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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

2457 - contos da carochinha



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4257                               Data:  25 de  agosto de 2013
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UM CONTO CHINÊS  NO SABADOIDO

-A Gina está no supermercado?
-Está. - respondeu-me o Daniel, que abrira o portão para mim.
Conversamos sobre os últimos acontecimentos futebolísticos, com algumas incursões pelo passado recente, quando o Claudio apareceu.
-Vou ver meu carango. - anunciou e saiu.
-Daniel, falou em carro...
-O que tem? - perguntou meu irmão sem demonstrar interesse.
-O Dieckmann postou uma foto no Facebook com um amontoado de carros antigos num quadrado, e eu me lembrei dos currais do Américo Fontenelle. Recorda-se?...
-Não. - respondeu secamente.
-Carlos Lacerda, quando governador da Guanabara, nomeou o Coronel Américo Fontenelle para administrar o trânsito. Ele, então, estabeleceu umas áreas de estacionamento de veículos, no Centro, que eram chamadas de currais.
E prossegui:
-Ele esvaziava os pneus dos carros estacionados em local proibido; até os pneus do automóvel do Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil, ele esvaziou.
-Fez bem. - reagiu meu irmão ironicamente.
-Ou se amavam ou se odiavam as ações do Coronel Fontenelle, ninguém ficava indiferente. Então, ele enfartou e foi hospitalizado.
E fiz uma pergunta retórica:
-Sabe o que ele fez logo que recebeu alta do hospital? Foi a um programa, na televisão, debater a política de trânsito que implementara aqui. Ora, o assunto era extremamente passional, e quase todos estavam contra ele. Discutiu, enfartou e morreu. O governador Carlos Lacerda declarou que ele foi um guerreiro que morreu no campo de batalha.
-Ele foi um doido. - bradou meu irmão.
-Um médico psiquiatra, meu amigo, disse-me a mesma coisa.
-Um caminhão tanque está abastecendo o posto de gasolina, e eu não posso sair com o carro. - retornou o Daniel com palavras indignadas.
-Para eu continuar a dirigir, tinha de praticar algum exercício oriental de relaxamento. Preferi largar a direção; minha carteira de motorista está vencida há uns cinco anos.
 -Às minhas palavras, seguiram-se as do Claudio.
-Não demora tanto assim, Daniel. Senta aí e espere um pouco.
Agitado, ele preferiu ir para a varanda da casa e fixar sua atenção naquele caminhão tanque que surgira intempestivamente no seu caminho.
Eu e Claudio prosseguimos na nossa prosa.
-Você viu, Carlinhos, quantos peregrinos que vieram para a visita do Papa continuaram no Brasil?... Há países em pior situação do que o Brasil.
-Falando em peregrinos, ontem, quando peguei o metrô de volta para casa ao meio-dia e meia...
-Saiu mais cedo do trabalho.
-Há um banco de horas lá, e o meu crédito me permite sair, de vez em quando, ao meio-dia.
E retomei o fluxo da minha narrativa.
-O trem não estava lotado, pelo contrário, até consegui sentar. Veio, então, a surpresa: duas jovens, uma de olhos claros, a outra carregando um bongô, entraram no vagão onde eu estava. Pela alegria espontânea, julgo que são peregrinas que permanecem no Brasil.
-É provável. - aparteou-me.
-De passageiros passamos a público, pois elas se apresentaram, em espanhol, como artistas argentinas. Em seguida, soou o bongô e as duas cantaram um clássico da música popular latino-americana: “Sabor a mí”.
-Depois, recolheram dinheiro? - previu.
-Sim.
-Mas isso é mendicância. - disse em tom exagerado.
-Claudio, se depender de mim, os mendigos podem procurar outro meio de vida, mas, no caso delas, não tive dúvidas; enfiei a mão na carteira e dei algumas moedas a elas pela exibição e pelas duas obras-primas do cinema da Argentina a que assisti nos últimos dez dias: “O Segredo dos Seus Olhos” e “Um Conto Chinês”.
-Há vários DVDs desse filme nas Lojas Americanas do Norte Shopping. - informou-me.
-Eu não sabia e comprei pela Internet quando li o e-mail do Carlos Alberto Torres em que ele afirmava que “Um Conto Chinês” era tão bom quanto “O Segredo dos Seus Olhos”. Duvidei, mas vi que estava certo.
Seu interesse voltou-se, primeiramente, para o nome do amigo do Dieckmann.
-É o lateral da Copa de 70?
-Você, que lê “Há 50 anos”, do Globo, deve saber sobre as grandes equipes do juvenil daquela época; ao mesmo tempo em que aparecia o Jairzinho, no Botafogo, vinha o Carlos Alberto Torres do Fluminense.
-E ele foi campeão nos profissionais do Fluminense em 1964. - acentuou meu irmão.
-Até que enfim aquele caminhão tanque deixou de atravancar o progresso, - bradou o Daniel, passando pela cozinha, a caminho da rua.
-Então, Carlinhos, “Um Conto Chinês” é um filme para se assistir?
-Como disse um comentarista de cinema, os filmes argentinos, atualmente, nos falam mais de nós do que os próprios filmes brasileiros. Tolstoi não disse “se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”?... Assim é o cinema argentino: universal.
-Odeio contar e que me contem um filme, mas algumas passagens de “Um Conto Chinês” merecem ser contadas.
Antes que meu irmão mostrasse contrariedade, segui adiante:
-O filme começa num pequeno barco onde um chinês, que era só felicidade diante da namorada, vai pedi-la em casamento. Nesse exato momento, cai uma vaca do céu em cima dela, que morre.
-O que é isso?
-Claudio, o caso é verídico. Uns malfeitores russos colocavam vacas roubadas do Japão, em aviões cargueiros; um deles foi alvejado pelos camponeses e, para que o avião se estabilizasse no ar, tiveram de jogar os animais no mar, uma das vacas atingiu um barco pesqueiro. É claro que, na fita, fizeram algumas alterações, mas o surrealismo do caso existiu.
-E o chinês, sem a noiva, foi parar na Argentina? - deduziu.
-Ele só tinha agora um tio, que vivia na Argentina. E para lá foi apenas com um endereço tatuado no braço. Mal chega em Buenos Aires, entra num táxi, tiram-lhe o que tinha e o arremessam na rua. Nesse instante de violência, é socorrido pelo Roberto...
-O personagem do Ricardo Darin. - aparteou.
-Ele é o grande ator da Argentina.
E concluí:
-Da convivência dos dois, o filme mostra que a ida do Roberto para guerrear nas Malvinas, em 1982, representou a vaca que caiu do céu para desgraçá-lo. É a grande metáfora do filme que mostra que eles, mesmo não se entendendo, um só falava cantonês e o outro, só espanhol, identificavam-se como vítimas de coisas absurdas.
-E o “Hoover”, você viu?
-Vi e me surpreendi, pois imaginava que o Clint Eastwood, por ser republicano, mostraria a biografia do chefe do FBI por 48 anos com algumas deturpações direitistas, mas não houve nada disso. Ele mostra que, de todos os presidentes, o que quis acabar, mesmo, com o Edgar Hoover foi o Nixon.
-Ele não queria concorrentes.
-Certo, Claudio; foram os homens dele, Nixon, que fizeram as escutas de Watergate para proveito próprio.
Fomos interrompidos pelo telefone. Era o Luca.



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