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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5206 Data: 09 de
outubro de 2015
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CARTAS DOS LEITORES
“Pela narrativa do seu atropelamento, saltou um
passageiro junto de você, quando o ônibus deu a “paradinha”. Que diferença houve
entre vocês para um ser atropelado e outro não?” Tomires
BM: Meu caro Tomires, você já viu um cachorro, desses
vadios que andam por tudo que é lugar, atravessando a rua e um gato? O cachorro
atenta para os carros que passam e até para – já vi vários casos – depois de
percorrer metade da travessia, para um veículo seguir em frente, para reiniciar
a sua caminhada até a calçada oposta. O gato, não, parece que fecha os olhos e
dispara para a calçada como se estivesse na selva dos seus antepassados, ou seja, os instintos
primitivos dos bichanos são mais arraigados do que a dos cães.
No caso do meu atropelamento, o passageiro que saltou
comigo teve a perspicácia canina de dar dois ou três passos para o canteiro que
divide as duas pistas da Avenida Suburbana e se pôr a salvo do tráfego, enquanto
eu fui precipitado como um felídeo. O resultado para mim foi dolorido.
“Num tempo perdido no passado, eu li, algures, uma
página que dizia quando Abraão Lincoln era adolescente, desmaiou com o coice de
um cavalo, quando voltou a si repetiu a mesma palavra antes de ser escoiceado: “Go”, ou outra parecida, não me recordo
mais qual foi. A nossa mente é complexa. Lendo sobre o atropelamento do “mitron” (como a Rosa chama os fazedores
de biscoito, na França, e também de pães) soube que, no hospital, ele,
aparentemente, voltou a si, mas, na verdade, estava ainda inconsciente.” Procópio
BM: Por isso, eu usei a palavra “nocauteado”; esta era –
para continuarmos com os francesismos – “Le
mot just”, a palavra adequada, que era a busca obsessiva de Flaubert, quando escrevia.
Há boxeadores trocando
socos com seus adversários, mas estão inconscientes, nocauteados em pé. Os
árbitros têm de ser experientes para encerrar a luta e evitar um massacre.
Sabe-se que Mike Tyson, depois de ser nocauteado pelo
Evander Holyfield (foi o combate de 1996, em que não houve mordida na orelha),
compareceu à entrevista com a imprensa pensando ter vencido a luta.
Mas a nossa
mente é mesmo complexa, como você disse. Um dos recursos do árbitro para se certificar
que um boxeador está inconsciente é perguntar-lhe seu nome. Eu, quando estava
fora de mim, no Salgado Filho, me identifiquei corretamente no preenchimento da
minha ficha.
-O atropelado deveria ter escrito mais algumas páginas
sobre a sua convalescença, mas não, terminou tudo repentinamente, como naqueles
filmes que passava no Cinema Paissandu, no final dos anos 60 e início dos 70,
chamados de geniais pela plateia porque ninguém entendia nada e fazia segredo
sobre isso.” Pavão
BM: Como foi escrito, eu senti, durante dezesseis dias,
dores na coxa direita, parte lateral, onde ocorreu a pancada do Passat e uma
distensão na virilha. O que me deu mais
trabalho foi a virilha; fazia aplicações diárias de gelo no local por uma hora,
enquanto assistia televisão para me distrair daquele incômodo. Eu já estava trabalhando,
porque a virilha não reclamava de eu andar; o problema era eu correr. Tentei
uma vez retornar ao cooper, mas tive de parar porque a dor encruada me impedia
de ir em frente; nas outras duas ou três tentativas, deu-se a mesma coisa. Mas fiquei tão aferrado à ideia de retornar
às corridas, que insisti até a dor sumir de vez.
-“O redator do Biscoito Molhado não ficou preocupado de
chegar em casa e saber que seus pais tinham alugado o seu quarto, devido ao
atraso tão prolongado da volta do trabalho no dia do atropelamento?” Ananias
BM: Essa piada dos pais alugando o quarto do filho, por
causa de uma curta ausência, é do Woody Allen. Ela não ocorreu ao meu irmão
Claudio que, depois de se certificar que tudo estava bem, disse mil piadas.
“Como investidor da Bolsa de Valores – fiz muitos
investimentos para mim e para meus colegas jogadores de futebol, na euforia de
1971 (depois veio aquela queda de 70% no preço das ações) – atentei, na
história do seu atropelamento, para o que seu irmão disse, que você queria
chegar mais perto da White Martins. Eram os primeiros dias ilusórios do Plano
Cruzado. Você não se arrependeu de ter querido ficar mais perto dessa empresa?
Moisés
BM: De ser atropelado sim, eu me arrependi, mas de
comprar ações da White Martins, não. Visto sob certos ângulos, há semelhanças
entre o milagre brasileiro de 1971 e o Plano Cruzado, principalmente sob o
prisma da Bolsa de Valores.
Quando o Plano Cruzado foi anunciado em 28 de fevereiro
de 1986, eu me lembro que apenas dois formadores de opinião ficaram contra:
Brizola, por interesses políticos (o PMDB tiraria votos do PDT) e Roberto
Campos, pela lucidez na ciência político-econômica. Mário Henrique Simonsen se
empolgou, no princípio, porque alguns discípulos seus, como André Lara Rezende,
o elaboraram. Simonsen não atinou que os políticos meteriam a sua colher de pau
no Plano para encaroçar tudo.
Nos primeiros dias, semanas e meses do Cruzado, quando
muitos se diziam fiscais do Sarney, os valores das ações subiram como rojões de
festas juninas. Nesse clima de exuberância, Reinaldo, um amigo dos tempos da Rua
Chaves Pinheiro, entregou-me um estudo da Marilene Barcelos, uma consultora de
investimentos, que analisou os principais papéis e o índice da Bolsa de Valores
do Rio de Janeiro e de São Paulo. Mostrei esse estudo ao Coronel, um investidor
muito chegado a mim, na Corretora Caravello; e ele me pediu que não mostrasse
“isto” a ninguém, pois todos ficariam assustados. Era coisa de Cassandra e era
mesmo; ela previu que Troia seria vencida e destruída pelos gregos e acertou.
Antes de se confirmar o engodo que foi o Plano
Cruzado, os preços das ações já vinham despencando e os mais velhos, como o
próprio Coronel, lembraram a desilusão que foi do segundo semestre de 1971 ao
primeiro de 1972 na Bolsa de Valores.
Quando a derrocada chegou ao fim, peguei esferográfica
e papel para contabilizar o meu prejuízo, que não foi muito por causa da White
Martins, que não decepcionou seus acionistas – não havia estelionato eleitoral
que derrubasse as ações dessa empresa. Infelizmente, anos depois, fechou o
capital.
-Era um Passat TS LS?... Farol retangular?... Ano?...
Era daqueles fabricados no Brasil e exportado para o Iraque, quando estava em
guerra contra o Irã? Carlos Alberto
Torres. (*)
BM: O Luca só quis saber o número da chapa do carro que
me atropelou, mas você é exigente. Já disse que nada sei. Nas visitas que o
atropelador me fez, certamente deixou o Passat estacionado diante do prédio
onde eu morava, mas eu estava muito depauperado para descer a escadaria para
vê-lo e satisfazer todas as curiosidades. Se eu pudesse chagar até o Passat, eu
lhe diria: não podemos nos encontrar daquela maneira.
(*) Colecionadores de automóveis antigos
têm todo tipo de obsessão. Das mais simples – como desejar saber, com precisão,
qual tipo, cor, ano – que não prejudicam ninguém, mas até algumas complexas, de
difícil explicação e que podem precipitar traumas familiares, como estender sua
volúpia colecionadora a objetos estranhos, como manteigueiras com corpo de
galinha, pratos esdrúxulos, caixinhas diversas, ou até barbeadores elétricos.
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