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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5202 Data: 04 de
outubro de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XLVII
ATROPELAMENTO (01) – Foi
no dia 5 de março de 1986; o dia, mês e ano ficaram na minha memória e só se
apagarão se ela for junto.(*)
Eu costumava sair do trabalho às quatro e meia
da tarde. No mais tardar, às cinco e meia, eu já estava correndo pelas ruas de
calção, camiseta, tênis e meias. Nessa data, porém, eu me atrasei porque me
pediram para elaborar um gráfico... sei lá se era de linha, barra, torta, não
me recordo, sei que era baseado em dados estatísticos sobre navegação marítima
(só podia ser) e para piorar, alertaram-me que havia uma certa urgência. Como nós
não utilizávamos computadores, nos anos 80, os gráficos tinham de ser feitos com
papel milimetrado, o que nos exige o máximo de concentração e vista de lince.
Ainda assim, eu me apressei e poucos minutos antes das cinco horas aprontei
tudo e parti para o metrô.
Na estação do Estácio, onde era feita a baldeação,
disparei escadaria abaixo, rezando que já houvesse um trem à espera dos
passageiros que não seguiriam para Saens Peña; o meu desejo maior,
diferentemente dos demais apressados, não era sentar num banco e sim chegar
logo à minha casa, que, naquele tempo, ficava na Avenida Suburbana, mais
próximo da Rua Cachambi do que da Itamaracá.
A estação do
metrô de Del Castilho havia sido inaugurada três anos antes, mas demandaria
mais tempo para eu aparecer em casa; saltei, então, em Maria da Graça para pegar
o ônibus. Dentro do ônibus, Méier-Maria da Graça, chamou a atenção de todos os
passageiros o comportamento neurastênico do motorista quando foi ultrapassado
por outro ônibus da mesma linha; ele grasnou impropérios, gesticulou, enquanto
imprimia mais velocidade no veículo que estava sob a sua responsabilidade.
Perto do portão da histórica Casa do Capão do Bispo,
não havia ponto de ônibus, mas os motoristas do Méier-Maria da Graça,
carinhosamente chamado de cata-mendigos, paravam por camaradagem se alguém
puxasse o fio da campainha do sinal. Para mim, era ótimo, pois bastava eu
atravessar as duas pistas, andar poucos passos, que já estava no prédio em que
morava. Mas, nesse dia 5 de março de 1986, não houve camaradagem, o motorista
não admitia que o outro chegasse ao ponto final, no Méier, à sua frente. Seguiu
em frente, mas, ao fazer a curva em direção à Rua Chaves Pinheiro, deu uma ligeira
parada; eu e um rapaz saltamos, ele foi para o canteiro que dividia as duas
pistas da Avenida Suburbana, para isso deu uns dois passos, enquanto eu, sem
conter a minha pressa, corri para alcançar a calçada. Foi quando tudo se
apagou.
Recobrei a consciência no meio de um questionário que
eu respondia a uma pessoa desconhecida, sentada como eu, com uma pequena mesa
entre nós. Como respondi as perguntas sobre mim, mesmo nocauteado, não sei, e,
pelo jeito, sem errar, pois ele seguia em frente com o interrogatório, enquanto
eu tentava me localizar. Vieram-me à mente o metrô, o ônibus que peguei em
Maria da Graça, a viagem, a irritação do motorista e tudo parava aí.
Notei que estava sujo e em andrajos como um mendigo. A
minha camisa social branca estava rasgada na altura do ombro, a minha calça de
terno se rasgou quase de cima abaixo numa perna, e os meus sapatos não estavam
nos pés.
Feita a minha ficha, entregaram-me um pedaço de sabão
em barra, apontaram para uma porta e disseram para eu me lavar. Abri a porta e
entrei num lavatório onde havia uma pia e um chuveiro. Fiz o possível, naquelas
condições, para tirar do corpo manchas de sangue coagulado, pedrinhas e
resquícios do negrume do asfalto.
Quando saí do lavatório, levaram-me para tirar
radiografia. Em seguida, o médico radiologista me informou que eu fraturara o
ísquio e se pôs a falar, didaticamente, sobre esse osso, de que eu já ouvira
falar numa aula de Ciências Naturais no curso ginasial.
Conduziram-me, depois, para uma mocinha,
médica-residente, que se pôs a limpar minhas feridas, que não eram muitas, com
água boricada. Ela atentava para a minha cabeça, onde havia um corte
superficial e mais ainda, para o meu ombro esfolado.
Um rapaz, mais ou menos da minha idade, acompanhava
aflito, como um amigo meu de infância, todo o tratamento a que eu era
submetido. Ele mesmo se identificou quando lhe deram a oportunidade de se
acercar de mim: era o motorista que me atropelou.
(*) Um coincidência marca a vida do Sr.
Redator e do Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO, ambos fomos atropelados e
sobrevivemos. Pelo menos achamos isso.
Entretanto, o Distribuidor não tem ideia
da data do acontecimento, sabendo apenas que foi no início de 1958, porque
estava na 3ª série do Primário. De maneira análoga, fomos ambos socorridos pelo
atropelador, como se pode deduzir pela presença do atropelador do Redator nesta
edição.
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