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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4205 Data: 09 de
Junho de 2013
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O QUE FLAUBERT TERIA ESCRITO
Disse o grande escritor norte-americano
Mark Twain:
“A diferença entre a palavra exata e a
palavra quase exata é a mesma diferença entre o vaga-lume e o raio.”
Essa frase se coaduna com a busca incessante
de Flaubert pela palavra precisa, Le mot just. Pelo que se diz, ele,
mesmo noivo, se confinou por cinco anos para escrever “Madame Bovary”, romance
publicado em 1857, embora já fosse do conhecimento público por ter saído em
série na revista literária La
Revue de Paris durante dois meses e meio em 1856.
O romance não é volumoso como “Guerra e Paz”, de Tolstoi”, e “Os Miseráveis”,
de Victor Hugo, que ultrapassam as 1000 páginas, “Madame Bovary”, dependendo da
edição, não alcança 300. Por que, então, Flaubert demorou tanto tempo para
escrevê-lo? Por causa da sua busca obsessiva pela palavra precisa, Le mot just. Escreveu ele que “Uma boa
frase em prosa deve ser como um bom verso na
poesia: imutável.”
Nélson Rodrigues, autor prolífico, quando
citava Flaubert, nas suas crônicas, era para falar da comemoração que fazia
quando punha no papel duas frases em 15 dias. Exagero compreensível, porque o
estilo do nosso dramaturgo dostoievskiano era hiperbólico e, muitas vezes,
sarcástico.
Nessa questão de colocar a palavra
errada numa frase, já exemplifiquei, tempos atrás, com o técnico da seleção
brasileira de 1994, na Copa do Mundo nos Estados Unidos, mas não custa repetir
a frase agora. Criticado porque a nossa seleção jogava defensivamente, Carlos
Alberto Parreira disse, numa entrevista, que o gol era um detalhe. As críticas,
naturalmente, recrudesceram ainda mais, e tudo porque ele não usou a palavra
exata: consequência. O gol era uma consequência.
Aquela seleção, que se tornaria campeã
do mundo, não tomava a ofensiva, deixando a defesa com brechas para o inimigo
ocupá-las, por isso, o gol passou a ser a consequência de uma estratégia
cautelosa.
Formado com 23 anos de idade em Educação Física,
estudioso da teoria futebolística, Carlos Alberto Parreira também se dedicava à
pintura e à fotografia, não era, portanto, de cometer erros na sua fala. O
mesmo não acontece, por exemplo, com a apresentadora da TV Globo, Ana Maria
Braga, que apresenta um programa de amenidades que descamba, às vezes, para as
futilidades, tudo entremeado com receitas gastronômicas. Nada contra as
receitas, até o celebrado escritor Alexandre Dumas, que era gourmet e gourmand,
escreveu um livro sobre os ingredientes de diversos quitutes, iguarias e
pitéus. Sem esquecer Rossini, mestre da ópera, que deu nome a suculentos tournedos.
Na verdade, o chef de cuisine Marie-Antoine Carême criou o prato em que
homenageou o grande compositor: “Tournedos Rossini.
Zapeando pelos canais da TV a cabo,
parei por minutos no “Só Você”, porque mostrava uma exibição de artistas
brasileiras em Portugal com a citada apresentadora. Trata-se de um vídeo
tape, pois ao término do mesmo, vê-se a Ana Maria Braga nos estúdios da TV
Globo concluindo sobre o que se viu:
-“A gente volta de Portugal com um
adjetivo: saudade.”
Adjetivo?... Eis um erro substantivo.
Mas cabeças coroadas da cultura europeia cometeram também erros, alguns ainda
maiores do que o erro gramatical acima, se é que existe um estalão para
dimensionar as besteiras ditas e escritas. Temos, então, de voltar ao
perfeccionista Gustave Flaubert.
Depois de escrever “Bouvard e Pécuchet”, dois
desastrados funcionários que se conhecem e passam a estudar e a praticar tudo o
lhes ampliasse o horizonte cultural, acumulando equívocos e incompreensão,
Flaubert se detém em transcrever as asnices que lia e escutava. Infelizmente, a
morte cortou a pretensão metódica e racional do seu trabalho, que já tinha um
título: Dicionário das Ideias Feitas. Ficaram os manuscritos inacabados com o
Catálogo das Ideias Convencionais, alguma delas transcrevemos aqui para mostrar
que mesmo os mestres erravam rotundamente. Lembrando o que escreveu Carlos
Drummond, numa crônica, quando se referiu ao passe que Pelé deu para o
adversário, a poucos metros dele, numa partida, “Também Pelé tem seus momentos
de não Pelé.”
“A água foi feita para sustentar esses
prodigiosos edifícios flutuantes chamados navios.”
Quem mostrou essa fixação pelas
majestosas embarcações marítimas, não vendo outra serventia para o mar, foi
Fénelon. Era um poeta e escritor francês (1651/1715), cujas ideias liberais
contrariram a Igreja e o Estado.
O que diria, então, Flaubert, se
presenciasse a aula de um professor meu de Acondicionamento de Cargas na
Marinha Mercante, ao ouvi-lo dizer extasiado: “Não existe nada mais lindo do
que um navio bem carregado.”?
Alexandre Dumas Filho criou “A Dama das
Camélias”, mas nem sempre esteve inspirado, o que prova esse texto que Flaubert
julgou digno dos seus personagens
Bouvard e Pécuchet:
“A posteridade, a cujo julgamento Goethe
confiou suas obras, fará o que lhe compete, escrevendo no bronze: “Goethe,
nascido em Frankfurt, em 1749, morto em Weimar, em 1832. Grande escritor,
grande poeta, grande artista.” E quando os fanáticos da forma pela forma, da
arte pela arte, do amor acima de tudo e do materialismo, vierem pedir-lhe que
ajunte “Grande Homem”, a posteridade responderá: “Não!”
Lembramos aqui que o filho do autor do
“Conde de Monte Cristo” contrariou Napoleão Bonaparte que, ao se avistar com o
grande artista, em Erfurt, no dia 2 de outubro de 1808, declarou para ser
ouvido por todos: “Eis um homem. Vejam: é um ser humano por inteiro.”
Guy de Maupassant, talvez o maior
contista da literatura universal, discípulo de Flaubert, registrou a
surpreendente capacidade do seu mestre para descobrir, de imediato, as
tolices. E conta que, ao ouvir a frase
que se segue do discurso de recepção ao teatrólogo Eugène Scribe, na Academia
Francesa, Flaubert registrou:
“Revogação do Édito de Nantes, 1685.
Morte de Molière, 1673.”
Eis a frase:
-“A comédia de Molière nos instrui a
respeito dos grandes acontecimentos do século XIV? Diz-nos uma palavra sobre os
erros, as fraquezas ou as faltas cometidas pelo grande rei? Fala-nos da
revogação do Édito de Nantes?”
Com isso, fui levado para anos atrás
quando, no meu trabalho, falei sobre a vida de Tchaikovsky vista por Ken
Russell no filme “Delírio de Amor”. Fui
interrompida por uma colega, com penachos de culta, que disse que Beethoven deu
em cima da mulher de Tchaikovsky.
Flaubert teria escrito: morte de
Beethoven, 1927, nascimento de Tchaikovsky, 1840.
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