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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5203 Data: 05 de
outubro de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XLVIII
ATROPELAMENTO
(02) – Quando o motorista que me
atropelou pôde falar comigo, ele disse que me colocou no seu carro, um Passat,
com o amigo, que ainda estava com ele ali, no hospital, e mais duas moças que
se prontificaram para serem suas testemunhas. O que mais me surpreendeu foi
quando ele me informou que acordei no meio do trajeto para o Salgado Filho e,
mais surpreendente ainda para mim, caminhei com os dois, normalmente, até a
emergência. Como assinalei, anteriormente, eu recobrei a consciência no meio de
um questionário a que fui submetido por um funcionário do hospital na presença
de um policial. Eu não falei antes do policial?... Ele tem de ser mencionado,
pois deixou o rapaz que me atropelou assustado.
-Eu e meu amigo – indicou-o com a cabeça – estávamos
indo para o Rei do Bacalhau, no Encantado, quando você surgiu, em um segundo, na
minha frente, afundei o pé no freio, mas...
Olhei para o meu Seiko, que estava arranhado e com o
ponteiro saltando, depois da pancada, de dois em dois segundos, mas sem perder
a precisão suíça, embora fosse japonês.
Havia cheiro de éter e as lâmpadas estavam acesas; já
anoitecera na estação em que o sol demora mais a ir embora, sinal que era muito tarde. Como estavam reagindo os meus
pais, que já roem as unhas de preocupação com 30 minutos de atraso dos filhos? Soube mais tarde.
Meu pai telefonou para o meu irmão Claudio expressando
a sua aflição com a minha demora; meu irmão, que nunca admitiu esse excesso de
zelo paterno com ele, pilheriou, disse-lhe que eu arrumara uma mulher no
caminho. Outro telefonema foi dado pelo meu pai, agora para o meu trabalho, e o
meu colega e amigo Arnaldo lhe disse que eu voltara para a casa há muito tempo.
Contagiado pela agonia do meu pai, ele comunicou a outros colegas do meu sumiço
(embora os sequestros estivessem na moda, ninguém aventou essa hipótese).
Houvera um atropelamento, que o sogro do meu irmão,
sentado na varanda da casa viu, ou melhor, ouviu o som lúgubre e prolongado da
freada e os comentários dos que passavam em frente à sua casa: “este morreu”. O
que ele viu, isso sim, foi um amontoado de curiosos, no local do acidente, que
logo se desfez.
Como a minha demora se tornava mais angustiante, o
humor do meu irmão se apagou e ele foi até o posto de gasolina, defronte à sua
casa, colher informações sobre o tal atropelamento. Lá, os frentistas guardaram
os meus sapatos e o envelope que eu levava; nele estava uma edição da revista
“Afinal”, de que eu era assinante, com a reportagem de capa sobre a censura ao
filme de Godard “Je Vous Salue, Marie”. Quando o Claudio pegou a revista, leu o
meu nome, suou frio e correu para o Salgado Filho, hospital para onde me
levaram, segundo os frentistas.
A minha irmã, em Santa Rosa, Niterói, quando soube do
meu atropelamento, soltou um grito que levou a minha sobrinha, Verônica, com 5
anos de idade, a comentar com a irmã: “Mamãe está assim porque o papai não deu
dinheiro para ela.”
As coisas, agora, no hospital, aconteciam rapidamente.
Apareceu, em primeiro lugar, meu irmão, que respirou aliviado quando me viu e
constatou que as previsões macabras sobre mim não se confirmaram. Depois, veio
a Glória, uma colega de trabalho, com o marido, deu-me um beijo na testa e
voltou para o seu apartamento no Leblon.
Meu cunhado e minha irmã surgiram por último; a expressão
de desafogo da minha irmã; ao me verem bem, não durou muito, porque gritos
desesperados de uma paciente feriram os seus ouvidos.
Quando fui liberado pelo médico de plantão do Salgado
Filho, vim para casa no táxi do meu cunhado, eu e todo mundo, menos o
atropelador, que foi à minha casa no seu Passat, sem o seu amigo, que tinha
outros afazeres. Eu estragara os bolinhos de bacalhau dos dois.
Logo que soube, pelo meu irmão, que eu havia sido
atropelado, meu pai arremessou o primeiro objeto que estava à mão contra um
quadro em que aparece Jesus Cristo de corpo inteiro e o xingou por diversas
vezes. Com a minha chegada, houve uma transformação religiosa; a minha mãe
falava que eu nasci outra vez e que encomendaria uma missa pelo milagre que me
salvou a vida. O motorista do Passat, que sentara num sofá, pediu, em seguida,
que lhe informassem sobre a igreja, o dia e a hora, pois ele fazia questão de
estar presente na cerimônia.
O humor voltou ao meu irmão que, junto do filho
Daniel, com 3 anos de idade, e da Gina, minha cunhada, disse que eu buscara
esse empurrão do carro para ficar mais perto da White Martins, que tinha uma
fábrica no final da rua Cachambi. Ele sabia que as ações da White Martins
alavancavam o meu minguado salário, principalmente naqueles primeiros dias
ilusórios do Plano Cruzado.
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