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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5205 Data: 07 de
outubro de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XLIX
ATROPELAMENTO
(03) – Depois de as pessoas
constatarem que eu estava vivo, conversavam durante algum tempo e saíam para
dar tratar dos seus afazeres. Eu estava vivo e com fome. Havia almoçado, nesse
dia 5 de março de 1986 no Rick, lanchonete do empresário Ricardo Amaral, da
Praça Monte Castelo. Faltaram arroz e feijão naquele prato – o cereal e a
leguminosa que me deixavam satisfeito – e eu pretendia compensar esse vazio
enchendo o meu prato na janta. Mas os acontecimentos dramáticos impediram que
se cozinhasse alguma coisa para o jantar, em casa e eu tive de devorar um saco
de biscoito, que estava pele metade. Nem erguendo esse saco, como se um copo
fosse, para beber o farelo, adiantou. Maldisse o meu almoço frugal, sem pensar
que ser atropelado com a barriga vazia provoca menos danos ao organismo.
Meu irmão Claudio se escalou, ou foi escalado, não me
recordo bem, para dormir no meu quarto. Era aconselhável que eu não passasse a
noite sem ninguém junto de mim. Na manhã seguinte, ele afirmava que viu uma das
maiores armas anatômicas da vida dele; referia-se a um vizinho, morador do
prédio da cooperativa da Aeronáutica, localizado na Rua Cachambi, em que alguns
apartamentos ficavam devassados para o meu quarto. Será que ele viu mesmo, ou era
mais uma das suas brincadeiras? Eu nunca havia visto nada, embora, ao contrário
dele, tinha pouco a ver com aquele personagem vivido pelo James Stewart no
filme de Alfred Hitchcock.
Mas a fita de cinema que eu sentia na carne era,
infelizmente, outro, lançado pouco tempo atrás: “O Dia Seguinte”. Minha Nossa
Senhora! Parecia que eu havia subido no ringue para enfrentar Roberto Duran Mano
de Piedra; doía-me todo o corpo. Ficou estabelecido, então, que o meu cunhado
me levaria, no seu táxi, ao Hospital dos Italianos, no Grajaú, que tinha
convênio com o meu plano de saúde. Desci o único lanço de escada do prédio
amparado por ele; cada movimento que eu fazia era uma tortura. Finalmente, fui
colocado no seu carro e conduzido para a Rua Marechal Jofre.
Aquela pessoa que, horas antes, segundo o meu
atropelador, entrara andando normalmente no Hospital Salgado Filho, não podia,
agora, andar. A dor cruciante me deixava bem consciente de tudo o que ocorria
ao meu redor. Um enfermeiro me trouxe uma cadeira de roda e eu fui conduzido até
um médico. O doutor, ao me ver, declarou que eu ficaria internado, mas, antes,
eu tinha de passar por uma bateria de radiografias. E lá fui eu ser
radiografado mais uma vez.
Depois de examinar as chapas, o médico me disse que eu
não sofrera fratura alguma. Citei a fratura do meu ísquio, conforme informação
do Salgado Filho. Não, não havia fratura alguma – assegurou. Escreveu duas ou
três receitas com garranchos que só os profissionais da sua classe e os
farmacêuticos entendem e não tocou no assunto internação. Apesar da dor, senti
um grande alívio.
Não me recordo de ter sofrido a mesma agonia na viagem
de volta para casa, talvez porque algum remédio que me foi ministrado lá já
fizesse efeito, além do fato de ser bem melhor para o emocional sair do
hospital do que ir para ele.
No entanto, a dor na coxa da perna direita não
cessava. A pancada do carro se deu nela e o padecimento persistiu por dezesseis
dias contados pelos dedos.
Claudio foi tratar do meu pedido de licença no
trabalho, para isso, teve de tratar do boletim de ocorrência na delegacia.
Arnaldo, Glória e Ana Luísa, três colegas de trabalho, vieram me visitar.
Disseram elas que o Arnaldo fizera tantas papagaiadas no metrô, que eu lamentei
não estar entre eles.
O atropelador era um visitante assíduo; contou-me a
sua odisseia: o para-brisa do Passat se espatifara, com o choque, que ele teve
de ser atendido, depois, no Salgado Filho, pois a sua cabeça estava tomada de
caquinhos de vidro que foram retirados com uma pinça na enfermaria.
De noite, minha irmã veio com as duas filhas, de
Niterói, para mais uma visita. Em dado momento, pegaram os binóculos do meu pai
e eu tive de dividir as atenções com o Cometa de Halley, mesmo com a decepção
que foi essa sua passagem, bem diferente da que ocorrera em 1910, quando o
poeta Carlos Drummond de Andrade lembrou, nas suas crônicas, que se falou até
no fim do mundo. O Cometa de Halley de 1986 era apenas um ponto luminoso o que
não impediu a minha sobrinha Verônica de pedir, ansiosa, os binóculos para ver
a cauda do cometa. Com 5 anos de idade, ela estava sugestionada pelo “Lindo
Balão Azul” da Turma do Balão Mágico.
Luca e Vagner pareceram, também numa noite, para me
ver. Luca me pediu o número da placa, pois seria um promissor palpite para o
jogo do bicho. Mas o meu encontro com o
Passat foi tão rápido que nem a sua cor eu vi, só conhecia a marca porque assim
foi dito.
Além do dolorido nos quadríceps, a minha virilha
direita, se não me engano, se distendera. Com as informações colhidas, eu deduzi
o que acontecera comigo segundos antes e depois do meu apagão. No momento em
que eu corri para a calçada, o Méier-Maria da Graça, seguiu para a Rua Chaves
Pinheiro e os motoristas dos veículos daquela pista da Suburbana que tiveram a
visão prejudicada, pela sua posição enviesada, seguiram adiante, foi quando,
repentinamente, eu surgi diante do Passat. Com a trombada na minha perna, eu subi,
abri o compasso (como dizia o locutor de futebol Oduvaldo Cozzi, daí a
distensão na virilha) fui de encontro ao para-brisa, rolei pelo capô do carro e
caí no asfalto desacordado. Uma moça, que buscara o filho da escola, ao se
deparar com essa cena, a poucos metros dela, saltou um grito de horror. Talvez,
ela e o filho pensem, até hoje, que eu não escapei com vida.
Os curativos das minhas feridas, durante os primeiros
dias eram diários, e a Gina, minha cunhada, com a acurácia de uma enfermeira,
resolvia esse assunto, sempre sob os olhares curiosos do Daniel, na época, com
3 anos de idade.
Eu costumava comprar ovos de páscoa para os meus
sobrinhos, por isso, cismei de, na terceira semana desse mês de março, ir até
meu trabalho e de lá. às Lojas Americanas da Rua Uruguaiana fazer as compras. Claudio
foi comigo. A espera, a viagem de ônibus, a multidão, a barulheira, tudo mexia
com os meus nervos em frangalhos, eu não estava em condições, ainda, de
retornar ao trabalho. Revi os amigos, comprei os presentes achocolatados e retornei
para casa. Meu prazo de licença teve de ser prorrogado por mais 15 dias.
Fui obrigado a ir ao 23º DP prestar depoimento sobre o
meu atropelamento. Lá, topei com inspetor apressado, que não queria deixar nada
pendente no seu último dia antes das férias, como me revelou. Depois de olhar com desdém o polícia, carente
de pensamento sadio, que aventou a hipótese de eu ter pulado do ônibus andando
para não pagar a passagem, voltei-me para o inspetor e narrei tudo o que
acontecera, isentando o motorista do Passat de qualquer culpa. Eu falava e ele
datilografava. Depois, entregou-me o papel para eu assinar. Como os muitos
erros não comprometiam ninguém, assinei.
O atropelador desapareceu após o meu depoimento, nunca
mais soube dele. Nem quis saber da missa pela minha segunda vida, pretendida
pela minha mãe, que, por sinal, não aconteceu.
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