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quarta-feira, 3 de junho de 2020

3108 - D Chicão Tirano

O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5367 D                           Data: 03 de junho de 2020

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXVII

                     UMA ESPINGARDA NA MÃO 
                                
                            E NADA NA CABEÇA               


As famílias de Santa Teresa que eu conhecia eram lacerdistas. Ou, pelo menos, a minha, mistura de Dieckmann, Klinger e Rodrigues Gomes, e a do Chico, Figueiredo com Rios, eram. E nós dois decidimos fazer alguma coisa contra o recém eleito Negrão de Lima, em atos completamente à revelia dos desejos dessas famílias deprimidas com a derrota do candidato lacerdista. Tínhamos 14 anos e a firme ideia de espalhar o terror por Santa Teresa. 

Lembro de discutirmos uma atitude semelhante aos mau-mau do Quênia e aos tonton macoute do Haiti. Como essas identidades não eram corriqueiras em dois garotos, imagino que tenham advindo de algum estudo sociológico do pai do Chico, como exemplo de terrorismo atual da época. E como mau procedimento, o que não levamos em conta.

As primeiras vítimas foram os reservatórios de areia dos bondes. Colocávamos um morteiro de São João com um cigarro aceso atravessado no pavio, acomodando o petardo na areia que servia para dar tração ao bonde. Apenas uma vez seguimos a pé o bonde para ver no que dava. Uns trezentos metros depois, achamos ao longo de um trecho dos trilhos uma boa quantidade de areia; a nossa ideia funcionara.

Como éramos criativos, não repetimos essa manobra mais do que três ou quatro vezes. Deixamos de fazer o tedioso acompanhamento do sucesso e partimos para outras empreitadas, explosivas e inéditas. Um bom lugar é a coluna de recolhimento de lixo dos edifícios. Não só o estampido adquire uma sonoridade surda, entusiasmante, como é acompanhado pelo som da abertura das tampas de cada andar, em tempos diferentes. Testamos no meu prédio, mas ninguém ouviu porque a coluna era distante dos apartamentos. Mas, na Rua Triunfo, 63 obtivemos sucesso de público e de crítica - que éramos nós, os terroristas. Tampando o nariz do cheiro fedorento, colocamos uma cabeça de nego no depósito de lixo no térreo, com o cigarro em cima e fomos para a rua esperar.

Foi um senhor tiro, com o barulho surdo acompanhado de três aberturas das tampas e logo as janelas se iluminaram de rostos assustados, olhando para um lado e para o outro, lembrando uma cena de Mon Oncle, onde o pai e a mãe investigam, a partir de uma janela redonda para cada cabeça, parecendo duas pupilas à procura de um fato.

Já era tempo de nos localizarmos por alcunhas, caso fôssemos presos. O Chico virou Chicão Tirano e eu, qualquer coisa do gênero, que esqueci. Talvez fosse Demolidor.

Na varanda da casa das minhas tias nós, ficávamos de tocaia com duas espingardas de ar comprimido acertando as capotas dos carros que passavam na rua de baixo. A Ana Lúcia, irmã do Tirano, estava presente algumas vezes e, para dar graça, um dançava com a Ana, enquanto o outro ficava com as duas armas, em revezamento obrigatório, porque ninguém queria saber de dançar. Quando os disparos ocorriam, procurávamos escutar os dois tecos de Diabolô na capota, dois segundos depois e saboreávamos a boa mira.

Um dia custou a passar carro e Chicão alvejou um grupo na escadaria de Fátima. - Foi pedra! Apalpando a bunda, alguém gritou daquela escuridão fria, onde tudo se ouvia e eles recomeçaram a subir. Quando chegaram na rua, nós já estávamos na porta conversando e inventamos uma correria de crianças... vai ver foram eles... como a Ana estava junto e emprestava um ar solene ao trio, acho que aceitaram e foram embora. Voltamos a respirar logo que dobraram a curva. Como eles voltaram ao mesmo lugar, Chicão ainda queria dar um segundo teco, mas o bom senso prevaleceu.

Um bom senso que não atraiu o Roberto Guerra, meu colega de colégio que não tinha arma e morria de vontade de estar conosco. Aceitamos. A gente saía de calça lee e camisa de goleiro, às vezes com um casaco por cima. Na cintura, três ou quatro morteiros como se fossem os nossos colts. Na primeira noite do Guerra, passamos em frente à casa do Borghoff e a Chiquita estava lá, com um pneu furado. Fui ajudar, com o Chicão de ajudante do ajudante e trocamos a roda. No meio do trabalho, escutamos o triplo estampido de um morteiro. Do Guerra, que estava à toa e indócil. 

Mal o carro saiu, apareceram uns quatro caras da pequena comunidade na rua: - Foram vocês? Sorte que eu e o Chico não tínhamos soltado nada e negamos com a honestidade beatificada de origem pneumática. Um bonde passou por nós e só vimos o Guerra pegá-lo andando, já longe, para nunca mais voltar.

Sentamos no meio-fio, agradecendo a boa fé dos nossos vizinhos - uma revista na nossa roupa não teria escapatória, seria condenatória e executatória - e filosofamos sobre a exclusividade do nosso clube. Um por dois e dois por um, no máximo.

O novo governo do estado decidiu abrir uma agência do BEG - Banco do Estado da Guanabara no ponto mais central do bairro. Era uma boa iniciativa, mas que durou pouco, talvez menos de um ano, certamente por falta de movimento. Essa agência ocuparia o imóvel de um antigo armazém, a Casa Mauá e houve uma obra volumosa para a transformação. Virou objetivo imediato de Chicão Tirano e Demolidor.

Era cercada por altos tapumes de madeira e os operários dormiam na obra. Vimos pela frestas que ocupavam um grande espaço e decidimos atacar os operários. Compramos um super morteiro, chamado Canhão; ele continha doze explosivos e era bem mais parrudo que o morteiro comum. Com alguma procura, encontramos um nó de madeira meio solto, que abrimos com uma chave de fenda. A visão pelo buraco era perfeita, a turma sentada no chão se preparando para dormir; o armamento foi introduzido raspando e ficou firme. Desta vez não teve cigarro, riscamos direto o pavio e caímos fora. Ainda deu para ouvir aquele suceder de estampidos enquanto subíamos o zigue-zague da Rua Triunfo (a mesma já abordada...). Nem vimos qualquer clarão, nossa imaginação foi suficiente.

A essa altura, manuseávamos os explosivos com desenvoltura e iniciamos a produção de artefatos mais poderosos. O objetivo de todo mestre-explodidor é chegar no canudo do rolo de papel higiênico, o que consumia mais de meia dúzia de cabeças de nego - uma fortuna em mesadas reunidas. Nasceu um dia a nossa mãe de todas as bombas.

Escolhemos na Joaquim Murtinho um trecho ermo e equidistante dos prédios. Nós medimos em passos, dividimos ao meio e cavamos um buraco no terreno, onde hoje tem uma pousada, tudo cientificamente. Enterramos o rolo, deixando um longo pavio de fora. Esperamos o bonde passar, nenhuma testemunha à vista, acendemos o cigarro e voltamos para a rua.

E toca a esperar. Uma senhora sai pela pontezinha do prédio e dobra na rua, em direção à "mãe". Aquilo nos deu um arrepio de pavor, pois certamente seria desastroso, mas ela passou pelo ponto, andando devagarinho. E nós contando cada um dos passos, torcendo por mais um, mais dois...

Quando ela chegou no prédio vizinho, um Gordini apareceu na curva da rua. Foi o tempo da senhora ainda atravessar um corredor cheio de janelas, entrar na casa e a bomba explodiu. A vibração foi de balançar a roupa e o Gordini estava exatamente no alcance da bomba, que jogou uma quantidade de terra em cima do carro. O dono parou na hora e ficou olhando de onde saíra aquilo. Deve ter achado que era alguma caixa de eletricidade, ou de gás, tirou a terra do vidro e prosseguiu.

Petrificados, em tempo decidimos abandonar os explosivos e só ficou a história para contar. 

Jackson de Figueiredo é o avô do Chico e vai saborear prazerosamente toda essa criatividade, bem herdada. Se ele tinha curiosidade sobre seu neto, agora eles terão tempo para tudo e, quem sabe, até para pegar no pé de um São Pedro desavisado.

5 comentários:

  1. Dieckmann e chicão tirano são muito mais perigosos do que a covid 19.
    Não há cloroquina que dê conta desses dois.

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  2. Lembro da inauguração do BEG. Foi em 1966? Lembro da presença do Lacerda. Estou certo?

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  3. Certo. Acho que foi em 66. O governo do Negrão de Lima foi de 5 de dezembro de 1965 a 15 de março de 1971. Nós andamos soltando bombas neste período.

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  4. Aguardamos o complemento com a experiência do Coquetel Molotov (shaken not stirred).

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