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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5220 Data: 30 de outubro de
2015
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NA ACADEMIA
DA TERCEIRA IDADE
Exercitando-me na academia da terceira idade, antes do
nascer do sol, (atualizando a frase do Nélson Rodrigues) eu me sinto mais só que
Robinson Crusoé sem celular. Antes, havia o Jessé; eu o via desde a época em
que eu caminhava na rua, no estacionamento do Shopping Nova América, por aí,
enfim. Numa dessas caminhadas pela rua, abordou-me pela primeira vez
perguntando se poderia me acompanhar. Bem, correndo ou caminhando, nunca sofri
de solidão, pelo contrário, eu a prefiro; respondi-lhe que o meu itinerário era
completamente doido, ele percebeu a minha má vontade e reagiu com brusquidão:
“Faça o que você achar melhor”.
Com a implantação da academia da terceira idade na
Praça Manet, em Del Castilho, dois meses antes das eleições de 2014,
acrescentei às minhas caminhadas exercícios físicos propiciados pelos aparelhos
que lá estão. Foi quando me baixou a necessidade de ter alguém próximo para
conversar e, assim, pôr para correr o tédio que eu sentia naqueles simuladores
de esqui e de caminhada. Então ele, que mora em Maria da Graça, soube da
novidade e apareceu lá. Como é mais gregário do que eu, reaproximou-se de mim
e, depois de tantos anos nos avistando, na hora da passagem da noite para o
dia, soube que se chamava Jessé e ele que eu era o Carlos. Tornamo-nos
companheiros de ginástica, parceiros como os jovens dizem.
Jessé não era idoso, tinha 54 anos, e, praticante de
exercícios físicos desde muito tempo, era vigoroso. Às vezes, eu me portava
como um guru e ele aceitava o papel de Gafanhoto; quando lhe disse que o aparelho
de equilíbrio era ótimo para o cerebelo, a região do cérebro que regula a nossa
psicomotricidade, ele, que só se preocupava com os músculos e os sistemas
cardiovascular e cardiorrespiratório, passou a se equilibrar.
Quando estávamos nos simuladores, conversávamos tanto
que, quando eu olhava o relógio, já havia passado 30 minutos e eu lhe
confessava que, sozinho, não chegaria aos 15 minutos por causa do fastio de
estar só. Ele era, podemos dizer, o meu amigo da madrugada. Assinale-se que
esses encontros se davam aos sábados, domingos e feriados por causa da minha
ida ao trabalho antes das 5h 30min da manhã. Nos dias úteis, eu aparecia lá
antes dos pores de sol, mas, então, era o Jessé que ainda se encontrava no seu
trabalho.
Num fim de semana, Jessé não pareceu na hora
costumeira. No fim da semana seguinte, surgiu meio combalido e me explicou o
porquê: caíra no boxe do banheiro do seu serviço, enquanto tomava banho. Mesmo
sentindo dores, tentou alguns exercícios até se dar por vencido. Disse-me que
fora orientado pelo médico a fazer uma ressonância magnética, obedeceu, e,
depois, quando reapareceu, e lhe perguntei pelo resultado, fez uma careta e deu
três giros de 180º com a mão direita: “mais ou menos”.
Isso se deu por volta de novembro do ano passado, em
seguida, Jessé sumiu. Nos primeiros meses de 2015, nada de ele ressurgir e eu
me sentia como Robinson Crusoé sem o Sexta-feira e sem o celular (lembram-se da
atualização da frase do Nélson Rodrigues?).
Será que deu zebra na sua cirurgia de próstata? –
perguntava-me. Um dia, nesses interessantes diálogos sobre o simulador de
esqui, ele me comunicou que seria submetido em janeiro de 2015 a uma operação
da próstata, nada arriscado, pois se tratava apenas de uma prostatite que
requeria apenas raspagem.
Por volta do mês de março deste ano, saindo para o
trabalho, vislumbrei, na madrugada, um vulto na academia da terceira idade: era
o Jessé. A operação da próstata?... Tudo correu bem, respondeu-me, o problema
que ocasionou o seu sumiço foi uma depressão, já vencida e um assalto que sofreu.
Agora, voltaria aos exercícios físicos, na Praça Manet, como antes. Mentia, provavelmente, para si próprio, pois
as suas aparições se tornaram raras.
Em um domingo, no meio de vários aparelhos que
acionava, me contou o seu drama: sair de Maria da Graça e morar no Flamengo.
Vivia desde garoto em Maria da Graça, numa casa com quintal onde cultiva
árvores frutíferas e cachorros, mas a mulher dele insiste na mudança para a
zona sul. Sofria com essa situação. Animei-o dizendo que, algumas vezes, em
priscas eras, eu pegava o 298, saltava na Rua Santa Luzia, andava até o Aterro
do Flamengo e corria na pista de Cooper que lá existe. Sim, para correr, o
Flamengo não seria nada mal, mas ainda assim, ele não estava convencido com
essa mudança e me comunicou que iria conversar muito seriamente com a esposa.
Bem, parece que ela saiu vitoriosa, pois desde então, uns 4 meses, por aí, não
avistei mais o Jessé.
Voltei a ser mudo e só na rocha de granito, como no
verso do poema “Dom João” de Guerra Junqueiro. Assim, restringia-me, às vezes,
apenas à caminhada que, como registrei mais acima, o enfado não me atinge, Três
domingos atrás, depois de caminhar uns 35 minutos na academia da terceira
idade, por sinal, imunda – por mais que os garis limpem, mais sujam – fui para
a quadra de maior dimensão onde estendi a minha caminhada por mais 65 minutos.
Logo depois, retornei à academia para girar em 360º
cada um dos meus braços, umas cinquenta vezes, pois não queria passar pelo
sofrimento de dois colegas meus de trabalho que estão com os ombros avariados.
Assim, rodava eu meu braço no aparelho de rotação dos membros superiores,
quando olho para o chão e vislumbro, no meio da imundície, algo que me pareceu
um celular. Abaixei-me e peguei o objeto. Eu não era mais Robinson Crusoé sem
celular.
Era, na verdade, um smartphone, quando o manuseei, rapidamente, vi que havia facebook, whatsapp e outras coisas que, à primeira vista, eu não identifiquei.
Voltei para casa com o dito cujo.
Achado não é roubado, mas se é possível saber quem é o
dono, não resta a menor dúvida, que é roubo. Com que moral eu iria esculhambar
o Lula, o Renan Calheiros, o Eduardo Cunha, o PT e o PMDB, em geral, se roubo
celular? Escarafunchei o achado de todas as maneiras e não conseguia encontrar
o nome do seu dono, aliás, não encontrava nome algum. Telefonei para meu
sobrinho, e ele me aconselhou a continuar tocando na tela daquilo que a agenda
apareceria. Segui seu conselho, e o máximo que consegui foi tirar duas fotos
minhas em instantâneos lamentáveis.
Desisti e fui ler “Crime e Castigo”. Duas horas
depois, o celular tocou, corri para atender, li, na tela, o nome “Toninho”, mas
a voz dele não me chegava aos ouvidos. Quando tocou pela segunda vez, aconteceu
a mesma coisa, mas notei que o número do telefone desse tal Toninho aparecia.
No terceiro toque, eu anotei o número e, pelo meu telefone fixo, entrei em
contato com ele. Fiquei, então, sabendo que ele morava na Rua Honório e que o
dono do celular, Vinícius, também era morador do bairro. Como ele, Toninho, se
encontrava nas proximidades, em menos de 20 minutos, já estava junto ao portão
do prédio em que moro, recebendo das minhas mãos o que seu amigo perdera.
-Ele bebe e perde as coisas. - disse-me.
Eu caminho e acho, aquele já era o terceiro.
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