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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4934 Data: 29 de agosto de 2014
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136ª VISITA À MINHA CASA
-Richard Strauss, você no Brasil?!...-
não contive a minha surpresa.
-Já estive neste país, em 1923, quando
atuei em concertos no Rio de Janeiro e em São Paulo.
-Está fazendo uma ronda pelo mundo para
ver as comemorações dos seus 150 anos?
-Por aqui, eu sou festejado? -
demonstrou curiosidade.
-A Rádio MEC dedicou todos os domingos
de junho a uma ópera da sua autoria e, quase que diariamente disponibiliza uma
hora para falar da sua carreira ilustrando-a com gravações de obras suas,
poemas sinfônicos principalmente.
-Imagino se eu ainda estivesse vivo, com
150 anos na carcaça... se vivo já me consideravam compositor de um romantismo
tardio, meio ultrapassado, eu imagino hoje.
-Hoje, na música erudita, há mais ruídos
do que outra coisa; assim, as pessoas de gosto refinado voltam-se para o
passado, e as suas criações não estão fora de catálogo, pelo contrário.
-Criticavam a influência de Wagner na
minha música, mas, na verdade, além dele, Mozart foi o meu autor preferido.
-Quando Wagner morreu, você estava com
19 anos e já compunha desde garoto. Havia uma proximidade...
-Meu pai foi o primeiro trompetista da orquestra da Ópera de Munique
e participou da estreia de “Tristão e Isolda” e de “Os Mestres Cantores de
Nurember. Wagner o ouvia com agrado.
-Mas você não estudou trompa?...
-Eu era muito criança, não tinha fôlego
nem para soprar bola de festa infantil. Eu estudei violino e harpa, e os meus
professores foram os colegas de orquestra do meu pai.
-Ainda
trajando calças curtas, já tinha composto obras até para o seu pai tocar. No
meio de uma aula de matemática, você escreveu uma peça para violino.
-Eu não era um novo Mozart, mas mostrava
que tinha aptidão para compor.
-Mas com pouco mais de 20 anos de idade,
você deslumbrava o mundo musical com seus poemas sinfônicos e as suas óperas.
-Óperas, não; a minha primeira foi Guntram,
eu já estava com 30 anos de idade; só depois dos 40, escrevi, modéstia parte,
boas óperas. A amizade que travei com o poeta e dramturgo Hugo von Hofmannsthal
foi de grande valia para mim; os seus belos versos me inspiravam. Pena que teve
um derrame cerebral que o matou minutos antes do enterro do filho, que se
suicidara.
-Quando se deu essa tragédia?
-Em 1929.
-Você é considerado o maior compositor
de óperas das primeiras décadas do século XX; os amantes da ópera italiana, de
Puccini, principalmente, discordam.
-Tanto Puccini como eu concentrávamos a
nossa atenção, quase sempre, nas personagens femininas.
-Mas nenhuma das suas personagens,
Richard Strauss, lembra Madame Butterfly...
-Ela é apaixonada e inocente demais. -
interrompeu-me com um gesto crítico, silenciando-se em seguida para que eu prosseguisse.
-Tosca também, não; ela possuía uma
personalidade forte, mas também era passional, doida pelo Mario Cavaradossi.
-As mulheres de Puccini são criaturas
doces, submissas aos seus amantes, dedicadas a eles até a morte.
-Turandot não era assim. - interferi,
para depois me arrepender, pois ele raciocinava com a regra, desconsiderava a
exceção.
-Nas personagens femininas de maior
destaque das minhas óperas, encontram-se os mais variados tipos de mulher. Na
“Ariadne em Naxos”, temos a mulher doente de amor; na “Salomé”, a revoltada
capaz de tudo, até de pedir a cabeça de João Batista; no “Cavaleiro da Rosa”,
desponta a Marechala, doce, sábia e delicada.
-E a heroína da sua ópera “Capriccio”?
-A Condessa Madeleine?... uma mulher de
gosto refinado, que não se decide entre um poeta e um músico.
-Nessa sua ópera, você enaltece duas
grandes artes, a poesia e a música.
-Intentei também homenagear o poeta Hugo
von Hofmannsthal, meu amigo e parceiro.
-Penso na obra de arte total que vocês,
alemães, chamam de “Gesamtkunstwerk”, conceito estético dos românticos, que
Wagner levou ao paroxismo conjugando música, teatro, canto, dança e artes
plásticas.
-Wagner acreditava que, na antiga
tragédia grega, todas essas artes estavam entrelaçadas, mas que se perderam;
assim, criticava as óperas que se faziam em que a ênfase convergia para a
música em detrimento do drama. - disse-me em tom professoral.
-Você foi casado com Pauline de Ahna
desde os 29 anos de idade, uma renomada soprano. Esse fato talvez explique por
que as suas criações privilegiam tanto a voz feminina.
-Não era por medo dela. - comentou
rindo, talvez aludindo ao temperamento difícil da diva.
-Você se casou em 1893, no ano seguinte,
a viúva de Wagner o convidou para reger Tannhäuser em Bayreuth.
-Fiquei muito amigo da Cosima Wagner.
-Alguns anos antes, você trabalhou com o
primeiro marido dela, Hans von Büllow. Estava tudo em casa, como se diz aqui no
Brasil.
-Ele era um renomado maestro, Wagner o
considerava seu melhor intérprete, romperam por razões bem conhecidas. Para
mim, foi uma promoção, na minha carreira, ser o seu assistente, em Meiningen,
com 21 anos de idade. Tornei-me logo regente titular da orquestra e diretor do
Teatro de Ópera de Viena.
-A filha de Franz Lizst, esposa de
Wagner, era muito influente, e cair nas graças dela era uma grande sorte.
-Não sei se fui diretor das Casas de
Ópera de Berlim e de Viena por isso.- comentou com brusquidão.
-Os seus críticos o acusavam de
wagnerismo, de pertencer a um romantismo ultrapassado, mas hoje se constata que
você foi um compositor de estilo próprio e, nesses seus 150 anos, observa-se
que cada vez mais a sua música é atemporal.
-Os meus personagens operísticos quase
nada têm a ver com os de Wagner. Redigi algumas reflexões que me nortearam e
até posso citar algumas de cór.
-Sou todo ouvido, Richard Strauss.
-Quando somos jovens, imaginamos que só
importa um libreto com cenas violentas e assassinatos cruéis. Com o passar dos
anos, começamos a compreender que também nos pequenos acontecimentos do dia a
dia, há coisas que merecem ser notadas e exaltadas com intenso lirismo. É
preciso aprender a descobrir o que existe de profundo nos fatos e nas coisas
que parecem humildes. Sob um manto de púrpura, muitas vezes vive uma criatura
mesquinha; e sob as vestes desalinhadas de um homem comum dos nossos dias, palpita,
às vezes, o coração de um herói. Faz-se mister que nos curemos dessa mania do
heroísmo cenográfico, que renunciemos, principalmente, aos venenos, aos punhais e aos incestos.
Incestos?!... não me lembrei de nenhum
nas ópera italianas, mas na alemã... e justamente nas “Valquírias” de Wagner,
entre os irmãos Siegmund e Sieglinde,
mas nada falei, pois pretendia mudar de tema.
-Você foi acusado de simpatia pelo
nazismo.
-Hitler me nomeou diretor da Reichsmusikkammer,
em 1934, por que eu não aceitaria?
-Grandes nomes da música o criticaram
por isso.
-Toscanini, Arthur Rubinstein e outros
não estavam enraizados na Alemanha como eu; era muito difícil para mim viver em
outro país.
Eu não trouxe à baila a canção que ele
dedicou a Joseph Goebbels para não parecer uma espécie de inquisidor, ainda
assim, ele continuava a se defender:
-Com toda a perseguição aos judeus,
compus uma ópera com libreto de Stefan Zweig e protegi a esposa do meu filho,
que era judia, e, naturalmente, dos meus netos.
-Foi uma época terrível. - limitei-me a
dizer.
-Os aliados instalaram, em 1945, um
comitê de ... como direi?
-Caça aos nazistas. - sugeri.
-Comitê de “Desnazificação”. Fui
intimado a depor, o tribunal constatou que eu não fui filiado ao Partido
Nazista.
-Além de você ser um dos maiores nomes
da música erudita da época, se não, o maior, estava com 81 anos de idade. Não
podiam lhe fazer nada de mal. Você era um ícone cultural.
-O entusiasmo com que os ingleses me
receberam quando, em 1947, fui a Londres reger meus concertos, me deixaram com
a alma leve, eu já podia morrer em paz.
-E morreu dois anos depois, em 1949.
-Foi bom você me lembrar que estou
morto. Tenho quee partir.
E partiu.
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