O BISCOITO MOLHADO
Volume SV Data: 03 de janeiro de 2025
SANGUE E LARANJA
1) O TEMPO:
A história toda leva - na pequena parte que me coube - uns quinze minutos, no máximo. Houve um tempo de planejamento, que hoje eu não saberia precisar, mas a ação foi de quinze minutos, e uma baita ação.
2) O TEMPO:
Era chuvoso, aquela mini chuva, típica do inverno, com certeza era no inverno do Rio de Janeiro, pois foi usada uma japona tipo marinha, uma moda que andou em voga, mesmo quando o frio não era intenso. Muita gente suava dentro daquelas japonas de lã dupla, mas mantinha a pose. Não me lembro de suar naquela noite, talvez um pouco nas mãos, que não era de calor.
A japona e um boné me protegiam tanto da leve precipitação, quanto da curiosidade alheia.
3) O TEMPO:
O espírito do tempo, ou da oportunidade. A reação precisa ser sentida como consequência, não pode ser deixada para dois meses depois.
4) AS VÍTIMAS:
Eram duas tartarugas de grande porte, embora uma um pouco menor do que a outra. Talvez fossem mãe e filha, o que agravou o crime perpetrado, assassinato em presença de menores.
A espécie Podocnemis expansa é sujeita à proteção do Programa Quelônios da Amazônia (PQA) e elas não poderiam ser abatidas - fica determinado que eram mãe e filha - para consumo humano.
5) PREÂMBULO DO CRIME:
Assisti à chegada das imensas tartarugas, que passeavam pela ensolarada área de serviço do apartamento S-104, imediatamente abaixo do meu; eu tinha uma vista privilegiada dos animais, que constituíam um jardim zoológico exótico e inédito. Pareciam felizes, lentamente se movimentando em busca de alfaces e outros vegetais, gentilmente fornecidos pelas sobrinhas do coronel amazonense, chamado Osíris.
Segundo más línguas, que incluíam a da minha mãe, não eram sobrinhas coisa nenhuma e sim concubinas do adiposo e bigodudo coronel que alimentava o harém, bem como as tartarugas.
Realmente, essas sobrinhas tinham um comportamento estranho, mas eram elas que alimentavam as tartarugas e eu ficava feliz.
Duas ou três semanas durou a minha alegria.
4) O CRIME:
O assassinato ocorreu em um fim de semana qualquer, executado por um profissional munido de uma machadinha. Foi horroroso demais para descrever em páginas que podem ser lidas por pessoas sensíveis à visão do sangue, que jorrava folgadamente de cada uma das inúmeras incisões machadianas.
Não havia barulho audível, talvez elas fossem mudas, ou talvez a primeira machadada tenha sido em suas cordas vocais, mas me foi impossível parar de sentir os golpes sucessivos daquele cirurgião de açougue. Foi tudo muito doloroso.
Viradas de casco para baixo, levaram muito tempo para chegar ao último suspiro e deixaram a área cimentada colorida por um vermelho amazônico.
Enfim, passado um bom tempo - talvez duas horas - os cascos foram separados das carnes e tudo desapareceu da minha observação.
5) A FESTA:
Não fui convidado para o longo almoço que durou toda uma tarde. Não sei se comeram tudo, mas lembro do cheiro, pouco atraente para quem está acostumado a churrasco, vatapá ou bouillabaisse - estes são os meus pratos preferidos - e acho que eu não ficaria freguês. Se bem me lembro, um fogo foi aceso sob o casco maior, para dar a sensação olfativa autêntica e o fato é que osso queimado tem cheiro ruim.
6) VINGANÇA:
Na minha cabeça, isso não poderia ficar barato. Algo precisava acontecer, se fosse possível, em hora do exercício do concubinato.
Lembrei que as vidraças da sala dos apartamentos eram bem grandes, quatro vidros de quase um metro por um metro. Imaginei uma pedra partindo as vidraças, ou uma só que fosse, que barulho fenomenal faria naquela paz noturna da Santa Teresa adormecida. Sim, uma janela quebrada numa noite fria, abrindo caminho para um vento gelado da madrugada, seria a vingança.
7) PROJETO:
Eu não tinha pedras em casa, olhei tudo em volta e achei laranjas. Laranja Lima, a única que entrava lá em casa. Selecionei duas maiores, enfiei na japona e saí, aproveitando alguma visita que os demais ocupantes da casa faziam enquanto eu estudava Geometria.
Apesar de ter meu quarto, eu só estudava na sala de jantar, onde a mesa era grande e facilitava muito ao meu pai verificar meus erros, ou os raros acertos.
Apesar de ter meu quarto, eu só estudava na sala de jantar, onde a mesa era grande e facilitava muito ao meu pai verificar meus erros, ou os raros acertos.
A casa das finadas tartarugas era exatamente igual, as mesmas janelas, só um andar abaixo.
8) AÇÃO:
Saí com a japona, as laranjas e o boné. Talvez passasse das nove horas, não tinha ninguém na rua do bonde, a Mauá, menos ainda na Teresina, a rua debaixo. O poste de luz ficava em frente ao muro do meu prédio, iluminando a fachada e as tais janelas, enquanto que qualquer atirador de laranjas noturno ficaria com o rosto sombreado. Para facilitar um pouco mais, havia alguns carros estacionados na rua, que estavam no conserto da oficina do Pinho. Estes carros traziam mais sombra ao cenário, permitindo anonimato total a um franco-atirador de laranjas.
Já estando na rua e com uma laranja na mão, a ação estava pronta.
Já estando na rua e com uma laranja na mão, a ação estava pronta.
9) A MIRA:
Encostei no poste e olhei a situação, tudo absolutamente calmo e igual ao minuto anterior e aos dois minutos anteriores - nada acontecia, apenas um leve suor marejava entre meus dedos e a laranja.
Encostei no poste e olhei a situação, tudo absolutamente calmo e igual ao minuto anterior e aos dois minutos anteriores - nada acontecia, apenas um leve suor marejava entre meus dedos e a laranja.
Dei um passo à frente e armei a posição de lançamento de laranja, parecida com a do arremesso olímpico de disco. O ângulo de tiro era tranquilo, bastava ultrapassar o muro do prédio em linha reta e a janela seria atingida.
Lancei a laranja e por um, dois segundos, observei, curioso e satisfeito, a sua trajetória. A fruta ultrapassou o muro em linha ascendente e, diferentemente de todo o projeto, continuou subindo, entrando pela vidraça da minha casa.
Lancei a laranja e por um, dois segundos, observei, curioso e satisfeito, a sua trajetória. A fruta ultrapassou o muro em linha ascendente e, diferentemente de todo o projeto, continuou subindo, entrando pela vidraça da minha casa.
Cheguei a pensar em arremessar a segunda laranja, mas, em vista do primeiro fiasco e sem ter crença em que alguma coisa pudesse sair diferente da primeira tentativa, abortei tudo e voltei para casa com a laranja remanescente.
10) O ESTUDO:
Cheguei na mesa e limpei parte dos mil estilhaços do vidro. A laranja também estava lá, em bom estado, de modo que deixei a fruteira exatamente como estava antes de sair.
O frio era intenso, mas eu já estava de japona e então sentei devidamente agasalhado na cadeira habitual e recomecei a estudar os ângulos e paralelas que faziam da Geometria a minha matéria preferida.
O frio era intenso, mas eu já estava de japona e então sentei devidamente agasalhado na cadeira habitual e recomecei a estudar os ângulos e paralelas que faziam da Geometria a minha matéria preferida.
11) CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS:
Não demorou muito e chegou o povo de casa. Olharam a situação, perguntaram se eu havia me machucado - o que me sensibilizou muito - mas eu expliquei que, no momento da quebra do vidro, eu estava fora da sala, nada tinha visto, nada sabia, uma meia verdade que guardei por mais uns 30 anos. Meu pai olhou aquilo e concluiu que era vingança de alguém que fora prejudicado por mim, afinal eu e os meus morteiros, etc etc.
De vez em quando eu contava essa história para amigos, mas jamais para parentes. Mas justamente meu colega de turma Gustavo Frota passou a beber uma cerveja comigo e com meu pai e um dia relatou o fato... "seu Waldemar, a história da vidraça quebrada pelo morador que estudava" e por aí foi relatando tudo.
Meu pai dobrava de tanto rir. Gustavo, idem. Foi bom proporcionar essa alegria aos dois.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirA história foi boa na época e só melhora agora na sua versão literária, com os anos de permeio. Trouxeram a distância necessária, para ampliar o foco e produzir imagens tão habilmente descritas que faz do leitor testemunha ocular da vingança abortada e hilária.
ResponderExcluirMaravilha Dieckmann, bom planejador mau executor e grande dissimulador!! Bom contador de histórias!!!
ResponderExcluirMais para juntar-se aos tiros de chumbinho e as bombas na noite de Santa Teresa
ResponderExcluirCAT
ResponderExcluirE eu pensando q o Chico era o terror de Santa Tereza…..
ResponderExcluirEsse anônimo é manjado, poucos conheciam o Chicão Tirano.
ExcluirFoi desafiar Osíris, deu nisso. Muito boa a história.
ResponderExcluirTinha um capitão no CMRJ chamado Osíris. Ficava o dia todo com um lápis de cor na mão colorindo gráficos.
ExcluirGostei do “bom planejador, mau executor, e grande dissimulador”, kkkk. Esse personagem estava com que idade?
ResponderExcluirNão é possível responder a anônimos…
ResponderExcluirTodos muito divertidos, o importante não é escrever, é comentar! Anônimos em profusão, até o anônimo crítico de Anônimos...
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