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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4272 Data: 14 de
setembro de 2013
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93ª VISITA À MINHA CASA
-Quanta honra esta visita!
Diante de Gustave Flaubert, logo me
arrependi das minhas palavras; recepcionara com um clichê o escritor que
formava as frases mais bem buriladas.
-Esteja à vontade. - fez-se de anfitrião
ao mostrar sua generosidade.
-O Nélson Rodrigues, depois de uma
vitória épica do Brasil, na Copa do Mundo de 1962, iniciou sua crônica com
estas palavras: “Amigos, não é hora de escrever bem.”- lembrei.
-Ele estava tomado pela emoção; tinha,
certamente, de entregar um texto ao editor do jornal em pouco tempo;
desculpou-se, então. A escrita requer lucidez. - comentou.
-Você escreveu para jornais?
-Considero como uma das felicidades da
minha vida não escrever nos jornais; isto faz mal ao meu bolso, mas faz bem à
minha consciência.
-”Madame Bovary”, romance conhecido até
pelos que não sabem quem é o autor, foi impressa primeiramente na “Revue de
Paris”, em outubro de 1856.
-Sim, mas eu trabalhei duro nesse
romance durante cinco anos.
-Há até lendas sobre a criação de
“Madame Bovary”, que você se isolou durante todo esse tempo. O autor brasileiro
que citei até dizia, nas suas crônicas, que você vibrava quando conseguia redigir,
em quinze dias, duas frases, tal a sua obsessão em buscar as palavras exatas.
-Exageram; eu era um escritor realista
que evitava o estilo hiperbólico.
-”Madame Bovary” deprecia os valores
burgueses, segundo alguns críticos. Disseram que Flaubert ridicularizou a sua
própria condição social.
-Faz-se crítica quando não se pode fazer
arte, como quem se torna delator, quando não se pode ser soldado.
-Por que você criou “Madame Bovary” e
outros romances?
-A gente não escolhe o próprio assunto.
Eis o que o público e os críticos não entendem. O segredo das obras-primas está
nisso, na concordância do assunto com o temperamento do autor.
-Importava que seus romances fizessem
sucesso.
-O sucesso é uma consequência, não um
objetivo.
-Bem, a sua condição social, como foi
dito, era boa.
-Fui o segundo de seis filhos do
cirurgião-chefe do Hospital de Rouen. Mamãe, Anne Justine, uma mulher prendada,
era de Fleuriot.
-Você passou a sua infância, com os seus
irmãos, no hospital onde seu pai trabalhava?
-Sim.
-Entendo o porquê dos personagens
médicos dos seus livros.
Sorriu com o meu comentário e prosseguiu
com as suas memórias.
-Entrei para o colégio Real e conheci
meus amigos eternos: Louis Boulhiet, poeta; Maxime Du Camp, editor; e Alfred Le
Poittevin, que partiu tão cedo.
A vocação pela literatura já se
manifestou na sua idade escolar?
-Sim; dirigi o semanário escolar “Arte e
Progresso”.
-Caramba, por pouco não são os dizeres
da bandeira do Brasil: Ordem e Progresso.
-Meu jornalzinho é de 1832; não sei de
quando são os dizeres da sua bandeira.
-São de quase 60 anos depois, quando o
Brasil se tornou republicano.
-Não podem acusar-me de plágio. -
comentou com um sorriso.
-Melhor seria se a Bandeira do Brasil
fosse “Arte e Progresso”, mas preferiram a influência de outro francês. -
assinalei.
-Interessei-me também pelo teatro.
-Victor Hugo, Alexandre Dumas, até mesmo
Balzac, o caudaloso escritor de romances, enveredaram pela arte teatral. -
intervim.
-Eu era garoto e eles eram meus ídolos.
Assim, com quinze anos de idade, elaborei um drama em cinco atos, “Luís XI”.
Elaborei?... Não usei a palavra exata: rabisquei um drama em cinco atos.
-Por mais falhas que haja na sua peça,
ela tem a importância transcendental de marcar o início da carreira de um dos
maiores autores da literatura universal.
Apesar da minha intervenção laudatória,
não se alterou e foi adiante:
-Com 16 anos de idade, escrevi meu
primeiro romance, “Rêve d' Enfer” (Sonho do Inferno).
-Os flaubertianos reconhecem que essa
obra, sendo juvenil, é imatura, mas vislumbraram vestígios das suas heroínas.
-Eu, com 15 anos de idade, já nutria uma
grande paixão.
-E não era por uma coleguinha de
folguedos.
-Creio que a proximidade com os
pacientes de meu pai me amadureceu antes do tempo. Apaixonei-me por uma mulher
onze anos mais velha do que eu, e casada: Elisa Schlesinger.
-Como Balzac, você escrevia romances na
sua juventude, e sentia atração por mulheres mais velhas. É verdade que Balzac
escreveu romances à Walter Scott, que ele renegaria, para começar a escrever
talentosamente depois dos 30 anos de idade.
-Elisa Schlesinger inspirou personagens
minhas de vários romances: “Mémoires d'un Fou” (“Memórias de um Louco”, de
1838; “Novembre”, de 1842; e “L' Educacion Sentimentale”, de 1869.
-Então, o seu amor por Elisa Schlesinger
não foi juvenil, durou todo esse tempo?
-Como a minha paixão pela literatura,
prolongou-se por toda a vida.
-Mas você não se casou com ela?
-Declarei-lhe meu amor 30 anos depois,
quando ele era uma viúva, mas fui rejeitado.
-Mas voltando à sua época de estudante,
o seu pai o ajudava, naturalmente?
-Enviou-me para Paris, onde eu estudaria
direito. Lá, gastei o dinheiro que me remetia na esbórnia. O direito não me
interessava, eu era um aluno relapso, consequentemente, fui reprovado nos
exames da Universidade de Paris.
-E retornou à sua cidade?
-Sofri com problemas de saúde; tive
crises nervosas com alucinações e perdas de consciência.
-Nada como a companhia de um pai médico
nesse momento. - frisei.
-Fui diagnosticado como histérico-epiléptico.
Meu pai me tratou com sangrias e dietas, isolando-me num sítio em Croisset, às
margens do Rio Sena. Nessa quietude, faleceram meu pai e, de parto, minha irmã
Caroline. Mesmo com esses dramas, a minha saúde foi restabelecida, e essas
crises só retornariam muitos anos depois, quando eu me aproximava do fim.
-Você, naturalmente, não se fechou para
todas as mulheres por causa de Elisa Schlesinger.
-Não, com 25 anos de idade, conheci
Louise Collet, separada do marido, e mãe de uma jovem de 16 anos.
E continuou:
Louise Collet era amante do filósofo
Vitor Cousin, o que não impediu um relacionamento entre nós.
-Flaubert e Balzac num extremo, e
Nabokov do outro. - pensei sem me manifestar.
-Meus amigos me preveniam sobre a sua
personalidade presunçosa e afetada. Quando os meus olhos se abriram, eu vi que
estavam cobertos de razão. A minha atração por ela murchou definitivamente.
-E você rompeu com ela.
-Rompi e, em seguida, dediquei quase
todas as minhas horas a trabalhar para escrever bons livros.
-E assim vieram “Madame Bovary”,
“Salambô”, “A Educação Sentimental”, “A Tentação de Santo Antônio”, “Três
Contos”, “Bouvard e Pécuchet”, além de peças de teatro como “O Candidato”, “O
Castelo dos Corações”...
-Hora de eu me ir. - interrompeu-me.
-Sua partida nos deixará triste.
-Cuidado com a tristeza, ela é um vício.
- disse antes de partir.
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