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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4232 Data: 17 de
julho de 2013
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91ª VISITA À MINHA CASA
O meu visitante não podia ser mais
ilustre.
-Sócrates, acomode-se, por favor, numa
poltrona.
No entanto, ele permaneceu de pé.
-O que você quer beber? Tenho cerveja,
vinho, uísque...
-Tem cicuta? - brincou.
-Sócrates, o homem de caráter e
inteligência fora do comum, imbuído de paixão pela honestidade intelectual e de
rara integridade moral. - intentei fazer-lhe justiça.
Notei que seus olhos se fixavam nos
poucos livros da minha estante.
-Se você tivesse escrito um livro, ele
certamente estaria aqui. - garanti.
-Digamos que eu cometesse um erro, e
cometi alguns; se eles estivessem escritos, os erros se perpetuariam.
-A transmissão do saber, na sua época,
também era feita oralmente, por isso ficamos sem seus livros? - indaguei.
-A escrita encarcera o conhecimento,
deixa-o de uma forma acabada, e o autor fica, consequentemente, preso a
afirmações cristalizadas.
-Lembro-me de um conhecido que, há uns
trinta anos, me pediu, sabendo que eu era frequentador de sebões, que comprasse
um livro seu.
-Sócrates gargalhou.
-Só faltou pedir-me também um livro de
Jesus Cristo. - acrescentei.
-Ele, como eu, nada escreveu, também? -
interessou-se.
-Seus discípulos perpetuaram seus
pensamentos.
-Os meus me afirmaram que fariam isso, pois
não admitiam que o maior dos tesouros, segundo eles, fosse enterrado comigo.
-Xenofonte fez isso, nos seus diálogos;
Aristófanes, nas suas peças; e, principalmente, o fabuloso Platão, com seus
diálogos.
-Platão era o mais promissor dos meus
discípulos.
-A filosofia é cultivada por uma elite,
mas mesmo as pessoas de pouco conhecimento sabem da sua frase “Só sei que nada
sei”.
-A sabedoria é limitada pela nossa própria
ignorância. Eu nunca me proclamei um sábio.
-Os estudiosos dizem que a sua humildade
intelectual extrema era uma abertura a dar passagem à sabedoria universal.
Após uma pausa, prossegui:
-Assim, entre seus pares, ninguém soube
mais do que você. E ainda despontou outra frase sua que repercute até hoje,
passados mais de 2400 anos, com toda força: “Conheça-te a ti mesmo”.
-O meu propósito era conduzir as pessoas
a se deparar com seus desconhecimentos.
-Nada mais ruinoso para o pensamento do
que os dogmas e os preconceitos. - manifestei-me.
-Temos de combatê-los com o conhecimento
e, quando nos conhecemos a nós mesmos, estamos prontos para isso. -
instruiu-me.
-Tive um professor, que orientava com
perguntas aos alunos, muitos argumentavam que ele ainda não ensinou a matéria,
ele pedia, então, que o aluno falasse o que imaginava o que fosse; feito isto,
ele ia conduzindo a questão com outras perguntas até que encontrávamos, todos
juntos, uma resposta de consenso. Soube, depois, que era o método socrático de
ensino: a maiêutica. - tagarelei.
Ah, sim, um parto de ideias. Eu
questionava meus discípulos conduzindo-os às novas reflexões sobre o tema em
debate, assim, a ignorância era reconhecida, o que abria caminho a outros
pensamentos, mais próximas da verdade.
-Maiêutica, palavra de origem grega,
significa dar à luz parto.
E continuei:
-Você usava a sua habilidade para trazer
à luz a verdade latente na mente dos outros. Certamente, a filosofia de Platão
foi o fruto final e mais completo desse parto. - repeti o que lera nos
compêndios.
-Eu me assumia como uma parteira
intelectual.
E aproveitei para perguntar sobre a
profissão de sua mãe.
-Minha mãe era parteira, e eu a ajudei
em um parto. Vendo que minha mãe não iria criar o bebê, apenas ajudá-lo a
nascer, mitigando a dor do parto, concluí que, de certa forma, eu era um
parteiro.
-Como assim?
-O conhecimento está dentro das pessoas,
incapazes de saber por si mesmas; no entanto, eu posso ajudar no nascimento
desse conhecimento. Daí, a maiêutica.
-Seu pai era oleiro?
-A minha ajuda ao meu pai eram
trapalhadas, eu não sabia trabalhar o mármore. Minha mãe mostrou-me a minha
vocação para educador.
-Você foi casado com Xântipe e teve um
filho, Lamprocles. Falam que você teve mais filhos com outras mulheres, já que
era permitido um homem casado ter filhos com outras mulheres na Atenas do seu
tempo.
Como não mostrou entusiasmo em discorrer
sobre a sua vida amorosa, atalhei essa parte e esqueci Alcebíades. Falamos,
então, da sua vida de militar.
-Sócrates, devido à sua vocação de
líder, você foi escolhido como um dos generais atenienses na Guerra do
Peloponeso.
-Foi muito doloroso; homens de 15 a 45 anos foram convocados
para as sangrentas contendas.
-Você, no final da guerra, procurando
salvar os poucos que restavam vivos, ordenou a volta imediata deles para Atenas
sem que antes enterrassem os soldados mortos. Contrariou, assim, a lei, o que o
levou a ser preso.
-Consegui persuadir os meus
acusadores. Se meus soldados
permanecessem mais tempo no campo de batalha, seriam também mortos e, no fim,
não haveria mais um sobrevivente para cavar um túmulo.
-Sócrates, ao contrário dos sofistas,
você não cobrava pelas suas aulas. Vivia, como disse Platão, na pobreza.
-Eu filosofava em praças públicas e
ginásios, principalmente. Dialogava de forma descontraída e descompromissada
com todas as pessoas; elas me fascinavam, jovens, mulheres, políticos.
-Sócrates, pregando ideias novas, você
contrariou muitos inimigos, além de despertar os invejosos. Acusaram-no de três
crimes: não acreditar nos costumes e nos deuses gregos, unir-se a deuses
malignos destruidores de cidades e corromper a juventude com seus pensamentos.
-Havia acusadores cujos filhos eram meus
discípulos. - sorriu, apesar de essa constatação aumentar o ódio contra ele.
-Pelas suas ideias inovadoras, o castigo
foi a morte.
-Eu poderia ter evitado a morte se
desistisse da vida justa, mas eu não faria isso.
-Dizem que, na verdade, eles queriam
vê-lo longe de Atenas, pois a execução só ocorreria trinta dias depois da
sentença, tempo suficiente para a sua escapada com o auxílio dos seus numerosos
amigos.
-Eu me recusei terminantemente a fugir
do meu destino.
-Outra semelhança sua com o líder
religioso que nasceria mais de quatrocentos anos depois, ele, além de nada
escrever, se conformou com o seu destino.
-Bebi a cicuta cercado por amigos.
-Reza a lenda que, antes de tomar o
veneno, você lembrou a Críton, seu amigo, que deviam um galo a Asclépio e que
ele saldasse a sua parte da dívida.
-Não é uma lenda.
-Fédon, seu discípulo, narrou, num livro
a sua morte e o desespero que subjugou a todos que a testemunharam.
-Meu sofrimento, não foi a minha morte e
sim o sofrimento que deixei nos meus amigos.
Com essas palavras, partiu.
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