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sexta-feira, 6 de julho de 2012

2178 - tragadas entre corpetes, lenços e lençóis


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3978                                   Data: 30 de junho de 2012
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EU  E  ELIO  NO  ÚLTIMO  BAILE  DA  ILHA  FISCAL

Porra!
Despertei da vertiginosa viagem no tempo com este brado ressoando nos meus ouvidos. Vi o Elio, meio catatônico ao meu lado e o sacudi.
-Elio, pelo palavrão que ouvi, estamos no Brasil.
-Ainda bem. – disse, abrindo os olhos.
Logo, o desalento surgiu na sua expressão, quando notou as pessoas que passavam pelas ruas do Rio de Janeiro.
-Sim, estamos no Brasil, mas do século XIX.
-Ora, Elio, pode ser carnaval. - tentei manter o otimismo.
-As pessoas não usam tanta roupa assim no carnaval.
-Abaixo o Império! Viva a República! - gritaram.
-Viajamos de Chicago para o Rio de Janeiro, mas recuamos 30 anos no tempo. - comentou com desânimo.
-Elio, a República no Brasil não surgiu do clamor popular. É carnaval. - insisti na minha crença de que estávamos nos dias momescos de 2012.
-E quando não é carnaval no Brasil?...- recorreu o Elio à ironia amarga.
Uma folha de jornal que veio voando até os meus pés, que recolhi para ler, dissipou as minhas dúvidas.
-Elio, estamos no dia 9 de novembro de 1889 e está programada uma festança na Ilha Fiscal. Trata-se de uma homenagem aos oficiais do navio chileno Almirante Cochrane
-Carlos, dizem isso, mas, na realidade, festejar-se-ão (*) as bodas de prata da princesa Isabel e do Conde d' Eu. Para o presidente do conselho de ministros, o Visconde de Ouro Preto, a ocasião veio a calhar, pois reforçará, segundo o seu pensamento, a posição do Império ante os conspiradores republicanos.
-Como você sabe disso tudo, Causídico Verborrágico?
-Não se esqueça, Carlos, que a minha mãe é professora de história. Dona Sarita me obrigou saber tudo sobre o último baile da Ilha Fiscal.
-Já que não chegamos ao Rio de Janeiro de 2012, vamos desfrutar o Rio de Janeiro de 1889. - propus.
-Então, Carlos, vamos às barbearias.
Passamos por inúmeras barbearias, todas lotadas por convidados ao regabofe da Ilha Fiscal que cortavam os cabelos, aparavam os bigodes e as barbas.
-Se esperarmos a nossa vez, Elio, só estaremos de madeixas cortadas depois do fim da folia.
-Vamos, então, espiar os cabeleireiros das mulheres.
Fomos e nos deparamos com uma agitação feminina inusitada: os salões estavam tomados de madames e mademoiselles que buscavam o embelezamento na perícia dos cabeleireiros.
-Carlos, três dias antes da festividade imperial, todas as vagas nos cabeleireiros já estavam esgotadas.
-Quantos convites foram distribuídos, Causídico?
-Cinco mil.
-Não vai ser difícil entrar de penetra nessa festa. - concluí.
-Carlos, eu já entrei de penetra em festa de 50 pessoas, na minha juventude, em Quintino, mas, agora, trata-se de um evento que contará com a presença do Imperador Dom Pedro II. O momento político é tenso e a segurança estará, com toda certeza, atenta a qualquer suspeito.
-É verdade, Causídico Verborrágico.
-Talvez, eu seja demasiadamente alarmista.
-Sabe, Elio, aquela frase do filme Casablanca: “Prendam os suspeitos de sempre”.
-Sei.
-Eu creio que, caso estivesse lá, seria preso, pois tenho cara de suspeito.
-Você sabe que Dom Pedro II mandou construir o castelo da Ilha Fiscal em estilo neogótico em 1881?
-Eu sei, Elio, que ele desviou a receita do ministério da Viação e Obras Públicas, destinada a socorrer os flagelados da seca do Ceará para custear essa orgia. 
Elio prosseguiu sem se manifestar sobre a minha intervenção:
-Na inauguração, Dom Pedro II, extasiado, disse que era um delicado estojo digno de uma brilhante joia.
-Pelo que entendi, o estojo é a ilha, e a joia, o castelo neogótico.
-Carlos, aproxima-se a hora do início do baile da Ilha Fiscal. Ao mesmo tempo, os republicanos se reunirão no Clube Militar, sob a presidência do tenente-coronel Benjamin Constant e tramarão a queda do Império. Para onde você quer ir, Carlos: Ilha Fiscal ou Clube Militar?
-Ilha Fiscal, Causídico. - respondi sem pestanejar.
Eu e Elio rumamos para a Praça XV e nos colocamos junto ao embarque dos convidados nos navios vapores. Apesar de muitos partirem com horas de antecedência para a ilha, o movimento era incessante.
-Carlos, como penetraremos nesta festa?
-Vamos dizer que participamos da orquestra: você é o violoncelista e eu, o violinista.
-Onde está o meu violoncelo e o seu violino?
-Diremos, então, que somos os garçons; eles são sempre bem vindos nessa hora.
E o plano deu certo, embarcamos num vapor e, minutos depois, pisávamos o chão da ilha que, antes de ser transformada em posto aduaneiro de navios, era chamada de Ilha dos Ratos.
A visão da Ilha Fiscal, na sua última festança, era feérica: havia por todo lado ornamentos com balões venezianos, com lanternas chinesas, vasos franceses e flores brasileiras, sem falar que moças vestidas de sereias e de fadas recepcionavam os convidados que desembarcavam.
-Como tem comida, Carlos! - exclamou, enquanto abocanhava um pedaço de faisão.
-Bastante. - respondi, depois de engolir uma garfada de camarões.
-Vamos nos manter distantes dos 10 mil litros de cerveja e das 304 caixas de vinho e de champanhe. - sugeriu.
O fru-fru das saias rodadas e o tilintar das taças se tornaram, depois de algum tempo, uma cacofonia cansativa, assim, eu e Elio nos aproximamos de uma das duas orquestras que tocavam.
-Elio, recordo-me quando a Unidos do Cabuçu desfilou no carnaval do Cachambi com o samba-enredo “O último baile da Ilha Fiscal”; num trecho, os sambistas cantarolavam a valsa da opereta “Viúva Alegre”. O problema é que essa valsa foi composta anos depois deste baile.
-Carlos, Chiquinha Gonzaga já compôs “Atraente”?
-Há muito tempo.
-Pedirei, então, ao maestro para tocar “Atraente”.
No interior do castelo, outra orquestra tocava valsas, polcas e mazurcas.
-Olha, Elio, a Princesa Isabel não para de dançar.
-Ela seria a parceira ideal do pé de valsa Juscelino Kubitschek. - disse.
-Quem é aquele velho barbudo, sempre sentado, com a cara de quem acha isto tudo uma chatice.
-Dom Pedro II.
-Olha, Elio, ele se levantou para ir embora.
-Não passaram dois minutos da 1h da manhã. - constatou o Elio, olhando para o relógio.
A saída de Dom Pedro II não acabou com o regabofe, pelo contrário, cresceu em intensidade.  Às 5 horas da manhã, com o sol avisando da sua chegada, os convidados começaram a procurar os navios a vapor que os levariam de volta. Eu e Elio, movidos mais pela curiosidade do que pela energia física, passamos a percorrer os trechos da ilha; vimos, pelo chão, perdidos, cartolas, chapéus, lenços, cigarreiras, cintas-ligas...
-Elio, isto não é um corpete? - indaguei mostrando-lhe a peça do vestuário feminino que pegara no chão.
-Joga isto fora, Carlos. Vamos procurar um cachimbo de ópio para viajarmos para o Rio de Janeiro de 2012. (**)

(*) O seu O BISCOITO MOLHADO dando trabalho de pesquisa. O redator escreveu o verbo no singular, o que faz sentido, pois a festa das bodas é uma só, mas ficaria alarmadamente esquisito. O Distribuidor ficou embatucado e recorreu ao consultor de latim Dieckmann, já citado em edições anteriores por sua proverbial cultura e conhecimentos generalizados, que vicejam desde passeios na Lua até rebimbocas de automóveis antigos, tudo isso devidamente registrado nestas páginas cibernéticas. Muito solícito, o Dieckmann sugeriu que o verbo fosse escrito no plural, tendo em vista a origem etimológica de bodas (votum - promessa) e, portanto, ser bastante razoável que se celebrem as bodas ou os votos, sempre no plural, mesmo que seja um casamento só.

(**) Esse negócio de jogar longe peças femininas, em vez de tentar achar a dama desnuda é muito esquisito. Sei lá, talvez seja um ato corriqueiro entre fumadores de ópio.
 

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