a ambientação daquele encantador Leão da Baviera, paredes de madeira, cores nacionais, uma sequência de moças achocolatadas e um bávaro no fogão. Meus convidados se encaixaram muito bem no ambiente e começava uma longa e preguiçosa tarde, com um final feliz previsto para ser coroado por marzipã caseiro.


Porém, mal bebemos uma rodada das compridas cervejas de trigo, a porta se abriu e cinco japoneses entraram muito respeitosamente no salão, indagando se podiam comer. Bertrand abriu o sorriso de casa cheia às três da tarde e gesticulou amigavelmente para que entrassem. Os japoneses também se encaixaram perfeitamente no ambiente e o Lettry, de repente, parou dez segundos, estático, silencioso, um tanto fora do normal e disse: este é um momento histórico!

Não entendi nada e nem o Mello, que era conhecedor dos rompantes do mago dos DKW e petrificou um sorriso pela metade, nem sonhando no que poderia vir daí, porque ele sabia que algo viria, ah, isso viria. Lettry repetiu, este é um momento histórico, e ante a minha cara atônita, perguntou: teu nome não é Roberto? É, disse eu ainda tranquilo. Pois então, Ro-ber-to, Roma, eu, italiano, Berlim, você e o bávaro e Tóquio, a japonesada. Vou lá conversar com eles. Diante dessa situação pró-Eixo, eu também achei melhor me petrificar e ficamos eu e o Mello a uma distância segura de algum estilhaço que poderia vir nos atingir. Não sei se tinha intérprete, se eram nisseis, sei que em dois minutos o Lettry estava sentado com eles, todos rindo de se acabar, de vez em quando apontando para mim, da história eu era o Berlim e também do Roberto o estopim. E o marzipã? Nem lembro.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

3162 D - Muito antes da tartaruga ninja

O BISCOITO MOLHADO


Volume SV                    Data: 03 de janeiro de 2025

 


SANGUE E LARANJA




1) O TEMPO:
A história toda leva - na pequena parte que me coube - uns quinze minutos, no máximo. Houve um tempo de planejamento, que hoje eu não saberia precisar, mas a ação foi de quinze minutos, e uma baita ação.

2) O TEMPO:
Era chuvoso, aquela mini chuva, típica do inverno, com certeza era no inverno do Rio de Janeiro, pois foi usada uma japona tipo marinha, uma moda que andou em voga, mesmo quando o frio não era intenso. Muita gente suava dentro daquelas japonas de lã dupla, mas mantinha a pose. Não me lembro de suar naquela noite, talvez um pouco nas mãos, que não era de calor.
A japona e um boné me protegiam tanto da leve precipitação, quanto da curiosidade alheia.

3) O TEMPO:
O espírito do tempo, ou da oportunidade. A reação precisa ser sentida como consequência, não pode ser deixada para dois meses depois.

4) AS VÍTIMAS:
Eram duas tartarugas de grande porte, embora uma um pouco menor do que a outra. Talvez fossem mãe e filha, o que agravou o crime perpetrado, assassinato em presença de menores.
A espécie Podocnemis expansa é sujeita à proteção do Programa Quelônios da Amazônia (PQA) e elas não poderiam ser abatidas - fica determinado que eram mãe e filha - para consumo humano.

5) PREÂMBULO DO CRIME:
Assisti à chegada das imensas tartarugas, que passeavam pela ensolarada área de serviço do apartamento S-104, imediatamente abaixo do meu; eu tinha uma vista privilegiada dos animais, que constituíam um jardim zoológico exótico e inédito. Pareciam felizes, lentamente se movimentando em busca de alfaces e outros vegetais, gentilmente fornecidos pelas sobrinhas do coronel amazonense, chamado Osíris.
Segundo más línguas, que incluíam a da minha mãe, não eram sobrinhas coisa nenhuma e sim concubinas do adiposo e bigodudo coronel que alimentava o harém, bem como as tartarugas.
Realmente, essas sobrinhas tinham um comportamento estranho, mas eram elas que alimentavam as tartarugas e eu ficava feliz.
Duas ou três semanas durou a minha alegria.

4) O CRIME:
O assassinato ocorreu em um fim de semana qualquer, executado por um profissional munido de uma machadinha. Foi horroroso demais para descrever em páginas que podem ser lidas por pessoas sensíveis à visão do sangue, que jorrava folgadamente de cada uma das inúmeras incisões machadianas.
Não havia barulho audível, talvez elas fossem mudas, ou talvez a primeira machadada tenha sido em suas cordas vocais, mas me foi impossível parar de sentir os golpes sucessivos daquele cirurgião de açougue. Foi tudo muito doloroso.
Viradas de casco para baixo, levaram muito tempo para chegar ao último suspiro e deixaram a área cimentada colorida por um vermelho amazônico.
Enfim, passado um bom tempo - talvez duas horas - os cascos foram separados das carnes e tudo desapareceu da minha observação.

5) A FESTA:
Não fui convidado para o longo almoço que durou toda uma tarde. Não sei se comeram tudo, mas lembro do cheiro, pouco atraente para quem está acostumado a churrasco, vatapá ou bouillabaisse - estes são os meus pratos preferidos - e acho que eu não ficaria freguês. Se bem me lembro, um fogo foi aceso sob o casco maior, para dar a sensação olfativa autêntica e o fato é que osso queimado tem cheiro ruim.

6) VINGANÇA:
Na minha cabeça, isso não poderia ficar barato. Algo precisava acontecer, se fosse possível, em hora do exercício do concubinato.
Lembrei que as vidraças da sala dos apartamentos eram bem grandes, quatro vidros de quase um metro por um metro. Imaginei uma pedra partindo as vidraças, ou uma só que fosse, que barulho fenomenal faria naquela paz noturna da Santa Teresa adormecida. Sim, uma janela quebrada numa noite fria, abrindo caminho para um vento gelado da madrugada, seria a vingança.

7) PROJETO:
Eu não tinha pedras em casa, olhei tudo em volta e achei laranjas. Laranja Lima, a única que entrava lá em casa. Selecionei duas maiores, enfiei na japona e saí, aproveitando alguma visita que os demais ocupantes da casa faziam enquanto eu estudava Geometria.
Apesar de ter meu quarto, eu só estudava na sala de jantar, onde a mesa era grande e facilitava muito ao meu pai verificar meus erros, ou os raros acertos.
A casa das finadas tartarugas era exatamente igual, as mesmas janelas, só um andar abaixo.

8) AÇÃO:
Saí com a japona, as laranjas e o boné. Talvez passasse das nove horas, não tinha ninguém na rua do bonde, a Mauá, menos ainda na Teresina, a rua debaixo. O poste de luz ficava em frente ao muro do meu prédio, iluminando a fachada e as tais janelas, enquanto que qualquer atirador de laranjas noturno ficaria com o rosto sombreado. Para facilitar um pouco mais, havia alguns carros estacionados na rua, que estavam no conserto da oficina do Pinho. Estes carros traziam mais sombra ao cenário, permitindo anonimato total a um franco-atirador de laranjas. 
Já estando na rua e com uma laranja na mão, a ação estava pronta.

9) A MIRA:
Encostei no poste e olhei a situação, tudo absolutamente calmo e igual ao minuto anterior e aos dois minutos anteriores - nada acontecia, apenas um leve suor marejava entre meus dedos e a laranja.
Dei um passo à frente e armei a posição de lançamento de laranja, parecida com a do arremesso olímpico de disco. O ângulo de tiro era tranquilo, bastava ultrapassar o muro do prédio em linha reta e a janela seria atingida.
Lancei a laranja e por um, dois segundos, observei, curioso e satisfeito, a sua trajetória. A fruta ultrapassou o muro em linha ascendente e, diferentemente de todo o projeto, continuou subindo, entrando pela vidraça da minha casa.
Cheguei a pensar em arremessar a segunda laranja, mas, em vista do primeiro fiasco e sem ter crença em que alguma coisa pudesse sair diferente da primeira tentativa, abortei tudo e voltei para casa com a laranja remanescente.

10) O ESTUDO:
Cheguei na mesa e limpei parte dos mil estilhaços do vidro. A laranja também estava lá, em bom estado, de modo que deixei a fruteira exatamente como estava antes de sair.
O frio era intenso, mas eu já estava de japona e então sentei devidamente agasalhado na cadeira habitual e recomecei a estudar os ângulos e paralelas que faziam da Geometria a minha matéria preferida. 

11) CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS:
Não demorou muito e chegou o povo de casa. Olharam a situação, perguntaram se eu havia me machucado - o que me sensibilizou muito - mas eu expliquei que, no momento da quebra do vidro, eu estava fora da sala, nada tinha visto, nada sabia, uma meia verdade que guardei por mais uns 30 anos. Meu pai olhou aquilo e concluiu que era vingança de alguém que fora prejudicado por mim, afinal eu e os meus morteiros, etc etc.

De vez em quando eu contava essa história para amigos, mas jamais para parentes. Mas justamente meu colega de turma Gustavo Frota passou a beber uma cerveja comigo e com meu pai e um dia relatou o fato... "seu Waldemar, a história da vidraça quebrada pelo morador que estudava" e por aí foi relatando tudo.

Meu pai dobrava de tanto rir. Gustavo, idem. Foi bom proporcionar essa alegria aos dois.