----------------------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 4208 Data: 14 de
Junho de 2013
---------------------------------------------------------------------------
UM JUDEU E DOIS GÓIS NO ÁRABE
Quando o Elio Fischberg marcou, depois
de meses e meses, um almoço, e no Damasco, com o Luca e comigo, Luca se mostrou
meio errático, não porque era na capital da Síria, país em guerra civil desde
março de 2011, e sim pelo fato de o seu paladar desconhecer a comida árabe, com
exceção dos quibes e das esfirras. Sua filha Carolina, como me revelou, deu-lhe
algumas orientações.
Vindo pela Rua Uruguaiana, parei
defronte ao restaurante, na Rua do Rosário. A atendente, com um sorriso largo
de boas-vindas, escancarou a porta de entrada para a minha passagem, mas eu
recuei um passo e pedi que me esperasse. No momento, ela não entendeu nada, mas
eu tinha visto o reflexo do Luca no espelho da porta do árabe com o celular no
ouvido.
Entramos juntos e subimos a escadaria do
Damasco, pois a parte de baixo estava prenhe de gente e eu imaginava o
Dieckmann que, nos restaurantes de mais de quarenta degraus, sobe de elevador,
como no extinto Beirute da Rua da Assembleia.
O Elio chegou, menos de cinco minutos
depois, e propôs ao Luca que os dois não falassem, que o almoço fosse um
monólogo meu. Pretendia, assim, deixar-me sem assunto para o Biscoito Molhado.
Sua intenção é evidente, fracassou; greve de silêncio dos dois seria como uma
greve de fome do Jô Soares. Logo, os dois conversavam sobre arte culinária.
-Elio, a comida árabe é boa?
Elio teceu loas à arte de cozinhar dos
descendentes de Ismael e frisou que, nas suas viagens a Jerusalém regalava-se
com os pratos das arábias. Em seguida, elogiou a comida portuguesa e de outros
países, como não citou a França, Luca estranhou.
-Olha, já estive em Paris três vezes, há
muita propaganda sobre a culinária francesa. - comentou o Elio.
E muitos queijos, também – associei,
comigo mesmo, aquele diálogo a De Gaulle, que dissera: “Como podemos conceber
um sistema de um único partido num país que tem mais de 200 variedades de
queijos?”
-E a culinária brasileira?- foi a minha
vez de perguntar
-Ótima. - respondeu o Elio sem o
chorrilho de adjetivos próprios do Dieckmann.
Luca aproveitou para enaltecer Recife
com suas iguarias, quitutes e pitéus.
Quando o assunto se esgotou, a Tamoio,
que fora relembrada no Rádio Memória de domingo, voltou ao ar.
-Gostei muito quando citaram o “Pick-Up
Sabido”, eu já não me lembrava mais desse programa. - interveio o Luca.
Elio Fischberg, que também foi ouvinte
assíduo dessa emissora, relembrou algumas programações. Para não ficar mudo,
reportei-me ao Humberto Reis, um dos locutores da rádio. Sobre ele, Luca falou
para o Elio o que já me contara algumas vezes.
-Era fascinado pela minha irmã. Ele me
abriu as portas para mestres da literatura, como Rainer Maria Rilke.
Humberto Reis foi para o Luca uma
espécie de Rosa Grieco, com menos erudição, evidentemente, pois nesse quesito
ela é insuperável.
Como ele também atuou como jurado do
programa do Flávio Cavalcanti, deflagrou-se um jogo de memória sobre os
integrantes daquele juri, o que nos fez citar até o Carlos Renato, o poeta do
adultério, Mister Eco e Hugo Dupin, do Diário de Notícias. Todavia, uma
integrante daquele grupo não saía do canto das nossas memórias nem a fórceps.
Iniciou-se, então, uma espécie de aproximação mnemônica.
-Ela namorou aquele cirurgião plástico,
Hosmany Ramos. - disse o Luca.
-E, sobre esse caso, ela escreveu o
livro “Amor Bandido”.
Elio cerrou as vistas para exigir mais
da memória e obteve êxito:
-Marisa Raja Gabaglia.
-Marisa Raja Gabaglia. - fez eco o Luca,
como costuma acontecer depois que alguém se lembra do que esquecemos.
Nesse momento, já devorávamos os pães
árabes cujas circunferências superam as dos pratos com pastas de grão de bico e
já bebíamos Bohemia, suco de uva e água mineral, cada um com sua bebida.
Veio-me à mente o relógio que o Hosmany
Ramos furtara do Pelé, quando ele o tirou para mergulhar na piscina de um clube
chique, mas o Luca já levara uma dúvida do último Sabadoido, que não fora
desvendada, ao Elio.
-Como era conhecido o estádio da
Portuguesa?
A resposta era tão óbvia que escapara
dos nossos olhos naquele sábado: Estádio da Ilha do Governador.
O assunto passou, então, a ser futebol.
Com a palavra o Luca:
-O Ruy Castro escreveu sobre a bofetada
na Copa de 50...
Houve um pequeno desvio no tema para que
fosse citada uma frase do meu irmão Cláudio sobre os dois únicos brasileiros
que morreram sem ser anistiados, Barbosa e Wilson Simonal, por coincidência negros, e retornou-se ao
jogador que teria sofrido uma bofetada do Obdúlio Varella.
-Bigode. - disse eu.
-Mas ele não recebeu bofetada alguma. - frisou o Luca.
-Eu sei que isso é lenda, Luca.
Nesse instante, Elio fez uma intervenção
de valor inestimável:
-Certa vez, meu pai chamou um técnico de
televisão. Sabem quem apareceu?... o Bigode. Ele queria deixar o futebol no
passado, sem trazê-lo de volta, mas meu pai, muito diplomaticamente, conseguiu
que ele falasse da final da Copa de 50 contra o Uruguai. Bigode contou que
houve xingamentos entre os jogadores, até cusparadas, mas bofetada, nunca.
Luca retomou a palavra com o tom
enfático:
-Sabem quem inventou essa história de
bofetada no Bigode, segundo o Ruy Castro?
E respondeu:
-Mário Filho.
Eu, que há um mês, assistira ao documentário
“Mário Filho” e considerei exagerada a afirmação do Luís Mendes sobre a sua
supremacia como cronista esportivo (seu irmão Nélson, sim, é insuperável),
consolidei ainda mais o meu juízo.
Nessa crônica esclarecedora do Ruy
Castro, que eu leria depois, merece destaque esse trecho: “O perigo é quando
tomamos Mário, o fabuloso cronista, pelo historiador que ele queria ser.” Nesse
perigo não incorreu Nélson Rodrigues, cujo segredo era radiografar a alma dos
jogadores. “Daí porque suas crônicas podem ser lidas e saboreadas hoje, 50 anos
depois...”
Bigode, técnico de televisão... Imaginei
o susto que eu levaria se pegasse o táxi dirigido pelo Escurinho,
ponta-esquerda do Fluminense.
Vale frisar que os kaftas, os tabules,
os quibes, o arroz com lentilhas não atrapalharam o fluxo da conversação.
Agora,
o tema era teatro. Elio aludiu à peça, em cartaz no SESC Ginástico, com Antonio
Fagundes e o filho Bruno.
-A história é verídica. - disse.
E aconselhou a nossa ida ao teatro para
conhecermos o embate entre o consagrado pintor russo do expressionismo abstrato
Mark Rothko e o jovem assistente Ken.
Citei
o que eu lera, um espectador não parava de tossir e o Antonio Fagundes, fugiu
do texto para comentar o quanto ficava sensibilizado com as pessoas que adiam o
hospital para ir ao teatro. Luca se reportou à edição do Biscoito Molhado sobre
a velhinha tossigosa numa récita da Madame Butterfly do Teatro Municipal do Rio
de janeiro. E assim o almoço transcorreu até o final, com muita conversa.
Inacreditavelmente, não se tratou de música popular brasileira. Para o Dieckmann,
imaginei, foi um alívio, mesmo estando à distância, pois Luca e Elio costumam,
não contentes só em falar, em
cantar. E as músicas que entoam são geralmente mais
tristonhas que os lamentos do profeta Jeremias.
Nenhum comentário:
Postar um comentário