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O BISCOITO MOLHADO
Edição
5199 Data: 29 de setembro de 2015
SABADOIDO
Meu irmão não ficou mais do que quinze minutos
cortando a roseira.
-Fica pra depois, fiz bicicleta, quando amanhecia e
estou, agora, cansado. - disse, enquanto guardava a tesoura.
-Conseguiu tirar a barulheira da bicicleta?
-Nada; cada pedalada é um rangido.
-E os vizinhos?
-Está escutando?...
Apurei os ouvidos e percebi o que me parecia uma briga
de casal vindo do prédio de dois andares do lado.
-Com as pedaladas, eu baixei o ácido úrico do sangue e
minhas inchações sumiram.
-Vários colegas meus de trabalho, que tiveram gota,
foram obrigados a maneirar na ingesta alcoólica, como dizem os médicos.
-Os médicos dizem isso mesmo? - estranhou.
-Sabe o meu amigo da Sunamam que trabalhou no filme “A
Rainha Diaba”, Arnaldo Muniz Freire de Lima Lages?...
-Lembra-se do nome dele todo?
-Lembro-me porque é um nome parnasiano; um verso
hendecassílabo com as tônicas na quinta e na décima-primeira sílabas.
Entusiasmado, acrescentei:
-Mas Olavo Bilac era imbatível; Olavo Brás Martins dos
Guimarães Bilac, verso em alexandrino perfeito. Nome que veio a calhar para o
nosso melhor poeta parnasiano.
-O pai da Rosa criticou o Olavo Bilac? - indagou.
-O Agripino Grieco considerava Castro Alves o maior
poeta brasileiro, mas respeitava o Bilac.
-Se Castro Alves não tivesse morrido com 24 anos de
idade, seria mesmo. – imaginou.
-Como eu dizia, o Arnaldo me mostrou uma receita em
que o médico lhe dizia para forçar a ingesta líquida, ou seja, que bebesse
muita água.
Uma vez, o Antonio Houaiss escreveu ninfa potável no
lugar de água.
-Nem toda água é potável.
-Claudio, estou relendo “Crime e Castigo”, de
Dostoiévsky.
-Rapaz, eu li esse livro há tanto tempo.
-Eu li há uns 40 anos e, há 20, mais ou menos, topei
com um texto do Paulo Francis em que ele diz que, até a primeira metade, “Crime
e Castigo” é uma obra-prima, mas, que na segunda metade, se transforma numa
novela da Janet Clair.
-O Paulo Francis escreveu muita bobagem. - reagiu meu
irmão com desdém.
-Eu já reli as 120 primeiras páginas e não conheço
autor algum que tenha explorado literariamente tão bem a alma de um criminoso.
-Mas o livro não é só isso.
-Claro. Victor Hugo retratou os miseráveis dentro dos
parâmetros do romantismo, mas Dostoievsky retrata os miseráveis como eles são,
na realidade, e estabelece uma diferenciação com os pobres, pois nestes ainda
restam a dignidade, a vergonha.
-O miserável já perdeu tudo. - atalhou.
-Claudio, esse livro do Dostoievsky é de uma
atualidade gritante. A única diferença que constato dos miseráveis de Dostoievsky
com os que esbarro, hoje, é que estes fumam craque e os do escritor se incham
de vodca.
-O problema dos livros dele são os nomes dos
personagens, Carlinhos.
-Até os russos tinham problemas; o Raskólnikov, por
exemplo, é chamado, às vezes, de Ródia. Ainda não cheguei ao Zózimo, mas é um
nome que me acompanha desde garoto por causa do futebol.
-Zózimo não é de outro romance do Dostoievsky?
-Deve ser, Claudio, eu faço confusão... Tenho, por
isso, de reler todo o Dostoievsky.
-Mesmo menos complicado, ninguém fala Ródia, e sim
Raskólnikov.- afirmou.
-Uma das grandes vantagens do livro que leio é a
tradução direta do russo para o português; até então, tínhamos traduções de
segunda mão; os autores russos eram traduzidos, geralmente, do francês para o
nosso idioma.
-Como dizem que tradutor é traidor, havia uma traição dupla.
- deduziu.
-Antônio Feliciano de Castilho, poeta romântico
português do século XIX, que estudamos no ginásio, traduziu o Fausto de Goethe
partindo de uma tradução francesa, pois não conhecia a língua alemã.
-Eu ganhei o “Crime e Castigo” da Roberta (professora
do município, sobrinha da Gina). Ela me disse que precisava de espaço no
apartamento em que mora e me perguntou se eu queria o livro.
-Eu ganhei do Lopo (nosso irmão) que, por sua vez, o
recebera da Ângela (ex-companheira, também professora municipal).
-Então, é a mesma edição distribuída pela Prefeitura. -
concluiu, enquanto pegava o livro na estante, próxima à cozinha e me mostrava.
-Vale reler, Claudio; não só pelo que eu disse, mas
pelos esclarecimentos no rodapé sobre medidas, por exemplo, pois os russos não
usavam o sistema métrico decimal.
-Vamos ver. - disse.
Passei da literatura para o cinema.
-A NET tem o NOW, em que ficam à nossa disposição
dezenas de filmes para ser vistos.
-Vez ou outra, a Gina ou o Daniel acessam esse canal.
-Semana passada, querendo assistir a um filme, entrei
no NOW, e escolhi “O Jardineiro Fiel”, por causa do Fernando Meirelles, o
diretor.
-Sei; é um filme que se passa, na sua maior parte, na
África.
-Gosto muito do Fernando Meirelles. A minissérie “Os
Maias”, que ele dirigiu, foi antológica. Considero “Cidade de Deus” um dos
melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Ele dirige, agora, no Theatro
da Paz, em Belém, a ópera “Os Pescadores de Pérolas”, de Bizet, e, pelo pouco
que vi, deve ser um deslumbramento.
-Ele dirigiu, em “O Jardineiro Fiel”, um dos maiores
atores da atualidade, Ralph Fiennes. - lembrou.
-A atriz, que não é muito conhecida por mim, Rachel
alguma coisa, também foi premiada pela sua atuação nessa fita. - acrescentei.
-Eu li sobre esse filme quando foi lançado nos
cinemas, Carlinhos. Ele investiga a morte da esposa que contrariou interesses
de laboratórios farmacêuticos que usavam os africanos como cobaias.
-Há uma cena do filme em que um carro persegue o dele.
Nesse instante, eu me senti decepcionado com o Fernando Meirelles por ter caído
nesse clichê, mas não era nada disso; o diretor fazia uma sátira à Hollywood, o
motorista que perseguia o carro do personagem do Ralph Fiennes era um gozador
de piadas de mau gosto.
-Há um toque brasileiro do filme? - quis saber.
-Bem, em uma cena o Ralph Fiennes usa uma bermuda igualzinha
a minha, parece até que comprou numa loja do Nova América.
-Aquela que a Gina lhe deu de presente?
-Isso, ela me presenteou com duas, todas de cor bege,
como as do Daniel.
-Falando em Daniel, ele só foi ao “Rock in Rio”, no
dia da apresentação do “Queen”?
-Ele foi com a Roberta e com o Valtencir a outro
show.
-O Ruy Castro escreveu, na Folha de São Paulo, que
nenhuma outra música envelheceu tão bem como o rock, porque o seu publico não
abandona seus artistas mesmos quando passam dos 70 anos. Diferentemente com o
que aconteceu com os cantores dos anos 60 que, mal chegavam aos 50 anos, eram
abandonados pelos empresários e pela mídia. Grosso modo, foi isso que ele
disse.
-Carlinhos, não concordo muito não. Frank Sinatra,
longe da sua bela voz, cantou até perto dos 80 com plateias enormes. O que
dizer do Tony Bennett ainda canta aos 89 anos, a idade da mamãe?...
-E o Tony Bennett já cheirou cocaína.
-Cheirou como os cantores de Rock, Carlinhos.
-Vá ver que a cocaína é o segredo da longevidade
deles. - concluímos.
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