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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

2701 - pintores e fonemas


 

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 4951                                    Data: 20 de  setembro de 2014

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188ª CONVERSA COM OS TAXISTAS

 

Fazia tanto tempo que eu não pegava o táxi do 026 (deve ser outro número, mas vai este mesmo) que lhe disse o meu destino: Rua Modigliani.

-Eu sei; você mora onde existem tantos nomes franceses.

-Isso mesmo.

-A principal rua de lá é a “Renoar” (Renoir).

Fiquei estupefato, porque ele pronunciou o nome corretamente e me congratulei com ele.

-Quase todo o mundo diz Renoir como se escreve, você é dos poucos que pronunciam corretamente.

-”Renoar”. - repetiu inflado pelos elogios.

-Estudei francês, no antigo ginásio e meus professores exigiam a pronúncia certa, se não, a nota era zero. Assim, esses erros me ferem os ouvidos. Acredito que não se trata de pedantismo da minha parte.

-Eu também estudei francês. Nós tínhamos de optar entre o francês e o inglês. - disse-me ele.

-Não; éramos obrigados, no meu colégio, a estudar as duas línguas.

Não se sentiu apequenado com essa observação e bradou que, no nosso tempo, o ensino era bem melhor do que o de hoje.

-Só passava de ano quem soubesse mesmo a matéria. - frisou.

-Então, vamos para a praça que o pessoal chama de Mané, falei, enquanto o seu táxi ainda trafegava pela rua Domingo de Magalhães.

-Ou, então, falam Manete (abriu o primeiro e fechou o segundo e).

-Isso mesmo. - concordei.

-Escreve-se “Manete”, mas se pronuncia “Monê”.

Ele estava indo tão bem... - pensei sem me manifestar. Depois, intentei corrigi-lo sem melindrá-lo.

-Não; Manet é um, Monet é outro.

-Então, eles eram irmãos. - concluiu.

Piora cada vez mais...

-Não; um é Edouard Manet e o outro, Claude Monet.

Como, pela sua aparência, não se mostrava convencido, passei para outros pintores e escultores próximos da minha rua.

-Eles não aprenderam a língua francesa como nós, por isso, erram tanto. - gabou-se.

E fez um acréscimo:

-Van Gogh eles falam direitinho. (*)

-Esse era holandês. Em 1990, colocaram uma placa comemorativa do centenário de morte do pintor. Foram até lá autoridades da prefeitura e alguns repórteres.

E voltei-me para ele:

-Lembra-se disso?

Balançou afirmativamente a cabeça, mas não me convenceu. Prossegui:

-Li, depois, no jornal, que, na ocasião, os pedestres que por lá passavam, eram abordados com perguntas sobre Van Gogh. Ninguém soube responder quem foi Van Gogh.

-Devem ter dito que ele foi um jogador de futebol.

Soltou uma estrondosa gargalhada, divertindo-se com a própria piada, enquanto eu saltava na Rua Modigliani.

 

 A prefeitura multa se a gente joga lixo no chão, mas toda essa porcaria de propaganda eleitoral, que suja tudo, pode. - queixou-se o 151.

-Há galhardetes de candidatos colocados nos postes que tiram a visão tanto do motorista quanto a do pedestre. - solidarizei-me com a indignação dele.

-Na esquina da Rua Cachambi com a Avenida Suburbana, colocaram um galhardete de cada lado. Um desrespeito.

-Eu já vi; para você atravessar a rua, com visão completa do tráfego, tem de se afastar da faixa de pedestre.

-As pessoas são obrigadas a cometer uma infração para passar de um lado para o outro da rua. - seguiram-se suas palavras às minhas.

-Recorda-se que fui votar, uma vez, levado pelo seu táxi?

Como a sua expressão era dubitativa, fui mais minucioso.

-Eu peguei seu táxi de manhã. Você seguiu pela Suburbana, fez o contorno pelo viaduto Cristóvão Colombo, em Pilares e passou para o outro lado da avenida onde fica a rua da minha seção eleitoral.

-Rua Henrique Scheidt. - bradou.

Eu tinha de ser mais minucioso.

-Não; uma rua com uma subida tão íngreme que exige fôlego de maratonista para se subir a pé. Votei num colégio perto de uma praça. Eram tão poucos os eleitores, que você disse que me esperaria e eu não demorei mais do que dez minutos.

Então, ele se lembrou, ainda assim, sacrificava a memória para saber o nome exato dessa rua. Desistiu, e foi em frente:

-Você vota lá, e eu voto em frente à sua casa no Colégio Manoel Bomfim.

-Eu votava no lado da minha casa, na LBA.

-LBV. - cortou-me.

-Não; LBA, Legião Brasileira de Assistência, que foi fechada depois das falcatruas da mulher do presidente Collor. Hoje, é chamada de Clube da Amizade, depois de ter sido o quartel-general do Biliu.

-Isso mesmo! - exclamou, contrariado com o seu esquecimento.

-Houve um cadastramento eleitoral e me jogaram nessa rua distante; acomodei-me e não pedi a transferência para o Manoel Bomfim, onde fiz o curso primário.

-Como você disse, são tão poucas pessoas na sua zona eleitoral.

-Uma vez, apenas, enfrentei uma fila enorme, naquela eleição em que se candidataram o Mário Covas, o Ulisses Guimarães, o Aureliano Chaves, o Brizola, o Lula, o Collor, o Eneias, o Marronzinho... mais de vinte candidatos.

-Havia mais candidatos do que eleitores. - não perdeu a piada.

-Nessa eleição, havia uma grande quantidade de idosos, parecia até zona eleitoral de Copacabana. Acredito que quase todos já partiram, por isso, não enfrento mais filas.

-Certamente. - concordou.

-Esses senhores repetiam o bordão jocoso: “Meu nome É Eneias”,

-Com isso, ele recebeu mais voto do que o Ulisses Guimarães. - assinalou.

-Um bordão de programa humorístico derrotou a “Constituinte Cidadã”, do Ulisses Guimarães. - comentei.

-O brasileiro vota muito, muito mal.- concluiu com ceticismo.

-O diabo, desta vez, é o calendário eleitoral. Temos de votar para presidente, senador, governador, deputado federal e estadual.

E espalmei a mão:

-Cinco.

-Não vou demorar mais de dez segundos:

-Vai anular o voto?- deduzi.

-Menos o da presidência da República.

Em seguida, encarou-me desoladamente e disse:

-É duro ter de votar na Marina. Mas qual é o jeito?

Como o táxi já estava parado na Rua Modigliani, não tive tempo de lhe mostrar que a coisa não era tão má assim.

 

No táxi do 040, o assunto era o mesmo.

-O 184 é mesmo candidato? Ele me disse que vai erradicar todas as favelas do Rio de Janeiro, construindo prédios de 100 andares para colocar todos os desalojados lá.

Ele sorriu com o seu jeito manso e me disse que garantiu ao 184que podia contar com o seu voto.

-Vou votar nele nada. - confessou-me.

-Parece-me que a pretensão dele é a Gaiola de Ouro, a Câmara Municipal.

-É isso mesmo, ele já se candidatou uma vez. - informou-me.

A conversa seguiu com o assunto político por uma boa parte do trajeto, Já estávamos na Rua São Gabriel quando falamos das entrevistas da TV Globo com os candidatos.

-A TV Globo coloca os entrevistados contra a parede. - comentou.

-Aquilo é mais um interrogatório do que uma sabatina. Insistiram com o aeroporto do Aécio, com o avião do Eduardo Campos, com a dança do Sérgio Cabral com lenço na cabeça em Paris...

-A Marina teve de responder pelo Eduardo Campos, o Pezão pelo Sérgio Cabral... comentou.

-Parece que esses sabatinadores ou inquisidores trabalham para uma empresa que é uma vestal, um exemplo de moralidade.  

-Caramba, a Globo se envolve em tantas sujeiras. - concordou comigo.

-Não vou votar no Garotinho, mas vibrei quando ele saiu da defensiva e se referiu às estarrecedoras acusações feitas à Globo na Justiça com envolvimento de laranjas.

-Ele fez muito bem; até a Dilma baixou a crista quando foi no Jornal Nacional.

-Garotinho aprendeu com o Brizola a reagir às Organizações Globo. - disse-lhe, enquanto saltava na Modigliani. 

 

(*) O Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO suspeita que a pronúncia tenha sido “vangôgui” quando o certo é “vangorhr”. Apenas belgas, holandeses e cariocas têm a habilidade lingual (a anatômica mesmo) para usarem e abusarem dos fonemas guturais, mas é factível supor que o populacho da Praça Mané não exerça essa habilidade.

 

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