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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4323 Data: 06 de
dezembro de 2013
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À LA NELSON RODRIGUES
A MUDANÇA
As crianças brincavam
no saguão do primeiro andar do prédio de dois andares da Aldeia Campista e suas
mães conversavam à porta do apartamento de uma delas. Eram três vizinhas, duas
delas, Clarice e Vera, cunhadas.
Falavam das novidades
do bairro quando a Julieta, casada há dez anos, sem filhos, um tanto alheia
àqueles fuxicos, vagueou os olhos pelas crianças e observou:
-O Alvinho está muito
parecido com o José.
Vera sentiu uma
punhalada no coração.
-O que foi?-
perguntou-lhe a cunhada ao vê-la com uma palidez cadavérica.
-Nada. - respondeu
bruscamente e entrou em casa sem se despedir.
-O que deu na fulana? -
foi a segunda pergunta de Clarice.
-Talvez um desarranjo
intestinal e ela foi atrás de um elixir paregórico.- respondeu a Julieta com um
semblante de quem tanto poderia estar falando seria ou jocosamente.
Quando José chegou do
trabalho, a mulher lhe perguntou de chofre:
-Você acha a Clarice
bonita?
-Eu nem tirei ainda o
paletó.
A pergunta foi repetida
com uma entonação mais ríspida.
-Acho, como todo o
mundo.
-Como todos os bêbados
com quem você anda nos bares. - completou ela.
-Você já não me disse,
sem eu perguntar, que o meu irmão é bonito?... E eu me mostrei furioso com
isso? Por que esse fricote agora?
-Está fedendo a bebida.
- disse ela ao aproximar acintosamente o nariz da boca do marido.
-E vou feder mais
ainda. - gritou, colocando de volta o paletó no corpo e batendo a porta atrás
de si.
AS HOSTILIDADES
Vera tinha de admitir,
com todo o gosto amargo da inveja na alma, que Clarice e Horácio formavam um
casal bonito. Clarice, mesmo vestida com roupas baratas, superava as madames
cheias de chiquê de Copacabana e Horácio podia passar por galã de cinema. E
Alvinho, filho dos dois? Ela conviveu anos com os cunhados e, por isso, podia
falar das suas fisionomias, embora a sua memória só fosse boa para datas.
Quanto ao sobrinho, nunca se deteve nos traços do seu rosto até que a vizinha
disse aquelas palavras que lhe fizeram ver o que nunca tinha visto: “... é a
cara do José”.
No dia seguinte, de
tarde, Alvinho chutava para lá e para cá uma bola de borracha, no saguão do
prédio, até que, num chute descuidado, ela foi de encontro à porta do
apartamento da tia.
Dir-se-ia que Vera
estava com o ouvido colado na parede aguardando o estremecer da sua porta com a
bolada, tamanha a rapidez com que a abriu.
-Desculpe-me, tia.
Nem terminou de falar e
ela já furara a bola com uma faca que já estava na sua mão. Atônito, o menino
olhou aquela cena sem esboçar um gesto. A tia lhe arremessou a bola murcha,
fixando-o nos olhos com tanta intensidade que o assustou:
-Cara de fuinha. -
disse-lhe ela antes de bater a porta.
O menino fez queixa à
mãe.
-Seu pai compra outra
bola de borracha para você.
-E o que é fuinha,
mãe? Não deve ser boa coisa.
AS BRIGAS
A vida de Clarice virou
um inferno; começou com a bola do filho furada, depois a implicância foi com o
menor barulho que o menino provocava. A hostilidade chegou também a ela. Vera
não lhe dirigia mais a palavra, como até virava a cara quando a via, ou mudava
de calçada.
Uma covardia recôndita detinha
as duas: Clarice não tinha coragem de perguntar-lhe nas fuças o porquê do seu
procedimento e Vera, por outro lado, não declarava claramente o que fizeram
contra ela. Nesse impasse, as brigas eram silenciosas, sem bate-bocas, mas nem
por isso menos terríveis.
O pobre do Alvinho só
saia de casa para a escola carregando a sua pesada pasta com cadernos, livros e
estojos, e avançava em direção de casa, quando se certificava que o inimigo não
estava à vista (sua tia).
-Esta louca está amedrontando o meu filho. -
esbravejou Clarice quando percebeu que, um dia, o menino chegou aos tropeções
da escola, e lhe disse que a tia o chamou de novo de cara de fuinha.
HORÁCIO
Horácio trabalhava como
escrevente da polícia, mas se sentia inteiramente frustrado. O seu grande sonho
era o anel de doutor, em se formar em Direito. Vicissitudes da vida se
ergueram, desde a sua infância e lhe barraram o caminho para o seu objetivo.
Perdeu o pai, que trabalhava de contínuo, quando não tinha 9 anos de idade e
teve, juntamente com José, 3 anos mais velho do que ele, de vender jornal,
acordando de madrugada para essa tarefa. Assim, os dois entregavam mensalmente
um parco dinheirinho para a mãe, que costurava para fora.
Deixaram a escola, mas depois de muito
esforço, a mãe deles juntou dinheiro suficiente para eles retornarem aos
livros. Horácio ficou encantado, José, não, pois uma parte do seu salário ele
escondia para si e comprava cigarros.
-Vou contar para a mamãe.
-
-Quebro-lhe a cara.
E Horácio não se
atreveu. Foi uma rusga comum entre irmãos.
Além do retorno aos
livros de que tanto gostava, Horácio se sentia aliviado de não esconder mais
nada da mãe.
Mas poucos anos depois,
ela adoeceu seriamente, tuberculose, e os irmãos tiveram de trabalhar mais
arduamente, pois o preço dos remédios estava pela hora da morte.
O infortúnio uniu ainda
mais os irmãos.
-Não existe mais amigo
de infância do que um irmão. - dizia José em tom de blague.
Ele, como o correr dos
anos, também separava parte do dinheiro que recebia com pequenos empregos
eventuais que arrumava com bebidas, para desconsolo do Horácio que, vez ou
outra, conseguia convencer o irmão a não beber tanto, evocando a mãe dos dois,
uma santa criatura.
A velha ainda suportou
a doença por um bom tempo até que morreu. Mesmo atravessando dificuldades
financeiras, Horácio chegou às portas da faculdade de Direito, mas o noivado,
seguido logo pelo casamento com Clarice, levou-o a adiar o seu sonho de
tornar-se advogado.
José, um ano antes,
conheceu Vera e casaram. O casal foi morar num prédio bem modesto da Aldeia
Campista e, assim que vagou um apartamento perto do seu, insistiu com o irmão,
prestes a casar, que o ocupasse, pois o proprietário, um português riquíssimo e
generoso, era camarada na cobrança do aluguel.
Casado, José teve
recaídas no vício do álcool.
TORTURADO
Horácio não tinha
desfeito ainda o nó da gravata, ao chegar do trabalho, quando foi colocado
contra a parede pela Clarice:
-Eu não fico mais aqui!
Essa mulher deu agora para dizer desaforos contra mim e meu filho.
E repetiu, possuída
pelo paroxismo da indignação:
-Eu não fico mais aqui!
Tentou contemporizar:
-Mas meu bem, o
dinheiro que eu venho poupando é para reiniciar meus estudos. Não posso gastar
tudo com uma mudança e um aluguel mais caro. Só se formos para um barraco.
-Eu não fico mais aqui!
Com essas palavras
ecoando nos ouvidos, como se estivesse sendo torturado, deixou-se cair na
cadeira mais próxima.
DECISÃO
Horácio procurava uma
explicação plausível para essa desavença e não encontrava.
-Pergunte àquela louca.
- era a resposta que a mulher lhe dava todas as vezes em que indagava sobre a
razão da briga.
Ouviu também o filho
que, sem a contundência dos adultos, dizia:
-Não sei, pai, eu só chutei
a bola na porta dela sem querer.
E as palavras de
Clarice lhe voltaram:
“Pergunte a ela”. Sim,
era isso mesmo que devia fazer.
Então, ao vir do
trabalho, em vez de abrir a porta do seu lar, bateu na porta da cunhada.
Ao vê-lo, Vera
expressou no semblante a sua surpresa. Mas enquanto o cunhado procurava coragem
para lhe falar, ela recuperava o domínio sobre si.
-Eu vim...
-Não, não diga nada. Eu
não esperava pela sua visita.
-Meu irmão não está? -
sabia que não estava, mas precisava se recuperar também da surpresa de vê-la
tão dócil.
-Ele vai direto do
trabalho para o bar do Fonseca e só aparece em casa tarde.
-E a voz dela se tornou
ainda mais melíflua:
-Volte amanhã nesta
mesma hora. Estarei arrumada para recebê-lo. Mas não diga nada à sua mulher...
Com suavidade, fechou a
porta.
-E agora essa. -
murmurou.
Dali, foi direto ao bar
do Fonseca. Viu o irmão debruçado no balcão com um copo de cachaça do lado.
-Horácio, por que você
voltou a beber tanto?
-Porque a minha mulher
é uma jararaca.
E quase a metade do
dinheiro guardado por Horácio se foi na mudança e nos aluguéis da casa para
onde se mudou, bem longe dali, com a mulher e o filho.
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