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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4257 Data: 25 de
agosto de 2013
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UM CONTO CHINÊS
NO SABADOIDO
-A Gina está no supermercado?
-Está. - respondeu-me o Daniel, que
abrira o portão para mim.
Conversamos sobre os últimos
acontecimentos futebolísticos, com algumas incursões pelo passado recente,
quando o Claudio apareceu.
-Vou ver meu carango. - anunciou e saiu.
-Daniel, falou em carro...
-O que tem? - perguntou meu irmão sem
demonstrar interesse.
-O Dieckmann postou uma foto no
Facebook com um amontoado de carros antigos num quadrado, e eu me lembrei
dos currais do Américo Fontenelle. Recorda-se?...
-Não. - respondeu secamente.
-Carlos Lacerda, quando governador da
Guanabara, nomeou o Coronel Américo Fontenelle para administrar o trânsito.
Ele, então, estabeleceu umas áreas de estacionamento de veículos, no Centro,
que eram chamadas de currais.
E prossegui:
-Ele esvaziava os pneus dos carros
estacionados em local proibido; até os pneus do automóvel do Lincoln Gordon,
embaixador dos Estados Unidos no Brasil, ele esvaziou.
-Fez bem. - reagiu meu irmão
ironicamente.
-Ou se amavam ou se odiavam as ações do
Coronel Fontenelle, ninguém ficava indiferente. Então, ele enfartou e foi
hospitalizado.
E fiz uma pergunta retórica:
-Sabe o que ele fez logo que recebeu
alta do hospital? Foi a um programa, na televisão, debater a política de
trânsito que implementara aqui. Ora, o assunto era extremamente passional, e
quase todos estavam contra ele. Discutiu, enfartou e morreu. O governador
Carlos Lacerda declarou que ele foi um guerreiro que morreu no campo de
batalha.
-Ele foi um doido. - bradou meu irmão.
-Um médico psiquiatra, meu amigo,
disse-me a mesma coisa.
-Um caminhão tanque está abastecendo o
posto de gasolina, e eu não posso sair com o carro. - retornou o Daniel com
palavras indignadas.
-Para eu continuar a dirigir, tinha de
praticar algum exercício oriental de relaxamento. Preferi largar a direção;
minha carteira de motorista está vencida há uns cinco anos.
-Às
minhas palavras, seguiram-se as do Claudio.
-Não demora tanto assim, Daniel. Senta
aí e espere um pouco.
Agitado, ele preferiu ir para a varanda
da casa e fixar sua atenção naquele caminhão tanque que surgira
intempestivamente no seu caminho.
Eu e Claudio prosseguimos na nossa
prosa.
-Você viu, Carlinhos, quantos peregrinos
que vieram para a visita do Papa continuaram no Brasil?... Há países em pior
situação do que o Brasil.
-Falando em peregrinos, ontem, quando
peguei o metrô de volta para casa ao meio-dia e meia...
-Saiu mais cedo do trabalho.
-Há um banco de horas lá, e o meu
crédito me permite sair, de vez em quando, ao meio-dia.
E retomei o fluxo da minha narrativa.
-O trem não estava lotado, pelo
contrário, até consegui sentar. Veio, então, a surpresa: duas jovens, uma de
olhos claros, a outra carregando um bongô, entraram no vagão onde eu estava.
Pela alegria espontânea, julgo que são peregrinas que permanecem no Brasil.
-É provável. - aparteou-me.
-De passageiros passamos a público, pois
elas se apresentaram, em espanhol, como artistas argentinas. Em seguida, soou o
bongô e as duas cantaram um clássico da música popular latino-americana: “Sabor
a mí”.
-Depois, recolheram dinheiro? - previu.
-Sim.
-Mas isso é mendicância. - disse em tom
exagerado.
-Claudio, se depender de mim, os
mendigos podem procurar outro meio de vida, mas, no caso delas, não tive
dúvidas; enfiei a mão na carteira e dei algumas moedas a elas pela exibição e
pelas duas obras-primas do cinema da Argentina a que assisti nos últimos dez
dias: “O Segredo dos Seus Olhos” e “Um Conto Chinês”.
-Há vários DVDs desse filme nas Lojas
Americanas do Norte Shopping. - informou-me.
-Eu não sabia e comprei pela Internet
quando li o e-mail do Carlos Alberto Torres em que ele afirmava que “Um Conto
Chinês” era tão bom quanto “O Segredo dos Seus Olhos”. Duvidei, mas vi que
estava certo.
Seu interesse voltou-se, primeiramente,
para o nome do amigo do Dieckmann.
-É o lateral da Copa de 70?
-Você, que lê “Há 50 anos”, do Globo,
deve saber sobre as grandes equipes do juvenil daquela época; ao mesmo tempo em
que aparecia o Jairzinho, no Botafogo, vinha o Carlos Alberto Torres do
Fluminense.
-E ele foi campeão nos profissionais do
Fluminense em 1964. - acentuou meu irmão.
-Até que enfim aquele caminhão tanque
deixou de atravancar o progresso, - bradou o Daniel, passando pela cozinha, a
caminho da rua.
-Então, Carlinhos, “Um Conto Chinês” é
um filme para se assistir?
-Como disse um comentarista de cinema,
os filmes argentinos, atualmente, nos falam mais de nós do que os próprios
filmes brasileiros. Tolstoi não disse “se queres ser universal começa por
pintar a tua aldeia”?... Assim é o cinema argentino: universal.
-Odeio contar e que me contem um filme,
mas algumas passagens de “Um Conto Chinês” merecem ser contadas.
Antes que meu irmão mostrasse
contrariedade, segui adiante:
-O filme começa num pequeno barco onde
um chinês, que era só felicidade diante da namorada, vai pedi-la em casamento. Nesse
exato momento, cai uma vaca do céu em cima dela, que morre.
-O que é isso?
-Claudio, o caso é verídico. Uns
malfeitores russos colocavam vacas roubadas do Japão, em aviões cargueiros; um
deles foi alvejado pelos camponeses e, para que o avião se estabilizasse no ar,
tiveram de jogar os animais no mar, uma das vacas atingiu um barco pesqueiro. É
claro que, na fita, fizeram algumas alterações, mas o surrealismo do caso
existiu.
-E o chinês, sem a noiva, foi parar na
Argentina? - deduziu.
-Ele só tinha agora um tio, que vivia na
Argentina. E para lá foi apenas com um endereço tatuado no braço. Mal chega em Buenos Aires, entra
num táxi, tiram-lhe o que tinha e o arremessam na rua. Nesse instante de
violência, é socorrido pelo Roberto...
-O personagem do Ricardo Darin. -
aparteou.
-Ele é o grande ator da Argentina.
E concluí:
-Da convivência dos dois, o filme mostra
que a ida do Roberto para guerrear nas Malvinas, em 1982, representou a vaca
que caiu do céu para desgraçá-lo. É a grande metáfora do filme que mostra que
eles, mesmo não se entendendo, um só falava cantonês e o outro, só espanhol,
identificavam-se como vítimas de coisas absurdas.
-E o “Hoover”, você viu?
-Vi e me surpreendi, pois imaginava que
o Clint Eastwood, por ser republicano, mostraria a biografia do chefe do FBI
por 48 anos com algumas deturpações direitistas, mas não houve nada disso. Ele
mostra que, de todos os presidentes, o que quis acabar, mesmo, com o Edgar
Hoover foi o Nixon.
-Ele não queria concorrentes.
-Certo, Claudio; foram os homens dele,
Nixon, que fizeram as escutas de Watergate para proveito próprio.
Fomos interrompidos pelo telefone. Era o
Luca.
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