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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4939 Data: 03 de setembro de 2014
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138ª VISITA À MINHA CASA
-Aníbal Augusto Sardinha, a sua vida é
tão marcantemente musical que você não foi bebê, já nasceu Garoto.
-Antes, eu era conhecido como Moleque do
Banjo, mudei, depois para Garoto. Para ser mais preciso, Jaime Redondo , que me
chamou para tocar na Rádio Cosmos, de São Paulo, me sugeriu esse nome
artístico.
-Em que época foi isso?
-Em fins de 1934, eu tocava no “Conjunto
Regional” liderado por Hudson Gaia. Eu contava com 19 anos de idade.
-Você era, de fato, um garoto.
-Moleque do Banjo ficou esquecido, mas o
banjo, não.
-Você, que tocava praticamente todos os
instrumentos de corda, não poderia ficar com o nome limitado a um só.
-Quando poucos me conheciam, participei,
em São Paulo, de uma gravação com o Sílvio Caldas e outros artistas, como a
Aracy de Almeida. Ele se assustou quando me viu com vários instrumentos. Toquei
todos eles, cavaquinho, bandolim, guitarra havaiana, o ukelelê e violão tenor.
-Imagino o quanto ele ficou estupefato e
os demais, maravilhados.
-Não me saí mal. - disse com modéstia.
-Você falou em violão tenor...
-Era um pouco menor que o violão comum,
tinha apenas quatro cordas; a sua origem é americana, chamavam-no triolin.
Lancei esse instrumento em São Paulo, ano 1933.
Tirávamos uma boa sonoridade dele.
-Você começou mesmo com o banjo?
-Com cinco anos de idade, eu pegava o
violão do mano, o Batista, e tocava sozinho, de ouvido.
-Você pertencia a uma família de
músicos, não é?
-Sou filho de casal português. Meu pai, Antônio
Augusto Sardinha, tocava violão e guitarra portuguesa. Meu irmão mais velho,
Batista, participava de um conjunto em que tocava banjo e outros instrumentos
de corda. Ele me deu um banjo de presente.
-Ele, seu pai?...
-Não, meu irmão.
-E a sua aptidão musical deslanchou?
-Com quantos anos eu estava em 1926?...
Onze. Com essa idade, eu já integrava o “Regional Irmãos Armani”.
-Foi quando o apelidaram de Moleque do
Banjo?
-Isso. Passei, depois, para o “Conjunto
dos Sócios”, que se apresentava em reuniões e festas.
-E as suas gravações discográficas,
Garoto? Desculpe-me a precipitação; você mal completava quinze anos de idade
para lançar discos.
-Mas gravei ainda assim. Fomos eu e o
violonista Serelepe até o diretor artístico da Parlophon, o maestro
Francisco Mignone.
-Caramba, ele foi um dos maiores
compositores eruditos do Brasil.
Foi um atrevimento nosso, mas ele,
depois de um teste, nos convidou para gravar.
E prosseguiu:
-Gravamos duas composições minhas num
disco: “Bichinho de Queijo”, maxixe-choro; e “Driblando”, maxixe.
-Foi um duo de violão e banjo?
-Isso.
-Você começou a tocar de ouvido, mas
adquiriu formação musical desde tenra idade?
-Sim, meu pai me vendo mais interessado
nos instrumentos musicais do que por uma bola de futebol, contratou um
professor para me dar aulas de violão, e outro, para aulas de violino.
-Também violino?...
-Eu era atraído pelo violino, saxofone,
flauta, bandola, guitarra portuguesa, bandolim, cavaquinho, banjo...
-Garoto, reza a lenda que, na escola
primária, o professor lhe perguntou qual foi o homem extraordinário que Deus
enviou à terra, e você respondeu Ernesto Nazareth.
-Não é lenda; eu estava no mundo da
música e confundi Jesus de Nazaré com Ernesto Nazareth.
-Você tirou zero?
-Ele me deu uma senhora bronca, mas o
lamentável disso tudo é que o professor não sabia quem foi Ernesto Nazareth.
-Falando de novo daquela sua primeira
gravação, a partir de então você conheceu muitos músicos?
-Alguns excelentes, como o Aimoré que,
como eu, era desconhecido do público.
-Com ele e mais outro instrumentista,
formaram um trio que se apresentava no salão nobre do Edifício Martinelli.
-Nós e mais o Petit. Apesar de garoto, eu já era profissional.
Participei da Rádio Gazeta, na época, antes, Rádio Educadora Paulista, toquei
cavaquinho e bandolim no “Conjunto Regional”, substituindo o Zé Carioca.
-São Paulo já estava pequena para o seu
talento.
-Viajei para o Rio Grande do Sul,
Paraná... Não é verdade que acompanhei Carlos Gardel em alguns tangos que ele
cantou como apregoaram.
-E quando você se estabeleceu na Capital
Federal?
-Sílvio Caldas me convidou, juntamente
com o Aimoré, para tocar no Rio de Janeiro.
Estreei na Rádio Mayrink Veiga, mas voltei a São Paulo por problemas de
saúde. Dois anos depois, desfiz a dupla com Aimoré, casei-me e vim para o Rio
de Janeiro, mas não definitivamente.
-Foi quando conheceu Laurindo de
Almeida?
-Toquei com ele. Depois, fui chamado
pela Carmem Miranda para integrar o “Bando da Lua”.
-E foi para os Estados Unidos?
-fiquei por lá oito meses; retornei com
a ideia de criar o conjunto “Seus Garotos”, e os componentes foram Poli,
Valdemar Reis, Almeida e Russo do Pandeiro.
-Mas como foi a sua experiência com a
Carmem Miranda, Garoto?
-Participei com ela do filme da Fox, de
1940, “Serenata Tropical”. Nós nos apresentamos na Casa Branca para o
presidente Roosevelt depois.
-Bem, de volta ao Rio, fixou-se, então,
definitivamente?
-Levaram-me para a Rádio Nacional. Com o
“Seus Garotos” desfeito, fiquei nessa emissora onde fiz vários programas com a
Carolina Cardoso de Menezes, gravamos seis discos de 78 rpm. Fiz também um duo
com o Zé Menezes no programa “Nada Além de Dois Minutos”, do Paulo Roberto,
também nos programas “Ao Som da Viola” e “Um Milhão de Melodias”, e gravamos juntos
muitos discos.
-E o “Trio Surdina”?
-Veio logo depois; éramos eu, Fafá Lemos
e Chiquinho do Acordeon. Foram 10 LPs.
-As gravações eram no estúdio da Rádio
Nacional?
-De fato; havia lá grandes nomes como o
maestro Radamés Gnattali.
-Você tocou, no Teatro Municipal, com o Eleazar
de Carvalho como regente?
-Toquei o Concerto para Violão e
Orquestra nº 2 do Radamés Gnattali, a mim dedicado. O maestro Eleazar de
Carvalho se sentiu constrangido, tinha preconceitos com o violão.
-Se Villa Lobos também compôs um
concerto para violão e orquestra... - argumentei.
-É a vida... - conformou-se.
-Você, nesses anos, alcançou estrondoso
sucesso com a sua música e do Chiquinho do Acordeon “São Paulo Quatrocentão”;
700 mil cópias vendida, e ainda gravou pela Odeon a valsa de autoria do
Canhoto, “Abismo de Rosas”.
-Ao mesmo tempo em que eu tocava não
deixava de estudar.
-Sendo um multiinstrumentista, você
tinha de estar sempre com a música na sua vida.
Depois de uma pausa, prossegui:
-Nesse período, compôs “Gente Humilde” e
“Duas Contas”.
-”Duas Contas” eu também escrevi a
letra, sem rimas, é verdade.
-E precisava, Garoto?
-Eu não me arriscava muito com as
letras, eu era, essencialmente, músico.
-Digamos, Garoto, que você escrevia
poesia com notas musicais.
E prossegui:
-Estudiosos afirmam que você fez a ponte
de harmonização jazzística para o violão brasileiro, antecipando-se à Bossa
Nova. E que a gravação de “Falsete” de Johnny Alf, ele no piano, você no violão
e Vidal no contrabaixo, abriu o caminho
para a Bossa Nova.
-Johnny Alf era um talento que despontava.
- salientou.
-Os duelos de instrumentos entre você e
Johnny Alf, permeados por contrapontos são estudados até hoje.
-Na época, gravamos também “De cigarro
em cigarro”, do Luís Bonfá.
-E Tom Jobim, Garoto?
-Toquei com ele no Clube do Cinema.
Éramos dois garotos. Pena que morri inesperadamente em 1955; nós dois faríamos
grandes coisas juntos.
-Ele compôs um choro para reverenciá-lo
“Garoto”.
-É hora de partir. - anunciou.
E partiu com uma suave despedida.
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