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terça-feira, 3 de dezembro de 2013

2517 - aos perseguintes e trepidantes o pau real



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4317                           Data: 24   de novembro  de 2013
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FUGINDO DA PESTE HUMANA

-Aqui del rei! Aqui del rei! - foi o grito de um popular roto e esquelético que feriu os ouvidos meu e do Elio.
-Estamos em Portugal de 500 atrás.
-Como sabe, Carlos?
-Pelos livros de Alexandre Herculano. “Aqui del rei” era o grito de socorro desta época dramaticamente monárquica.
-Carlos, temos de buscar a razão desse alarme tão lancinante. - sugeriu.
Não procuramos por muito tempo. A peste grassava por Lisboa e por muitas outras cidades lusitanas trazendo a morte e a miséria.
-Ainda assim, Carlos, é melhor estar aqui do que na Espanha, pois lá, desde 1497, os reis católicos forçaram os judeus a se converterem ao cristianismo sob a ameaça de os queimarem em praça pública.
-E os que não queriam se converter às ideias supostamente cristãs e nem ser queimados em praça pública? - indaguei.
-Esses fugiram; quase cem mil judeus se refugiaram em Portugal.
-Os espanhóis são mais truculentos do que os portugueses; estes, antes de desferirem o golpe fatal, sentem o coração sangrar e vacilam.
-Nem sempre, Carlos.
-Mas se tantos escolheram a terra de Vasco da Gama para salvar as suas peles é porque consideram aqui um lugar seguro. - deduzi.
-O dia em que a minha mãe marcou para me ensinar a história dos judeus no país dos seus ascendentes, Carlos, eu bati gazeta para me encontrar com uma costureira. Fiquei, por isso, com uma lacuna na minha cultura.
-Pois é, você, com o privilégio de ser um rebento da Dona Sarita, professora de História do Colégio Pedro II, não aproveitou essa oportunidade. - ralhei com ele.
-Assumo meu arrependimento; mas eu sei que estamos, agora, sob o reinado de Dom Manuel I, o Venturoso.
-Eis o rei da grande prosperidade de Portugal. O rei das navegações épicas por todo o mundo.
Como o meu entusiasmo elevou-se  a minha voz em alguns decibéis, um português baixo e atarracado, me ouviu e de nós se acercou.
-O rei não está conosco, em Lisboa. Deus e seu representante na terra se afastaram de nós. A corte foi transferida para Abrantes.
Desde priscas eras, os reis de Portugal transferem a corte para outras cidades. - pensei sem me manifestar.
-E por que Dom Manuel se mudou com a corte para longe de Lisboa? - inquiriu-lhe o Elio.
-Para fugir da peste que a todos por aqui mata e empobrece, - respondeu afastando-se.
-Elio, não adiantou nada aquele gajo gritar “Aqui del rei.”
Mais adiante, identificamos o ano em que vivíamos: 1506.
-O que houve em Portugal em 1506?...
-Elio, se você obedecesse mais a Dona Sarita, não torturaria a mente dessa maneira. E eu, de cambulhada, não me sentiria ainda mais perdido no tempo.
Seca e peste. Nenhuma tragédia é suficiente o bastante, o ser humano trata de potencializá-la. E, naquela época de fanatismo exacerbado entre os católicos, víamos na rua cristãos-novos hostilizados com violência.
-Carlos, e se descobrem que sou judeu?
-Elio, vamos assistir a uma missa, nesse Domingo de Ramos, assim, todos nos julgarão católicos.
E, genuflexos, fingindo contrição, adentramos o Convento de São Domingo.
-Também orarei pelo fim da peste e da seca, mas a meu modo. - murmurou-me no ouvido.
Bruscamente, a atenção de todos convergiu para uma carola que se julgou diante de uma epifania.
-”O rosto do Cristo se iluminou! É a misericórdia divina que nos abençoa.
-Amém. - gritaram todos extasiados.
-Não; foi apenas o reflexo dos raios do sol na imagem de Cristo. - elevou-se uma voz no meio da igreja.
-Isso não é hora de demonstrar inteligência. - murmurou o Elio com um timbre em que havia nuances de irritabilidade e de apreensão.
-Ele é judeu. - berrou uma megera, açulando todos a agarrarem o herege.
-Sou cristão, eu já me converti. - defendeu-se envolvido por mãos inimigas.
E o brutal espancamento daquele pobre homem começou; até as crianças correram para apanhar pedaços de pau e entregá-los aos homens de braços mais fortes e cruéis.
-Carlos, isso é terrível.
Em poucos minutos, o homem estava estirado no chão, gotejando sangue, enquanto os fiéis retornavam para as suas casas.
-Terminou. - respirei como se saísse de uma tortura.
-Não, Carlos, começou. Você não sabe o que é uma perseguição aos judeus. - disse-me o meu amigo tomado pela angústia.
Estava, infelizmente, coberto de razão. Frades dominicanos, a partir de então, aglomeravam os fanáticos e prometiam absolvição dos pecados para os que matassem hereges hebreus, porque eles trouxeram a peste para Portugal. A turba ensandecida de ódio saiu então com armas nas mãos, mesmo que fossem porretes, à caça de judeus e de cristãos novos.
Três dias de um hediondo massacre se eternizaram.
-Carlos, se não nos tirarem logo daqui, não sei se vou escapar de ser caçado a pauladas como uma ratazana.
Homens, mulheres e até mesmo crianças eram torturadas, os mais desafortunados morriam queimados em fogueiras improvisadas no Rocio. Todos eram acusados de terem crucificado Jesus Cristo naquela semana santa, embora o ano da crucificação já se perdesse no passado longínquo.
Uma das vítimas, antes de ser abatida, gritou:
-Aqui del rei.
-Matamos o escudeiro real. - assustou-se um homem no meio da turbamulta.
-Toda a corte está longe daqui. Este sujeito é um cristão-novo, e merecia a morte. - retorquiu um dos fanáticos.
-Ele deve ter vindo em missão, não deveria ser massacrado. - insistiu aquele que reconheceu o morto.
No dia 21 de abril, as tropas do Rei Dom Manuel I alcançavam, finalmente, Lisboa para dar um basta àquela carnificina. E o rei, indignado com a chacina, puniu todos aqueles que se envolveram na barbárie e foram reconhecidos, confiscando-lhes os bens. Os dominicanos, que açularam a populaça à matança, foram enforcados e o Convento de São Domingos foi fechado por oito anos.
-Enfim, o rei distante resgatou Portugal da ignorância medieval. - comentei com um sopro de esperança.
-Mas Dom Manuel não viverá por mais de duas décadas, depois disso. - lembrou o Elio com pessimismo.
-É verdade; a partir de 1580, Portugal ficará sob o jugo da Espanha, onde a intolerância religiosa é ainda mais encruada.
-Antes, em 1540, o Tribunal do Santo Ofício será estabelecido em terras lusitanas.
-Esse fato histórico foi Dona Sarita que lhe ensinou?
-Foi; no dia dessa aula, eu não bati gazeta.






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