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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5207 Data: 10 de
outubro de 2015
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SABADOIDO
Claudio me viu no portão, para mais uma sessão do
Sabadoido, e gritou para dentro de casa:
-Daniel, traz a chave, que o Carlinhos já chegou.
Minutos depois, surgiu meu sobrinho, meio revoltado,
com o aro do molhe de chaves pendurado em um dos seus dedos.
-Ô velho, você mesmo não poderia fazer isso?
-Agora, não posso; estou fazendo um trabalho urgente.
-Qual?... Está estocando vento para a Dilma?
-Foi bom lembrar, Daniel. Você me traz, depois, caixas
de papelão que eu vou colocar o vento dentro delas e enviar para o Palácio do
Planalto. – aproveitou a deixa.
-Se não houver vento, dê uma abanada. – sugeri, quando
guinei portão adentro.
-Como ela diz uma coisa dessas, Carlão? – perguntou
meu sobrinho quando rumávamos para a cozinha.
-Porque ela tem muito vento estocado na cabeça. - foi
a explicação que encontrei.
-Imagina, Carlão, essa asneira traduzida para dezenas
de idiomas, pois isso foi dito na ONU.
Depois de uma breve pausa, completou:
-Coitados dos tradutores estrangeiros, pois o dilmês
já é difícil vertido para o português. Já pensou em quem faz a tradução do
dilmês para o mandarim?
-Daniel, vai se vestir. Daqui a pouco a Roberta aparece.
- soou a voz da Gina do interior da casa.
-Carlão, eu vou me vestir, mas, antes, passo pelo
banheiro, pois tenho vento estocado nos intestinos.
-Se eles moverem as hélices da energia eólica, o
problema da nossa presidente está resolvido. - vali-me da sua piada.
Como no teatro, mal saiu um personagem, veio outro, no
caso, a Gina, que apareceu meio emperiquitada.
-A Roberta (sua sobrinha), quando não passa o fim de
semana fora, inventa uns passeios e me carrega, com o Daniel, junto.
-Sábado passado, vocês foram ao Parque da Cidade.
-Hoje, eu nem sei aonde vamos.
-O marido dela topa tudo o que ela decide?
-O Valtencir adora dirigir, então, desde que ele rode
alguns quilômetros com o carro, está ótimo; e, para as crianças, a Mariana e o
Luquinha, tudo é festa.
-Tem sabido da Rosa, Carlinhos?
-Eu sei dela através do Luca. A notícia mais recente
que o Luca me comunicou sobre ela foi sobre um presente para mim...
-Já sei: um livro.
-Um livro é pouco, Gina; ela pretendia me dar três
volumes em que estão catalogados os mais de 40 mil livros da biblioteca do pai
dela, o Agripino Grieco, doados para uma instituição de Brasília.
-Ela me deu um livro que só de notas bibliográficas
eram mais de 200 páginas. O Claudio até dizia que as notas bibliográficas
formavam outro livro.- lembrou.
-No meu caso, Gina, eu não tenho mais espaço para
livros e revistas, não se esqueça de que sou assinante da VEJA. Um dia, resolvi
colocar no lixo alguns livros que estão com camadas de poeira e que não
pretendo mais manusear. Aproximei-me da estante para ensacá-los, mas não
consegui me desfazer de nenhum.
-Depois de muita briga, consegui que o Claudio jogasse
fora alguns livros. Afinal, quem arruma a casa, sou eu; e eles, quando são
muitos, deixam tudo bagunçado.
Parou para atender o celular.
-É a Roberta.
Alteando a voz:
-Vamos, Daniel; eles já chegaram.
-Carlão, depois a gente continua a nossa conversa. –
disse-me, enquanto saía acompanhado pela mãe.
Aproveitei o isolamento momentâneo para adiantar a
leitura do Globo, que costumo ler em casa a tarde.
Não fiquei muito tempo sozinho, meu irmão adentrou a
cozinha com a expressão de cansaço.
-Fazer bicicleta às 4 horas da manhã e, agora, cortar
galhos cansam.
-Ainda não parou a poda?
-Estou aparando as arestas.
-O que me diz do centenário do Orlando Silva? –
perguntei.
-Não passou em brancas nuvens, mas o Globo...
-Foi uma decepção o Globo. Ancelmo Gois, entrevistando
o Jonas Vieira e o José Serra, foi a honrosa exceção. - manifestei-me.
-O papai dizia que as mulheres tentavam o suicídio,
apaixonadas que estavam pela voz do Orlando Silva.
-Lembro-me, Claudio, de que o papai falou disso quando
roubaram o busto dele na Praça Orlando Silva.
-Eu acho que levaram só a cabeça dele.
-Naquele pornô sofisticado do Walter Hugo Khouri,
“Amor Estranho Amor”...
-O filme que a Xuxa proibiu porque ela transa com um
garoto, o filho da prostituta mais importante, que era a Vera Fisher?
-Você deve se lembrar também, Claudio, que, naquele
bordel da época do Estado Novo, as músicas de fundo eram cantadas pelo Orlando
Silva.
-Foi o auge dele – não é? – de 1935 a 1942.
-Eu já contei isso tempos atrás – retomei a palavra –
eu vinha de um cinema da Tijuca para casa quando, na parte traseira do ônibus,
uma pessoa, visivelmente embriagada, falava do Orlando Silva, anunciando-se
como irmão dele. Virei-me e não tive dúvidas que falava a verdade. Como era
parecido!
-Quando foi isso?
-1980... 1981... eu era cinéfilo nos anos 80,
continuo, mas não vou mais ao cinema.
Com pruridos detetivescos, meu irmão se pôs a
raciocinar:
-O Orlando Silva era de 1915... digamos que o irmão
dele fosse de 1917. Em 1980, teria 63 anos de idade... É possível.
-Devia ser a idade da pessoa de que falei, Claudio.
-Pena que também não resistiu ao vício. - lastimou.
-Eu descobri, no Youtube, Claudio, um depoimento do
Orlando Silva bastante significativo. Deduz-se pelas suas palavras, que tomou
como referência vocal o Tito Schipa.
-O tenor?
-Isso. Ele conta que, ainda garoto, cantou para o
grande Tito Schipa que, encantado, o
aconselhou a não estudar canto, porque perderia a naturalidade, o dom que a
natureza lhe dera. “Mas você estudou canto”. “Estudei por cauda dei mio padre,
que queria que io cantasse ópera.” O Orlando Silva tentou reproduzir o italiano
do tenor.
-Só tentou, Carlinhos.
-Quando se ouve Tito Schipa, não se sabe o momento em
que ele respira, tem-se a impressão que é tudo num só fôlego e o mesmo acontece
com o Orlando Silva. Eu penso, por isso, que ele tinha o tenor como modelo
vocal.
-Afinal, ele estudou ou não canto?
-O Orlando Silva afirma que não, mas muitos afirmam
que sim. Tal diamante não surgiu assim, teve de ser lapidado – argumentam os
especialistas.
-Há gravações dele em que a voz não é lá essas coisas.
-O vício das drogas, Claudio, esculhambou com tudo.
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