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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3978 Data: 30 de
junho de 2012
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EU E ELIO NO ÚLTIMO
BAILE DA ILHA
FISCAL
Porra!
Despertei da vertiginosa viagem no tempo
com este brado ressoando nos meus ouvidos. Vi o Elio, meio catatônico ao meu
lado e o sacudi.
-Elio, pelo palavrão que ouvi, estamos
no Brasil.
-Ainda bem. – disse, abrindo os olhos.
Logo, o desalento surgiu na sua
expressão, quando notou as pessoas que passavam pelas ruas do Rio de Janeiro.
-Sim, estamos no Brasil, mas do século
XIX.
-Ora, Elio, pode ser carnaval. - tentei
manter o otimismo.
-As pessoas não usam tanta roupa assim
no carnaval.
-Abaixo o Império! Viva a República! -
gritaram.
-Viajamos de Chicago para o Rio de
Janeiro, mas recuamos 30 anos no tempo. - comentou com desânimo.
-Elio, a República no Brasil não surgiu
do clamor popular. É carnaval. - insisti na minha crença de que estávamos nos
dias momescos de 2012.
-E quando não é carnaval no Brasil?...-
recorreu o Elio à ironia amarga.
Uma folha de jornal que veio voando até
os meus pés, que recolhi para ler, dissipou as minhas dúvidas.
-Elio, estamos no dia 9 de novembro de
1889 e está programada uma festança na Ilha Fiscal. Trata-se de uma homenagem
aos oficiais do navio chileno Almirante Cochrane
-Carlos, dizem isso, mas, na realidade, festejar-se-ão
(*) as bodas de prata da princesa Isabel e do Conde d' Eu. Para o
presidente do conselho de ministros, o Visconde de Ouro Preto, a ocasião veio a
calhar, pois reforçará, segundo o seu pensamento, a posição do Império ante os
conspiradores republicanos.
-Como você sabe disso tudo, Causídico
Verborrágico?
-Não se esqueça, Carlos, que a minha mãe
é professora de história. Dona Sarita me obrigou saber tudo sobre o último
baile da Ilha Fiscal.
-Já que não chegamos ao Rio de Janeiro
de 2012, vamos desfrutar o Rio de Janeiro de 1889. - propus.
-Então, Carlos, vamos às barbearias.
Passamos por inúmeras barbearias, todas
lotadas por convidados ao regabofe da Ilha Fiscal que cortavam os cabelos,
aparavam os bigodes e as barbas.
-Se esperarmos a nossa vez, Elio, só
estaremos de madeixas cortadas depois do fim da folia.
-Vamos, então, espiar os cabeleireiros
das mulheres.
Fomos e nos deparamos com uma agitação
feminina inusitada: os salões estavam tomados de madames e mademoiselles
que buscavam o embelezamento na perícia dos cabeleireiros.
-Carlos, três dias antes da festividade imperial,
todas as vagas nos cabeleireiros já estavam esgotadas.
-Quantos convites foram distribuídos,
Causídico?
-Cinco mil.
-Não vai ser difícil entrar de penetra
nessa festa. - concluí.
-Carlos, eu já entrei de penetra em
festa de 50 pessoas, na minha juventude, em Quintino, mas, agora, trata-se de
um evento que contará com a presença do Imperador Dom Pedro II. O momento
político é tenso e a segurança estará, com toda certeza, atenta a qualquer
suspeito.
-É verdade, Causídico Verborrágico.
-Talvez, eu seja demasiadamente
alarmista.
-Sabe, Elio, aquela frase do filme
Casablanca: “Prendam os suspeitos de sempre”.
-Sei.
-Eu creio que, caso estivesse lá, seria
preso, pois tenho cara de suspeito.
-Você sabe que Dom Pedro II mandou
construir o castelo da Ilha Fiscal em estilo neogótico em 1881?
-Eu sei, Elio, que ele desviou a receita
do ministério da Viação e Obras Públicas, destinada a socorrer os flagelados da
seca do Ceará para custear essa orgia.
Elio prosseguiu sem se manifestar sobre
a minha intervenção:
-Na inauguração, Dom Pedro II, extasiado,
disse que era um delicado estojo digno de uma brilhante joia.
-Pelo que entendi, o estojo é a ilha, e
a joia, o castelo neogótico.
-Carlos, aproxima-se a hora do início do
baile da Ilha Fiscal. Ao mesmo tempo, os republicanos se reunirão no Clube
Militar, sob a presidência do tenente-coronel Benjamin Constant e tramarão a
queda do Império. Para onde você quer ir, Carlos: Ilha Fiscal ou Clube Militar?
-Ilha Fiscal, Causídico. - respondi sem
pestanejar.
Eu e Elio rumamos para a Praça XV e nos
colocamos junto ao embarque dos convidados nos navios vapores. Apesar de muitos
partirem com horas de antecedência para a ilha, o movimento era incessante.
-Carlos, como penetraremos nesta festa?
-Vamos dizer que participamos da
orquestra: você é o violoncelista e eu, o violinista.
-Onde está o meu violoncelo e o seu
violino?
-Diremos, então, que somos os garçons;
eles são sempre bem vindos nessa hora.
E o plano deu certo, embarcamos num
vapor e, minutos depois, pisávamos o chão da ilha que, antes de ser
transformada em posto aduaneiro de navios, era chamada de Ilha dos Ratos.
A visão da Ilha Fiscal, na sua última
festança, era feérica: havia por todo lado ornamentos com balões venezianos,
com lanternas chinesas, vasos franceses e flores brasileiras, sem falar que
moças vestidas de sereias e de fadas recepcionavam os convidados que
desembarcavam.
-Como tem comida, Carlos! - exclamou,
enquanto abocanhava um pedaço de faisão.
-Bastante. - respondi, depois de engolir
uma garfada de camarões.
-Vamos nos manter distantes dos 10 mil
litros de cerveja e das 304 caixas de vinho e de champanhe. - sugeriu.
O fru-fru das saias rodadas e o tilintar
das taças se tornaram, depois de algum tempo, uma cacofonia cansativa, assim,
eu e Elio nos aproximamos de uma das duas orquestras que tocavam.
-Elio, recordo-me quando a Unidos do
Cabuçu desfilou no carnaval do Cachambi com o samba-enredo “O último baile da
Ilha Fiscal”; num trecho, os sambistas cantarolavam a valsa da opereta “Viúva
Alegre”. O problema é que essa valsa foi composta anos depois deste baile.
-Carlos, Chiquinha Gonzaga já compôs
“Atraente”?
-Há muito tempo.
-Pedirei, então, ao maestro para tocar
“Atraente”.
No interior do castelo, outra orquestra
tocava valsas, polcas e mazurcas.
-Olha, Elio, a Princesa Isabel não para
de dançar.
-Ela seria a parceira ideal do pé de
valsa Juscelino Kubitschek. - disse.
-Quem é aquele velho barbudo, sempre
sentado, com a cara de quem acha isto tudo uma chatice.
-Dom Pedro II.
-Olha, Elio, ele se levantou para ir
embora.
-Não passaram dois minutos da 1h da manhã.
- constatou o Elio, olhando para o relógio.
A saída de Dom Pedro II não acabou com o
regabofe, pelo contrário, cresceu em intensidade. Às 5 horas da manhã, com o sol avisando da
sua chegada, os convidados começaram a procurar os navios a vapor que os
levariam de volta. Eu e Elio, movidos mais pela curiosidade do que pela energia
física, passamos a percorrer os trechos da ilha; vimos, pelo chão, perdidos,
cartolas, chapéus, lenços, cigarreiras, cintas-ligas...
-Elio, isto não é um corpete? - indaguei
mostrando-lhe a peça do vestuário feminino que pegara no chão.
-Joga isto fora, Carlos. Vamos procurar
um cachimbo de ópio para viajarmos para o Rio de Janeiro de 2012. (**)
(*) O seu O
BISCOITO MOLHADO dando trabalho de pesquisa. O redator escreveu o verbo no
singular, o que faz sentido, pois a festa das bodas é uma só, mas ficaria
alarmadamente esquisito. O Distribuidor ficou embatucado e recorreu ao
consultor de latim Dieckmann, já citado em edições anteriores por sua
proverbial cultura e conhecimentos generalizados, que vicejam desde passeios na
Lua até rebimbocas de automóveis antigos, tudo isso devidamente registrado
nestas páginas cibernéticas. Muito solícito, o Dieckmann sugeriu que o verbo
fosse escrito no plural, tendo em vista a origem etimológica de bodas (votum -
promessa) e, portanto, ser bastante razoável que se celebrem as bodas ou os
votos, sempre no plural, mesmo que seja um casamento só.
(**) Esse
negócio de jogar longe peças femininas, em vez de tentar achar a dama desnuda é
muito esquisito. Sei lá, talvez seja um ato corriqueiro entre fumadores de
ópio.
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