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O BISCOITO MOLHADO
Edição
4944 Data: 10 de setembro de 2014
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EU E ELIO NO FIM DO SEGUNDO IMPÉRIO
Como na poesia de Castro
Alves, estávamos em pleno mar. Em vez de escravos, eu e o Elio nos vimos perto
das personalidades mais aristocráticas do Brasil do fim do século XIX.
Chovia, naquela noite
tenebrosa, quando, no cruzador Parnaíba, que se achava ao largo, avistamos a
chegada de uma lancha do Arsenal da Marinha.
Os minutos se passaram
até que o Parnaíba passou a acolher os passageiros dessa lancha. A atenção de
todos convergiu logo para um senhor de longa barba branca que não conseguia
passar de uma embarcação para outra. O mar agitado tornava tudo ainda mais
árduo.
-Elio, é o imperador Dom
Pedro II. - reconheci.
-A República foi
proclamada e ele está sendo exilado. - deduziu.
-Como a máquina do tempo
nos leva para cá? - reclamei.
-Ela não nos levou, um
dia, para o baile da Ilha Fiscal?... Nada mais didático que nos traga para o
fim do Segundo Império do Brasil. - argumentou.
-Quantos anos tem o
imperador, Elio?
-Sessenta e três. -
respondeu-me prontamente.
-Como está acabado para
essa idade! - não contive o meu espanto.
Dom Pedro II, há alguns
anos, apresentava sintomas preocupantes de doença; examinado, em Paris, pelo
famoso doutor Charcot, foi diagnosticado como portador de neuropatia diabética.
Além da tensão mental, sofria de incontinência urinária e fraqueza nas pernas.
Nessa viagem de exílio
para a Europa, seu médico particular, o Conde Mota Maia, o acompanhava. Ele e o
tenente-coronel João Nepomuceno de Medeiros Mallet, representante do governo
provisório, lutavam contra a força da natureza e contra a fraqueza física do
soberano para colocá-lo na embarcação onde já estavam a princesa Isabel, o
conde D'Eu e a imperatriz Tereza Cristina.
Tudo concorria em
desfavor dos dois, se Dom Pedro II caísse no mar, dificilmente escaparia com
vida e o tenente coronel diria mais tarde que, caso isso acontecesse, saltaria
nas águas para salvá-lo, porque não carregaria pelo resto da sua vida a
acusação de ter afogado aquele que imperou no Brasil durante 49 anos.
Finalmente, com um
impulso sobre-humano, conseguiram efetuar com êxito o transbordo imperial.
Elio, que saíra do meu
lado, retornou com novidades.
-Conversei com um
embarcadiço e ele me disse que rumaremos para a Ilha Grande, de onde o Alagoas
levará a família imperial para o desterro na Europa.
-Por que ainda não saímos
do lugar?- indaguei.
-Esperaremos a chegada
dos três filhos da Princesa Isabel que vêm de Petrópolis; eis o motivo do
atraso. - explicou.
Quando o militar bateu à
porta do velho solar do Paço, na madrugada do dia 17 de novembro, pouco antes
das 2 horas da madrugada, ordenando, em nome do governo provisório, que toda a
família imperial fosse acordada para embarcar para o desterro, a princesa
Isabel, transtornada, disse que não embarcaria sem os seus três filhos. Dois
dias antes, 15 de novembro, uma sexta-feira, ela e o marido, o conde D' Eu,
enviaram os meninos para essa cidade com o objetivo de deixá-los longe do
tumulto revolucionário. O governo provisório, por outro lado, quando incumbiu o
tenente-coronel Mallet de levar o imperador destronado, com a sua família, para
o mar, na calada da noite, tinha a intenção de evitar possíveis manifestações
populares favoráveis ao imperador.
Compreensivo, ele
garantiu à Redentora que seriam trazidos até ela, o mais rápido possível, seus
três meninos – Pedro de Alcântara, 14 anos, Luís Felipe, 11, e Antônio Pedro, 8
- num trem especial, com guardas especiais em todas as estações, mas que era
premente que todos embarcassem; pois o encontro não se daria ali. Ainda
intranquila, a princesa Isabel, sob o peso dos acontecimentos, deixou o seu
corpo cair numa poltrona. Seu marido procurou manter a calma e negociou com
Mallet um meio que conviesse a todos.
O imperador, por outro,
parecia perdido no meio dos acontecimentos. Depois de um longo tempo se
aprontando, apareceu na sala do palácio com a sua indefectível cartola na mão,
dizendo que não embarcaria naquela hora, como um negro fugido.
Embarcou, como eu e o
Elio testemunhamos.
Depois de Dom Pedro II
responder com um aceno de cartola aos soldados que lhe apresentaram armas,
entrou numa carruagem onde se acomodavam seus parentes mais chegados, como o
neto Pedro Augusto, da sua filha Leopoldina, já falecida. A carruagem os levou
até o Cais Pharoux. Lá, entraram na lancha que os transportaria até o cruzador
Parnaíba.
-Veja, Carlos, o
imperador não sai do tombadilho mesmo com essa chuva fina. Já são 10 horas da
manhã.
-O toldo o protege dos
chuviscos, mas não do frio. - comentei.
A imperatriz Tereza
Cristina e a filha, princesa Isabel, falavam com o embaixador da Áustria, que
viera se despedir, enquanto o imperador se mostrava distante, em busca de uma
fuga no passado.
-Pronto, Carlos, os três
rebentos chegaram e o vapor mercante Alagoas logo zarpará com todos para a
Europa.
-Vamos juntos com
eles. - bradei.
Também foram o barão e a
baronesa de Loreto e o conde Mora Maia, o barão e a baronesa Murutiba mais o
engenheiro André Rebouças, todos eles movidos pela amizade, principalmente o
último, que mesmo abolicionista, era, de todos, o mais procurado por Dom Pedro
II para uma boa conversação.
-Carlos, o imperador
recusou a oferta do comandante para se alojar no camarote dele.
-O Conde D' Eu e o filho
Dom Pedro de Alcântara aceitaram a oferta, e o imperador preferiu um camarote
um andar abaixo, aliás, dois, porque foram ligados um ao outro. - informei-lhe.
Nós dois não perdíamos um
detalhe da história, observávamos tudo o que fosse possível ver.
-O imperador fica em
frente a um papel com uma pena na mão e, de hora em hora, escreve uma palavra e
se torna, em seguida, pensativo.
-Já descobri o porquê,
Carlos; ele elabora dois sonetos.
-Nada à altura da “Canção
do Exílio”, de Gonçalves Dias, suponho.
-Carlos, não seja tão
crítico. - repreendeu-me.
Quando não escrevia ou se
detinha com revistas científicas, dialogava com André Rebouças; e, com ele,
demonstrou a sua contrariedade:
-Que lentidão! Esse vapor
não sai do lugar.
A causa era o Riachuelo,
a embarcação indicada pelo governo provisório para escoltar o Alagoas . Nas
águas da Bahia, acabou a missão da escolta e a viagem se tornou um pouco mais
rápida.
-Olhe, Carlos: o
Arquipélago de Fernando de Noronha, a última faixa de terra brasileira nesta
viagem.
-A última vez em que o
imperador e a imperatriz veem o Brasil. - acrescentou em tom melancólico.
Nesse instante, houve uma
pequena agitação; Dom Pedro de Alcântara, com o entusiasmo da sua adolescência,
sugeriu que se soltasse um pombo. A ideia animou até o imperador, que pegou um
papel e escreveu “Saudades do Brasil”. Todos da família imperial, em seguida,
assinaram seus nomes embaixo.
Amarraram a mensagem no
pombo para que ele a leve para Fernando de Noronha. - disse o Elio sem
desgrudar os olhos da comovente cena.
Mas não era um
pombo-correio, e sim uma ave, como muitas que tiveram as asas cortadas para
serem servidas nas refeições. Uma rajada de vento impulsionou o pombo que, em
seguida, caiu e afundou no mar com as “Saudades do Brasil”.
-Tudo muito patético,
Carlos.
-Por que a máquina do
tempo nos trouxe para cá? - reclamei.
E o navio seguiu
tristemente até terras estrangeiras serem avistadas.
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