O BISCOITO MOLHADO
Edição 4214 Data: 22
de junho de 2013
NA REVOLTA DO
VINTÉM
Esfreguei os olhos, como se não
acreditasse no que via, pessoas de chapéu e bengala, e disse:
-Elio, estamos de volta ao Brasil.
-Não no Brasil de 2013, a não ser que seja
carnaval.
-Com tanto tempo viajando pelo passado,
você se esqueceu que o carnaval se resume, desde o final do século XX, a
escolas de samba, trios elétricos... A criatividade popular se foi.
-Carlos, olhe ali. - apontou.
-Um bonde puxado por burros! -
exclamou.
-Coitados dos burros. - penalizado,
essa foi a minha primeira reação.
-Lembra-me uma crônica do Machado de
Assis que tive de ler no Colégio Militar quando eu estava na turma do corte e
costura.
-Entendo, você foi para turma de corte
e costura atrás das costureiras. - não perdi a piada.
-Nos anos 50, não entravam meninas no
Colégio Militar. - defendeu-se.
-Elio, nessa crônica do Machado de
Assis, dois burros conversam sobre o fim da atividade deles porque seriam
substituídos pelos bondes elétricos; um demonstra otimismo, o outro,
pessimismo.
-O pessimista estava certo, pois não ficaria
ocioso, puxar carroças de lixo seria o destino deles.
-Até que o Governador da Guanabara,
Carlos Lacerda, acabou com essa maldade; burros arrastando carroças de lixo
debaixo de vergastadas a 45º de calor.
Elio, que não gosta do governador, não
disfarçou a contrariedade quando mencionei seu nome, mas logo se refez.
-Fora o vintém. Fora o vintém.
O alarido de uma pequena multidão
convergiu a nossa atenção.
-Carlos, uma passeata.
-Em que ano estamos?... Precisamos
saber, pois essa agitação, pelo que vejo, entrou para a história do Brasil.
Elio foi, imediatamente, atrás de um
menino que vendia jornais e retornou meio esbaforido com um monte de jornais
nas mãos.
-Carlos, ele me deu todos os jornais
dizendo que participar da passeata era o que lhe interessava.
-Se houver barricada e esse garoto
estiver nela, não haverá mais dúvidas: ele é o nosso Gavroche.
-Carlos, hoje é 28 de dezembro de 1879.
- informou-me ao ler o cabeçalho da Gazeta da Noite.
E, prosseguindo na leitura do jornal,
disse:
-O ministro da Fazenda, Afonso Celso de
Assis Figueiredo, aumentou a passagem do bonde para vinte réis, ou seja, para
um vintém.
-Como estamos em 1879, Joaquim Callado
ainda vive, vou gravar uma apresentação do seu grupo de chorões e levar para o
Dieckmann, que precisa conhecer melhor uma das mais representativas
personalidades da música popular. (*)
-Carlos, o Fred Figner não trouxe ainda
o gramofone e o fonógrafo para o Brasil, aliás, as invenções ainda não foram
aperfeiçoadas.
Não
perdi, porém, o entusiasmo:
-Vamos, então, para a passeata, pois
fatalmente encontraremos nela a Chiquinha Gonzaga, uma das mais combativas
representantes da Revolta do Vintém.
-Calma, Carlos, isso não será resolvido
hoje, as manifestações populares irão até o dia 4 de janeiro do ano que vem, ou
seja, 1880.
-Sua mãe, Dona Sarita, lhe ensinou
isso?
-Mamãe ensaiava suas aulas comigo, ela
dizia que, se eu entendesse, seus alunos do Pedro II também entenderiam.
-E você aprendeu direitinho tudo o que
ela lhe ensinou sobre a Revolta do Vintém?
-Esqueci muita coisa, mas sei que o
ministro da Fazenda que citei se tornaria, mais tarde, o Visconde de Ouro
Preto.
-A
São Cristóvão. - gritou alguém com o penacho de líder.
-Por que São Cristóvão se é tão longe?-
intriguei-me.
-Porque lá fica a sede do palácio
imperial. - lembrou-me o Elio.
Enquanto aquela pequena multidão
marchava, nem sempre ordeiramente, para a residência de Dom Pedro II, eu e Elio
esperamos o bonde.
-Temos 40 réis para pagar a passagem?
-Tenho um dólar no bolso e a moeda
americana sempre teve valor no Brasil.
Não foi preciso o Elio tirar a moeda do
bolso, pois negociou antes e, assim, viajamos ao custo de vinte exemplares de
jornal, aqueles que ele recebera gratuitamente do nosso Gavroche.
Na viagem, soubemos que o bonde só
subiria para um vintém no dia 1º de janeiro de 1880.
-Elio, o Mário Henrique Simonsen,
quando ministro do governo Geisel, queixava-se das majorações dos preços na
virada dos anos, chamando isso de inflação gregoriana, mas constata-se que a
coisa é antiga no Brasil.
Meu companheiro de viagem pelo tempo
limitou-se a sorrir.
Chegamos, evidentemente, à Quinta da
Boa Vista bem na frente dos manifestantes. Enquanto aguardávamos, compramos
alguns rebuçados. Elio tirava o papel de um deles para levá-lo a boca, enquanto
eu me detinha na leitura da única edição da Gazeta da Noite que restou conosco.
-Por que você franziu a testa? -
interessou-se.
-Estou lendo um artigo do Lopes Trovão
e ele escreve com uma ênfase de Zola contra o aumento do bonde.
-Ele foi um dos mais destacados
republicanos, minha mãe me ensinou muito antes de o meu professor de História
de História do Colégio Militar se referir
às causas e às consequências da República..
-Lopes Trovão era um dos intelectuais
do grupo integrado por Chiquinha Gonzaga, ou seja, ele não era retrógrado. -
comentei.
Um rumor que vinha de longe e, a cada
minuto, crescia em intensidade abalava São Cristóvão.
-São eles.
E eram muitos, pelo caminho, mais
pessoas engrossaram a marcha dos descontentes. A força policial, alertada,
observava aquela massa humana sem intervir.
Pediram calma e uma voz se levantou sobre
o barulho da massa: era Lopes Trovão que discursava.
O imperador se prontificou a receber os
líderes do protesto, mas Lopes Trovão se recusou a negociar.
-Por que, Carlos?
-Porque Lopes Trovão está vivendo seu
grande momento e vai prolongá-lo por alguns dias, pelo que deduzo.
-E Machado de Assis?...
-A essa hora, ou escreve um conto, uma
crônica, algum soneto, ou um romance. -
respondeu-me.
-Se não estiver jogando xadrez, pois
foi um enxadrista amador também talentoso. - acrescentei.
A multidão se dispersou, com o pedido
do Lopes Trovão, mas a insatisfação, que estava no ar, deixava evidente que o
desfecho não seria pacífico.
Eu e Elio conseguimos nos hospedar numa
casa de pensão, não muita diferente daquela que foi descrita por Arthur
Azevedo, no seu romance, à espera dos acontecimentos.
Na passagem do ano, ouvimos muitos
foguetes, mas também sons suspeitos, que nos pareceram tiros de armas de fogo.
Bem, se o povo estava descontente antes
de pagar um vintém pelo bonde, imagina-se o que aconteceu quando o aumento se
concretizou. Não, não dá para imaginar. Na Rua Uruguaiana, Largo de São
Francisco e arredores, cidadãos pacíficos, aparentemente, se tornaram possessos
pela fúria. Paralelepípedos eram arrancados do chão, depois os trilhos,
condutores dos bondes eram espancados violentamente...
-Carlos, esfaqueiam até os burros.
-O que os pobres dos burros têm com
isso. - revoltei-me.
Mas os manifestantes estavam mais
revoltados do que eu, a polícia avançou sobre eles com truculência fazendo
vibrar sobre o lombo de muitos os seus enormes cassetetes.
-São as “bengalas de Petrópolis”, assim
minha mãe me disse que era como o povo chamava os cassetetes dos policiais.
-Provavelmente, porque Petrópolis era a
cidade de veraneio do imperador.
Mas não pude prosseguir porque quase
escorreguei numa poça onde se misturavam o sangue dos burros e das pessoas.
-Os capoeiristas vieram para cá brigar,
enquanto os arruaceiros para saquear as casas comerciais. - observei, olhando a
agitação ao redor.
-As tropas do Exército chegaram para
controlar a turba enlouquecida.
Mal o Elio disse essas palavras, um
pedra arremessada atingiu em cheio a cara do comandante, o tenente-coronel
Antonio Eneias, primo do Deodoro da Fonseca. Desatinado, ele ordenou aos
soldados que atirassem. Muitos caíram feridos e mortos. No meio da fumaceira da
pólvora, nós reconhecemos o garoto dos jornais. Entre os mortos e os feridos, ele recitava:
-Se um vintém sai da algibeira,
Pobreza vem mais ligeira.
Quem provoca o despautério
É gente do ministério.
Cobre no bolso não tem,
E ainda nos tiram um vintém.
Maltrapilho, eu causo pena.
A culpa é de quem ordena.
E saltando sobre feridos e mortos,
prosseguia:
-É muito suor no rosto
Para pagar tanto imposto.
Tudo fica mais sinistro,
A culpa é desse ministro.
Com a morte raspando por ele, não parava.
-Chove bala em vez de chuva,
Machuca mais que saúva.
O quadro é desolador,
A culpa é do impera...
Uma bala o atingiu no peito, mas o
menino valente ainda conseguiu pronunciar antes de morrer:
- dor...
Os sobreviventes não se deram por
vencidos.
E não foram, de fato, derrotados.
Quando tudo amainou, embora a pólvora ainda fedesse, lemos na Gazeta da Noite,
no dia seguinte, que o reajuste do preço do bonde fora revogado.
-A Revolta do Vintém vai ser notícia
até no The New York Times. - previu o Elio.
E acertou.
Logo depois, o ministério caiu.
(*) O redator
do seu O BISCOITO MOLHADO deve ter levado o celular. Não funcionaria como
telefone, mas sim como filmadora, ou gravador, desde que ele soubesse mexer nos
botões. Até que acabasse a carga da bateria...
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