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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4317 Data: 24 de novembro
de 2013
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FUGINDO DA PESTE HUMANA
-Aqui del rei! Aqui
del rei! - foi o grito de um popular roto e esquelético que feriu os ouvidos
meu e do Elio.
-Estamos em Portugal
de 500 atrás.
-Como sabe, Carlos?
-Pelos livros de
Alexandre Herculano. “Aqui del rei” era o grito de socorro desta época
dramaticamente monárquica.
-Carlos, temos de
buscar a razão desse alarme tão lancinante. - sugeriu.
Não procuramos por
muito tempo. A peste grassava por Lisboa e por muitas outras cidades lusitanas
trazendo a morte e a miséria.
-Ainda assim, Carlos,
é melhor estar aqui do que na Espanha, pois lá, desde 1497, os reis católicos
forçaram os judeus a se converterem ao cristianismo sob a ameaça de os
queimarem em praça pública.
-E os que não queriam
se converter às ideias supostamente cristãs e nem ser queimados em praça
pública? - indaguei.
-Esses fugiram; quase
cem mil judeus se refugiaram em Portugal.
-Os espanhóis são
mais truculentos do que os portugueses; estes, antes de desferirem o golpe
fatal, sentem o coração sangrar e vacilam.
-Nem sempre, Carlos.
-Mas se tantos
escolheram a terra de Vasco da Gama para salvar as suas peles é porque
consideram aqui um lugar seguro. - deduzi.
-O dia em que a minha
mãe marcou para me ensinar a história dos judeus no país dos seus ascendentes,
Carlos, eu bati gazeta para me encontrar com uma costureira. Fiquei, por isso,
com uma lacuna na minha cultura.
-Pois é, você, com o
privilégio de ser um rebento da Dona Sarita, professora de História do Colégio
Pedro II, não aproveitou essa oportunidade. - ralhei com ele.
-Assumo meu
arrependimento; mas eu sei que estamos, agora, sob o reinado de Dom Manuel I, o
Venturoso.
-Eis o rei da grande
prosperidade de Portugal. O rei das navegações épicas por todo o mundo.
Como o meu entusiasmo
elevou-se a minha voz em alguns
decibéis, um português baixo e atarracado, me ouviu e de nós se acercou.
-O rei não está
conosco, em Lisboa. Deus e seu representante na terra se afastaram de nós. A
corte foi transferida para Abrantes.
Desde priscas eras,
os reis de Portugal transferem a corte para outras cidades. - pensei sem me
manifestar.
-E por que Dom Manuel
se mudou com a corte para longe de Lisboa? - inquiriu-lhe o Elio.
-Para fugir da peste
que a todos por aqui mata e empobrece, - respondeu afastando-se.
-Elio, não adiantou
nada aquele gajo gritar “Aqui del rei.”
Mais adiante,
identificamos o ano em que vivíamos: 1506.
-O que houve em
Portugal em 1506?...
-Elio, se você
obedecesse mais a Dona Sarita, não torturaria a mente dessa maneira. E eu, de
cambulhada, não me sentiria ainda mais perdido no tempo.
Seca e peste. Nenhuma
tragédia é suficiente o bastante, o ser humano trata de potencializá-la. E,
naquela época de fanatismo exacerbado entre os católicos, víamos na rua
cristãos-novos hostilizados com violência.
-Carlos, e se
descobrem que sou judeu?
-Elio, vamos assistir
a uma missa, nesse Domingo de Ramos, assim, todos nos julgarão católicos.
E, genuflexos,
fingindo contrição, adentramos o Convento de São Domingo.
-Também orarei pelo
fim da peste e da seca, mas a meu modo. - murmurou-me no ouvido.
Bruscamente, a
atenção de todos convergiu para uma carola que se julgou diante de uma
epifania.
-”O rosto do Cristo
se iluminou! É a misericórdia divina que nos abençoa.
-Amém. - gritaram
todos extasiados.
-Não; foi apenas o
reflexo dos raios do sol na imagem de Cristo. - elevou-se uma voz no meio da
igreja.
-Isso não é hora de
demonstrar inteligência. - murmurou o Elio com um timbre em que havia nuances
de irritabilidade e de apreensão.
-Ele é judeu. -
berrou uma megera, açulando todos a agarrarem o herege.
-Sou cristão, eu já
me converti. - defendeu-se envolvido por mãos inimigas.
E o brutal
espancamento daquele pobre homem começou; até as crianças correram para apanhar
pedaços de pau e entregá-los aos homens de braços mais fortes e cruéis.
-Carlos, isso é
terrível.
Em poucos minutos, o
homem estava estirado no chão, gotejando sangue, enquanto os fiéis retornavam
para as suas casas.
-Terminou. - respirei
como se saísse de uma tortura.
-Não, Carlos,
começou. Você não sabe o que é uma perseguição aos judeus. - disse-me o meu
amigo tomado pela angústia.
Estava, infelizmente,
coberto de razão. Frades dominicanos, a partir de então, aglomeravam os
fanáticos e prometiam absolvição dos pecados para os que matassem hereges
hebreus, porque eles trouxeram a peste para Portugal. A turba ensandecida de
ódio saiu então com armas nas mãos, mesmo que fossem porretes, à caça de judeus
e de cristãos novos.
Três dias de um
hediondo massacre se eternizaram.
-Carlos, se não nos
tirarem logo daqui, não sei se vou escapar de ser caçado a pauladas como uma
ratazana.
Homens, mulheres e
até mesmo crianças eram torturadas, os mais desafortunados morriam queimados em
fogueiras improvisadas no Rocio. Todos eram acusados de terem crucificado Jesus
Cristo naquela semana santa, embora o ano da crucificação já se perdesse no
passado longínquo.
Uma das vítimas,
antes de ser abatida, gritou:
-Aqui del rei.
-Matamos o escudeiro
real. - assustou-se um homem no meio da turbamulta.
-Toda a corte está
longe daqui. Este sujeito é um cristão-novo, e merecia a morte. - retorquiu um
dos fanáticos.
-Ele deve ter vindo
em missão, não deveria ser massacrado. - insistiu aquele que reconheceu o
morto.
No dia 21 de abril,
as tropas do Rei Dom Manuel I alcançavam, finalmente, Lisboa para dar um basta
àquela carnificina. E o rei, indignado com a chacina, puniu todos aqueles que
se envolveram na barbárie e foram reconhecidos, confiscando-lhes os bens. Os
dominicanos, que açularam a populaça à matança, foram enforcados e o Convento
de São Domingos foi fechado por oito anos.
-Enfim, o rei
distante resgatou Portugal da ignorância medieval. - comentei com um sopro de
esperança.
-Mas Dom Manuel não
viverá por mais de duas décadas, depois disso. - lembrou o Elio com pessimismo.
-É verdade; a partir
de 1580, Portugal ficará sob o jugo da Espanha, onde a intolerância religiosa é
ainda mais encruada.
-Antes, em 1540, o
Tribunal do Santo Ofício será estabelecido em terras lusitanas.
-Esse fato histórico
foi Dona Sarita que lhe ensinou?
-Foi; no dia dessa
aula, eu não bati gazeta.
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