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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5210 Data: 14 de
outubro de 2015
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124ª VISITA À MINHA CASA
-Custódio Mesquita, você deveria ter me visitado em
2010, ano do seu centenário.
-Mas vim para o centenário do Orlando Silva.
-Ele gravou muitas criações suas.
-Sim; Eu vou lhe narrar uma história, que foi muito
contada pelo Mário Lago na sua vida bem mais longa do que a minha. Nas nossas
peças, nós reservávamos, gratuitamente, um camarote para a Dona Balbina. Quem
era a Dona Balbina?... A mãe do Orlando Silva, que sempre levava com ela o
filho, que escolhia as músicas que mais o deleitavam para gravar.
-O Orlando Silva dizia que, depois da morte da mãe,
nunca conseguiu cantar mais “Rosa”, de Pixinguinha, porque era a música de que ela
mais gostava.
-A letra do Otávio de Souza, naquele estilo barroco,
não é grandes coisas, mas a música do Pixinguinha... Que beleza! Mas Dona
Balbina gostava muito das minhas composições com o Mário Lago.
-Custódio Mesquita, você pertenceu a uma família rica.
-Apesar de meu pai, que era comerciante, ter morrido
jovem – eu tinha 4 anos de idade – deixou a minha mãe bem financeiramente
falando.
-Ela o queria um pianista de músicas eruditas e um
estudante de boas notas na escola.
-Esses grilhões que represavam a minha energia... Eram
muitos, e lutei contra eles.
-Para conter a sua indisciplina, ele o tornou
escoteiro do Fluminense Futebol Clube. Não deu certo, eu sei, você devaneava
muito para ficar sempre alerta.
-Mas não foi de todo mal, pois, no corpo de escoteiros,
aprendi a tocar tambor, o que, mais tarde, me levaria a instrumentista de
bateria. Fui um ótimo baterista. Um dia, minha mãe me surpreendeu, com um
conjunto que se apresentava no Cinema Central, tocando bateria.
-Você estava matando aula?
-Cabulando, gazeteando, enforcando... era tudo isso.
-A sua mãe investiu, mais ainda, no seu talento para a
música?
-Sim, mas como você disse, antes, ela me queria como
concertista de piano e eu não tinha paciência para treinar, durante horas,
escalas. Você conhece a peça para dois pianos e orquestra “O Carnaval dos
Animais”, de Saint Saens?
-Claro.
-Entre os animais carnavalescos, ele colocou os alunos
de pianos, que são representados por escalas, cada um terminando com um
estrondo na repercussão, a coda, que
devia ser a fúria dos professores.
-Então, você desprezou as partituras?
-Desprezei, tocava de ouvido.
-Ainda assim, não havia quem negasse o seu
extraordinário talento musical.
-Houve um músico que se recusou a atuar numa orquestra
dirigida por um pianista que tocasse “de ouvido”, mas isso não impediu que eu
obtivesse meu diploma de regente.
-Você já compunha?
-A minha composição é de 1930, eu estava, portanto,
com 20 anos de idade. Era um samba-canção, mas só se tornou disco dois anos
após, quando o Sílvio Caldas gravou. Ele também fez gravações de dois foxtrotes
meus, o gênero musical em que eu transitava com mais facilidade.
-Fizeram sucesso?
-Sucesso mesmo, eu obtive em 1933, na voz da Aurora
Miranda, com a marchinha “Se a Lua Contasse”. Não só fiquei conhecido em todo o
Brasil, como até no exterior. Fiz até uma temporada, em 1936, pela Argentina, e
eles, lá, me pediam para tocar “Se a Lua Contasse”.
-Como foram os seus primeiros anos como profissional
da música?
-Eu toquei na Rádio Clube do Brasil, na Rádio Philips,
na Rádio Mayrink Veiga e em escolas de danças. Eu era um pianista de respeito.
-E a sua mãe?
-Eu não tocava Chopin, mas toquei muito Ernesto
Nazareth, por quem eu nutria uma admiração extrema. Gravei, com orquestra,
inúmeros choros e valsas dele.
E prosseguiu:
-É sabido que Ernesto Nazareth, quando se avistou com
o legendário concertista, Arthur Rubinstein, sentou-se ao piano e se pôs a
tocar Chopin. Era como rezar o Pai Nosso para o Papa, Arthur Rubinstein queria
ouvir as músicas de Ernesto Nazareth.
-É claro; a sensibilidade artística do concertista
queria músicas novas para os seus ouvidos, como foram as de Villa Lobos, que
ele gravaria. - assinalei.
-Quando eu precisava relaxar os nervos, sentava ao
piano e tocava Nazareth.
-Custódio, como você entrou no ambiente do teatro?
-Meu parceiro e amigo, Mário Lago, me levou. No
teatro, escrevi e musiquei, sozinho ou com parceiros, umas trinta peças.
-Você também foi ator?
-Não foi só o Mário Lago que atuou, eu também atuei.
Fui ator de teatro e de cinema.
-Você também contracenou com o Grande Otelo, não foi
isso?
-Em 1943, no filme “Moleque Tião”, em que fiz o papel
de galã, a trilha sonora era minha. Estreei no cinema em 1935, com “Alô, Alô,
Brasil”, e, em 1938, atuei em “Mesquitinha”.
-E o seu maior sucesso no teatro como ator?
-Creio que foi no papel de Dom Pedro I na peça
“Carlota Joaquina”.
-Essas incursões não prejudicavam a sua carreira
musical?
-Não; não impediu que eu compusesse, com libreto do
Sadi Cabral, a opereta “A Bandeirante”, que foi encenada em 1938.
-Você era bonito, tinha 1,80cm de estatura...
-Mas o que diziam de mim, eu sei, era eu ser esquisito,
até mesmo vaidoso.
-Contam que o Orestes Barbosa, ao vê-lo passar com o
Mário Lago, comentou com amigos: “Lá vai o Narciso com o seu lago.”
Ignorou o chiste espirituoso e disse:
-Consideravam-me esquisito porque eu não frequentava
os locais dos meus pares: Lapa, Praça Tiradentes, Café Papagaio, Café Nice. Eu
gostava era de passeios pela madrugada, conversar, nessas caminhadas, tanto com
intelectuais como com mendigos. Mesmo casado e com filho, não abri mão de
chegar de madrugada à minha casa.
-Você foi casada com a atriz Alda Garrido?
-Não deu certo. Casei, depois, em 1942, com Helene
Moukhine.
-Sobre a sua vaidade, falam que o secretário do Francisco
Alves, o Rei da Voz, o procurou com um recado do seu patrão, na Galeria
Cruzeiro...
Interrompeu-me, requentando a sua indignação:
-O Francisco Alves queria que eu fosse até a casa dele
e lhe mostrasse composições, pois iria lançar um disco novo. Disse ao seu
secretário que o Francisco Alves é que viesse à minha casa, Rua Ipiranga, 32. A
distância era a mesma.
-A sua saúde não era boa, por isso você se foi tão
cedo, aos 35 anos de idade.
-Eu era epiléptico, mas ninguém me viu tendo
convulsões; sofria de tuberculose; mas os males hepáticos acabaram de vez
comigo.
-Ficou sem os passeios pela madrugada.
-No hospital, os médicos queriam tanto que eu
repousasse, que não me deram papel para escrever; ainda assim, compus melodias
escrevendo nos espaços vazios dos jornais.
Não lhe disse que essas melodias se perderam para não entristecê-lo
no momento em que deixava à minha casa.
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