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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5219 Data: 28 de outubro de
2015
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SABADOIDO (continuação)
-E a Yoná Magalhães morreu...
-A fila tem de andar, Carlinhos. - enveredou a Gina
pelo humor negro.
-Acho que me espantei mais com a idade dela, oitenta
anos, do que com a sua morte propriamente dita. – confessei.
-Como dizia o Seu Renato: “Só eu que fico velho?” –
reportou-se meu irmão a um vizinho da Rua Chaves Pinheiro, indignado porque
diminuíram a idade do craque do Cruzeiro, Tostão, valorizando-o.
-Para mim, ela se cristalizou nos cinquenta anos de
idade, quando saiu nua na Playboy, esplendorosa, sem um retoque sequer,
garantem os que trabalharam nas fotografias.
-Isso foi em 1985, Carlinhos, quando ela atuava no
Roque Santeiro. - disse meu irmão.
-Ela já estava encarquilhada. - comentou a Gina
ferinamente.
-Eu não vejo novelas, Gina; a última novela que
acompanhei do princípio ao fim foi “Guerra dos Sexos”, em 1983 e vi alguns
capítulos do “Vereda Tropical”, também nesse ano. De lá pra cá, só assisti a
umas cinco ou seis minisséries, algumas excelentes como “Os Maias” e “Agosto”.
Como a Yoná Magalhães não atuou em nenhuma dessas minisséries, eu a perdi de
vista desde 1985.
-Ela trabalhou, em 2013, na novela “Sangue Bom”, já
bem enrugadinha. - voltou a Gina à carga.
-Ótimo; a imagem dela que me ficou foi a do auge da
beleza.
-Digamos: no crepúsculo da beleza. - interveio meu
irmão.
-Recebo, às vezes, por e-mail, retratos das deusas do
cinema na época do apogeu e depois de passados uns trinta anos. Sinto um travo
de desgosto nessas comparações. (E fui mais extremado). Eu não vejo pessoas
queridas mortas para que fique na minha mente a imagem delas vivas.
-Então, você não visita uma pessoa nem quando ela está
doente?- criticou-me a Gina.
-Carlão – explodiu a voz do Daniel, com as vistas
ainda no seu smartphone – Que botafoguense sem vergonha que você é!...
Fala do aniversário do Pelé, e nada diz do Garrincha, que faz anos no dia 28 de
outubro.
-Você vê, Daniel, que os maiores craques do futebol
nasceram no mês de outubro. - brinquei.
-Garrincha nasceu no dia do Funcionário Público.
-Dia de São Judas Tadeu. - lembrou a Gina que, logo em
seguida, se voltou para mim.
-Vai trabalhar?
-Transferiram o feriado para 1º de novembro.
-Trabalhar é força de expressão. - pilheriou o
Claudio.
-É... os funcionários públicos têm essa imagem. Muitos
que entraram, no último concurso, no meu serviço, gente capacitada, pois as
provas foram bem complexas, imaginaram que, agora, ficariam de papo para o ar.
-E não ficaram?... - interessou-se meu irmão.
-Durante um tempo, os mais malandros até ficaram, mas
entrou em vigor uma disciplina militar e eles tiveram de se enquadrar. Facebook
e You Tube só não é bloqueado de meio-dia e vinte às quatorze
horas; quarenta horas de trabalho semanais são averiguados, com rigor, no ponto
eletrônico...
-Essa história de ponto eletrônico é o “me engana que
eu gosto”, porque um bate pelo outro. - manifestou-se minha cunhada.
-Na época da nossa anarquia foi assim, mas agora, não.
Se um servidor for pego marcando a chegada do outro ao trabalho ou a vinda do
almoço, os dois vão ter de se explicar na corregedoria. Se não completar
quarenta horas mensais sem justificativa comprovada, vêm os descontos nos
salários.
-Carlinhos, como é Caxias, gosta.
-Claudio, eu não gosto é de multar uma empresa de
navegação porque não avisou, no prazo de trinta dias, que houve mudança de
endereço, que houve alteração no contrato social, conforme exigência da nossa legislação.
Não gosto porque, num país em que as autoridades se usufruem de desvios de
milhões e ficam impunes, eu me sinto meio esquizofrênico em multar porque não
observaram trinta dias para avisar uma coisa que não vai prejudicar ninguém.
-Mas é você que multa, Carlão?
-Não. Mas tenho de indicar a irregularidade e o valor
da multa para que um funcionário acima de mim decida.
-Com essa crise, é mesmo chato sair multando por aí,
porque muitas empresas estão sentindo o baque e elas empregam as pessoas. - ponderou
meu irmão.
-Eu já disse que estou lendo “Crime e Castigo” do Dostoievski...
-Ainda?...
-Já li mais de quinhentas páginas, faltam menos de
trinta. Siydrigailov já se matou... Mas deixem-me continuar se não perco a
linha do raciocínio.
-Continua, Carlão.
-Numa das notas de rodapé do livro, o tradutor explica
que, antes de 1917, o serviço público na Rússia seguia a hierarquia militar;
havia, para exemplificar, servidores públicos tratados por coronel.
-Você, Carlão, seria um coronel, se o mesmo método
fosse utilizado no Brasil?
-Daniel, eu seria, digamos, um tenente. E já está
muito bom assim. Prefiro a disciplina à anarquia, mas não gosto de mandar.
-Carlão prefere obedecer a mandar.
-Acertou, Daniel, mas não obedecer cegamente.
-Você já leu o Globo de hoje, Carlinhos?
Após a minha resposta negativa, meu irmão prosseguiu:
-Um russo de 98 anos de idade... Está aí no caderno
Prosa que foi engolido pelo segundo caderno do Globo. - indicou com a cabeça o
jornal.
-Já descobri – disse com o Globo nas mãos – Boris
Schnaiderman, pioneiro na divulgação da literatura russa no Brasil.
-Ele diz que traduziu as obras do Dostoievski para a
nossa língua, mas, teve, mais tarde, de voltar a essas tradições porque os
revisores brasileiros passaram tudo para o português castiço e o Dostoievski
escrevia num russo coloquial.
-Claudio, nessa edição da Prefeitura do “Crime e
Castigo”, que estou lendo, o tradutor, que faz a transliteração diretamente do
russo para o nosso idioma, coloca várias notas sobre o estilo pouco formal do
escritor. Ele diz que Dostoievski usava, algumas vezes, duas conjunções
adversativas juntas -”mas todavia ele foi até lá” - misturava os tratamentos da
segunda pessoa do singular e da terceira - “tu e você” - e por aí vai.
-Na realidade, as pessoas falam assim mesmo. -
acentuou meu irmão.
-Como Dostoievski foi o escritor de primeira grandeza,
ele e Gogol, a trazer os pobres miseráveis para a literatura, eles não poderiam
falar mesmo como universitários de Harvard.
-Como universitários de Harvard, eles falariam inglês,
Carlão. - aproveitou o Daniel a deixa para mais uma piada.
-Daniel, daqui a pouco estaremos saindo para almoçar.
- alertou-o a Gina.
-Vou ao estacionamento ver se o meu carro dormiu bem.
Colocou o smartphone no bolso e saiu.
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