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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

2472 - bovariando



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4272                        Data:  14 de  setembro de 2013
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93ª VISITA À MINHA CASA

-Quanta honra esta visita!
Diante de Gustave Flaubert, logo me arrependi das minhas palavras; recepcionara com um clichê o escritor que formava as frases mais bem buriladas.
-Esteja à vontade. - fez-se de anfitrião ao mostrar sua generosidade.
-O Nélson Rodrigues, depois de uma vitória épica do Brasil, na Copa do Mundo de 1962, iniciou sua crônica com estas palavras: “Amigos, não é hora de escrever bem.”- lembrei.
-Ele estava tomado pela emoção; tinha, certamente, de entregar um texto ao editor do jornal em pouco tempo; desculpou-se, então. A escrita requer lucidez. - comentou.
-Você escreveu para jornais?
-Considero como uma das felicidades da minha vida não escrever nos jornais; isto faz mal ao meu bolso, mas faz bem à minha consciência.
-”Madame Bovary”, romance conhecido até pelos que não sabem quem é o autor, foi impressa primeiramente na “Revue de Paris”, em outubro de 1856.
-Sim, mas eu trabalhei duro nesse romance durante cinco anos.
-Há até lendas sobre a criação de “Madame Bovary”, que você se isolou durante todo esse tempo. O autor brasileiro que citei até dizia, nas suas crônicas, que você vibrava quando conseguia redigir, em quinze dias, duas frases, tal a sua obsessão em buscar as palavras exatas.
-Exageram; eu era um escritor realista que evitava o estilo hiperbólico.
-”Madame Bovary” deprecia os valores burgueses, segundo alguns críticos. Disseram que Flaubert ridicularizou a sua própria condição social.
-Faz-se crítica quando não se pode fazer arte, como quem se torna delator, quando não se pode ser soldado.
-Por que você criou “Madame Bovary” e outros romances?
-A gente não escolhe o próprio assunto. Eis o que o público e os críticos não entendem. O segredo das obras-primas está nisso, na concordância do assunto com o temperamento do autor.
-Importava que seus romances fizessem sucesso.
-O sucesso é uma consequência, não um objetivo.
-Bem, a sua condição social, como foi dito, era boa.
-Fui o segundo de seis filhos do cirurgião-chefe do Hospital de Rouen. Mamãe, Anne Justine, uma mulher prendada, era de Fleuriot.
-Você passou a sua infância, com os seus irmãos, no hospital onde seu pai trabalhava?
-Sim.
-Entendo o porquê dos personagens médicos dos seus livros.
Sorriu com o meu comentário e prosseguiu com as suas memórias.
-Entrei para o colégio Real e conheci meus amigos eternos: Louis Boulhiet, poeta; Maxime Du Camp, editor; e Alfred Le Poittevin, que partiu tão cedo.
A vocação pela literatura já se manifestou na sua idade escolar?
-Sim; dirigi o semanário escolar “Arte e Progresso”.
-Caramba, por pouco não são os dizeres da bandeira do Brasil: Ordem e Progresso.
-Meu jornalzinho é de 1832; não sei de quando são os dizeres da sua bandeira.
-São de quase 60 anos depois, quando o Brasil se tornou republicano.
-Não podem acusar-me de plágio. - comentou com um sorriso.
-Melhor seria se a Bandeira do Brasil fosse “Arte e Progresso”, mas preferiram a influência de outro francês. - assinalei.
-Interessei-me também pelo teatro.
-Victor Hugo, Alexandre Dumas, até mesmo Balzac, o caudaloso escritor de romances, enveredaram pela arte teatral. - intervim.
-Eu era garoto e eles eram meus ídolos. Assim, com quinze anos de idade, elaborei um drama em cinco atos, “Luís XI”. Elaborei?... Não usei a palavra exata: rabisquei um drama em cinco atos.
-Por mais falhas que haja na sua peça, ela tem a importância transcendental de marcar o início da carreira de um dos maiores autores da literatura universal.
Apesar da minha intervenção laudatória, não se alterou e foi adiante:
-Com 16 anos de idade, escrevi meu primeiro romance, “Rêve d' Enfer” (Sonho do Inferno).
-Os flaubertianos reconhecem que essa obra, sendo juvenil, é imatura, mas vislumbraram vestígios das suas heroínas.
-Eu, com 15 anos de idade, já nutria uma grande paixão.
-E não era por uma coleguinha de folguedos.
-Creio que a proximidade com os pacientes de meu pai me amadureceu antes do tempo. Apaixonei-me por uma mulher onze anos mais velha do que eu, e casada: Elisa Schlesinger.
-Como Balzac, você escrevia romances na sua juventude, e sentia atração por mulheres mais velhas. É verdade que Balzac escreveu romances à Walter Scott, que ele renegaria, para começar a escrever talentosamente depois dos 30 anos de idade.
-Elisa Schlesinger inspirou personagens minhas de vários romances: “Mémoires d'un Fou” (“Memórias de um Louco”, de 1838; “Novembre”, de 1842; e “L' Educacion Sentimentale”, de 1869.
-Então, o seu amor por Elisa Schlesinger não foi juvenil, durou todo esse tempo?
-Como a minha paixão pela literatura, prolongou-se por toda a vida.
-Mas você não se casou com ela?
-Declarei-lhe meu amor 30 anos depois, quando ele era uma viúva, mas fui rejeitado.
-Mas voltando à sua época de estudante, o seu pai o ajudava, naturalmente?
-Enviou-me para Paris, onde eu estudaria direito. Lá, gastei o dinheiro que me remetia na esbórnia. O direito não me interessava, eu era um aluno relapso, consequentemente, fui reprovado nos exames da Universidade de Paris.
-E retornou à sua cidade?
-Sofri com problemas de saúde; tive crises nervosas com alucinações e perdas de consciência.
-Nada como a companhia de um pai médico nesse momento. - frisei.
-Fui diagnosticado como histérico-epiléptico. Meu pai me tratou com sangrias e dietas, isolando-me num sítio em Croisset, às margens do Rio Sena. Nessa quietude, faleceram meu pai e, de parto, minha irmã Caroline. Mesmo com esses dramas, a minha saúde foi restabelecida, e essas crises só retornariam muitos anos depois, quando eu me aproximava do fim.
-Você, naturalmente, não se fechou para todas as mulheres por causa de Elisa Schlesinger.
-Não, com 25 anos de idade, conheci Louise Collet, separada do marido, e mãe de uma jovem de 16 anos.
E continuou:
Louise Collet era amante do filósofo Vitor Cousin, o que não impediu um relacionamento entre nós.
-Flaubert e Balzac num extremo, e Nabokov do outro. - pensei sem me manifestar.
-Meus amigos me preveniam sobre a sua personalidade presunçosa e afetada. Quando os meus olhos se abriram, eu vi que estavam cobertos de razão. A minha atração por ela murchou definitivamente.
-E você rompeu com ela.
-Rompi e, em seguida, dediquei quase todas as minhas horas a trabalhar para escrever bons livros.
-E assim vieram “Madame Bovary”, “Salambô”, “A Educação Sentimental”, “A Tentação de Santo Antônio”, “Três Contos”, “Bouvard e Pécuchet”, além de peças de teatro como “O Candidato”, “O Castelo dos Corações”...
-Hora de eu me ir. - interrompeu-me.
-Sua partida nos deixará triste.
-Cuidado com a tristeza, ela é um vício. - disse antes de partir.

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